quarta-feira, março 04, 2015

A deportação de Battisti


O Poder Judiciário brasileiro reconhece que um estrangeiro cometeu crimes em outro país e, na impossibilidade legal de extraditá-lo, determina que deva ser deportado. Extradição é a entrega do estrangeiro ao país onde o crime foi cometido, mediante solicitação deste mesmo país. Deportação, por outro lado, é a retirada compulsória de estrangeiro de nosso território, pela irregularidade de seu ingresso ou permanência. Por exemplo, entrada sem visto. Naturalmente, o estrangeiro criminoso não solicitou visto ao fugir para o Brasil, mas veio valendo-se de documentos e nome falso. Assim, em teoria, a deportação é cabível.

Não, não estamos falando do caso Cesare Battisti, mas do inglês Ronald Biggs. Biggs participou de roubo ao trem pagador, foi condenado e preso mas posteriormente conseguiu fugir para o Brasil, usando nome falso para ingresso. Na época, a decisão do Judiciário foi pela não concessão da extradição (não havia tratado de extradição entre Brasil e Inglaterra, o que na prática impediu a extradição; esse tratado foi firmado após um fugitivo nosso ser descoberto gozando boa vida em Londres: “PC” Farias, ex-tesoureiro da campanha de Collor à presidência, mas essa é outra história).

A questão que permanece é o que fazer com o estrangeiro que, mesmo tendo efetivamente cometido crimes lá fora, não possa ser extraditado. Biggs e Battisti, por motivos distintos (mas igualmente dentro da nossa legislação) não foram extraditados. À época do caso Biggs, a Justiça observou isso e entendeu que ele não deveria permanecer no Brasil, devendo ser deportado para outro país que aceitasse recebê-lo e se comprometesse a não extraditá-lo para a Inglaterra. Caso contrário, acabaria ocorrendo verdadeira extradição sem consentimento do Brasil, algo que, além de diplomaticamente problemático, nossa legislação também prevê e impede.

A recente decisão da Justiça Federal de determinar a deportação de Cesare Battisti segue a mesma linha. A extradição de Battisti não foi aceita pelo Brasil. Aqui, independente de concordar ou não com a decisão de Lula, temos que observar que o então presidente agiu de forma legítima, dentro dos limites da competência dada pela Constituição ao ocupante do cargo. O STF verificou a possibilidade jurídica da extradição e Lula, usando de sua atribuição constitucional, optou por não extraditar.

Se o Brasil entende por qualquer motivo que um estrangeiro não deve ser extraditado, parece lógico que dê a ele uma mínima proteção, seja permitindo a permanência pacífica em seu território, seja ajustando sua deportação a outro país que se comprometa a mantê-lo em seu território, não o entregando ao Estado a quem originalmente o Brasil decidiu por não extraditar. Difícil, no caso, é encontrar país que aceite o estrangeiro nessas condições. No caso de Battisti, a decisão judicial cita México e França, países por onde passou antes de chegar ao Brasil. Nada, no entanto, os obriga neste momento a recebê-lo de volta.

Não basta a decisão judicial, deve haver condições para sua implementação. A cereja no bolo é que, se Battisti novamente conseguir permanecer no Brasil, as emoções na Itália serão reavivadas e a possibilidade de Henrique Pizzolato, condenado no caso mensalão, ser extraditado para o Brasil diminuem ainda mais. Lá, a decisão agora caminha para o estágio político, o mesmo estágio que, no Brasil, acabou por garantir a não extradição de Battisti.


(Em tempo: Biggs acabou ficando no Brasil praticamente a vida toda, voltando para a Inglaterra já mais idoso, quando quis.)

Publicado originalmente no Estadão Noite de 03.mar.2015