quarta-feira, julho 28, 2021

Sociedade Internacional aberta e multifacetada

 


Por Henrique A. Torreira de Mattos


Decorre da globalização uma pluralidade de Direitos, que é assim entendida em função de uma fragmentação das soberanias. Esta fragmentação decorre desde as fontes do Direito até a sua regulação pelo Estado, pois nota-se que esta última vem sendo realizada por outros entes não estatais, que na visão de André-Jean Arnaud, dá origem a um pluralismo de racionalidades que promove uma flexibilização normativa.

Atualmente notamos que o Direito Internacional possui uma grande influência no Direito Interno. Tal fato é percebido pela vontade do Estado de participar cada vez mais intensamente no plano internacional e através da cooperação entre os Estados.

Como consequência, e visando manter uma ordem internacional, a sociedade internacional acaba por estabelecer algumas regras, que são padronizadas aos poucos, conforme o grau de evolução da integração internacional, de modo que os Estados participantes e interessados, por vontade própria direcionam suas políticas internas e consequentemente seu Direito ao encontro de tais premissas ou normas internacionais. 

Kelsen já havia se manifestado no sentido de que não existem fronteiras entre o Direito Interno e o Internacional.

Tal afirmação é facilmente verificada nos dias atuais através da análise das discussões existentes nos variados fóruns internacionais. Atualmente, tais fóruns não mais se preocupam em analisar ou tratar sobre temas, cujos reflexos ocorrem apenas no plano internacional. As discussões debatem temas internos de cada Estado, mas através de uma perspectiva internacional, ou seja, os Estados possuem problemas internos comuns e, além disso, os efeitos de sua atuação promovem consequências além de suas fronteiras. A análise realizada fortalece a hipótese da Teoria Transnormativa do Direito discorrida neste estudo.

Portanto, ao tratarem de problemas comuns, nada mais razoável do que discutir de uma forma padronizada os mesmos conceitos. Os fatos atuais nos mostram que a interdependência entre os Estados, mas principalmente entre seus povos, favorece uma padronização do raciocínio jurídico.

Conforme nos ensina o Professor Guido Soares:

“... existe um outro fenômeno digno de nota: no momento em que um ramo do direito interno torna-se internacional, perder relevância suas fontes internas, ganha ele métodos de hermenêutica diferentes dos vigentes no ordenamento interno, e as regras de sua vigência no espaço e no tempo são distintas daquelas das normas domésticas.” 

Portanto, a internacionalização do Direito é um fato percebido a olho nu, como um reflexo intenso do processo de globalização. A internacionalização do Direito depende da conjunção de fatores e normas do Direito Interno e do conhecimento aprofundado das regras e princípios do Direito Internacional, seja o Direito Internacional Público ou Privado, pois como vimos, as normas vigentes não são mais aquelas produzidas ou impostas pelo Estado, ou pela Sociedade Internacional, mas também aquelas cuja formação surge da Sociedade Civil Global, sendo posteriormente, em alguns casos, positivada pelo Estado.

sexta-feira, julho 16, 2021

Continuando os estudos da sociedade do nosso tempo: o negro

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP e coordenador do ODIP – Ofician de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Na construção da sociedade brasileira, há velhos temas que de tempos em tempos voltam a nos atormentar, por ser tarefa não cumprida; como a integração dos negros, olvidando a enorme e histórica dívida que temos com a África, por participar e incentivar o comércio do atlântico, em tempos idos, que em termos de história, equivalem a ontem, e de cujo dia acordamos sem qualquer solução.

O branco escravizou o negro, e quando este se deu por libertado, por obra de concessão, passou a viver na periferia das grandes cidades, empurrado para os guetos, para os morros, para as casas de madeira, para os banhos de bacia de água tirada dos rios ou advindas da chuva, das sobras das feiras, e dos pequenos atos contra a propriedade privada, que continuaram e se multiplicar nas mãos do dominador.

A importância do tema não está no fato de que ressurgiu no horizonte político e acadêmico a questão dos direitos humanos e dos desfavorecidos, mas em algo mais concreto e sempre presente, a própria constituição da sociedade brasileira, feita de negros, pardos, amarelos, brancos e outros, cuja proporção de pretos é bem maior, em decorrência da miscigenação.

Em primeiro lugar, havemos de afastar o mito da democracia racial - e já o fizemos no artigo anterior - porquanto esta, efetivamente, nunca existiu. O que aconteceu é que conseguimos conviver uns com os outros, dentro de padrões bem definidos, entre privilegiados e excluídos, sendo que estes aceitaram a exclusão, sem discutir qualquer possibilidade de inclusão social. Nos dias de hoje, tentamos pela “quota” social outorgar aos negros algum caminho de inserção nas diversas áreas da atividade humana, mas ainda é uma concessão, e não uma efetiva conquista ou uma efetiva inclusão, que só aconteceria pelo ensino de qualidade ofertado pelo Estado e pela possibilidade de pleno emprego. E não seria condescendência do Estado, e sim, política pública necessária, esperada e administrativamente programada, em cumprimento de um dever constitucional de integração, de compartilhamento, de promoção do bem estar social.

A quem queremos enganar?

É possível construir uma nação que atue no mundo atual e na América do Sul, com efetiva liderança e compreensão dos problemas internacionais, com desconhecimento ou encobrimento de nossas origens e da nossa exata composição social?

Quem somos?

As nossas cidades são centralizadas, administrativa e economicamente, nas mãos de poucos – em geral brancos ou pretos esbranquiçados – com o domínio da segurança pública, também nas mãos destes poucos,  e as nossas instituições maiores, baseadas nos poderes da república, também, sem a participação eficiente, eficaz e estável de todos os componentes raciais, que continuam marginalizados.

Quem somos?

Simplesmente um poder europeu na América, cristalizado pelo tempo?

Abdias Nascimento[1], e dele nos servimos mais uma vez,  escreveu de forma clara sobre o papel do negro escravo para a história econômica do Brasil: “ Sem escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca. Tanto nas plantações de cana-de-açucar e café e na mineração, quanto das cidades, o africano incorporava as mãos e os pés das classes dirigentes que não se auto-degradavam em ocupações vis como aquelas do trabalho braçal. A nobilitante ocupação das classes dirigentes – os latifundiários, os comerciantes, os sacerdotes católicos – consistia no exercício da indolência, no cultivo da ignorância, do preconceito, e na prática da mais licenciosa luxúria. Durante séculos, por mais incrível que pareça, esse duro e ignóbil sistema escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro de ser uma instituição benigna, de caráter humano. Ito graças ao colonialismo português que permanentemente adotou formas de comportamento muito específicas para disfarçar sua fundamental violência e crueldade. Um dos recursos utilizados nesse sentido foram a mentira e a dissimulação. A consciência do mundo guarda bem viva a lembrança do colonialista Portugal encobrindo a sua natureza racista e espoliadora através de estratagemas como a designação de “Província de Ultramar” para Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.” [2]

Fatos e história, em relação aos quais deve ser levado em conta a época e a divisão de poderes no mundo, as conquistas colonialistas, o direito do Estado promover tais conquistas, o poderio militar e econômico e outros fatores, que podem ser bem analisados para que não se incorra – vamos dizer de forma eufemística – na mesma incorreção, ou de forma crua, nos mesmos crimes. Mais do que isso, além da eventual reparação – é o que se tenta modernamente fazer – a efetiva correção, reabrindo os caminhos no território nacional para um progresso claro e inequívoco das relações sociais e das relações de poder. E tudo, irá beneficiar a todos nós, independente da raça, porquanto, o Brasil, sem dúvida, se tornará um país mais rico cultural e civilizadamente.

Não é possível que em pleno século XXI ainda patinamos neste assunto, envenenados pelo peso da história e das noções passadas de diferenças raciais e de gênese. Ninguém nasce para escravo ou para senhor, para mandar ou para obedecer, para ser rico ou para ser pobre, para o lazer ou para o labor; nasce-se simplesmente, e a sociedade impõe-nos as suas regras e os seus caminhos, que, diga-se, não são imutáveis.

É necessário ter força para crescer e sabedoria para agir, porque o mundo social é passível de transformação. Na sabedoria do continente negro, existem alguns ensinamentos, de alto conteúdo civilizatório: “nos costumes imemoriais africanos, a mais completa expressão de energia vital (porque o valor supremo da existência é a energia que conecta todos os seres do universo) é a existência intensa e generosa: a vida plena (...) As filosofias africanas comportam uma ética fundante. Elas não se baseiam em uma decisão divina que proíbe certas ações e as transforma em ´pecados´. Na praxe africana, o mal é o que prejudica os outros, o que ameaça a paz e a sobrevida do grupo (...) No pensamento ancestral africano, o Ser Supremo, Criador do Universo, permanece muito distante. Ele não se preocupa com a ordem moral, cujos guardiões são os ancestrais, que modelam condutas e eventualmente enviam punições aos descendentes que não os respeitam.[3]

Quem disse que a ordem do universo é aquela que aprendemos?

Quem somos, afinal, uma civilização do século XXI, eivada de conceitos que nos foram impingidos nos livros escolares e na propaganda oficial?

É preciso, urgentemente, mudar, integrar, consolidar, cooperar, incorporar, compreender, assimilar, compor, constituir, tornar o Brasil uno e não, apenas aceitar os brasis que absorvermos como irreversíveis. Depois, vamos ter com o funcionamento da economia, do poder e da distribuição de justiça. Sem esta base de incontestável transformação social, o edifício público tende a não resistir às intempéries dos acontecimentos.



[1] Poeta, escritor, ativista dos direitos civis e humanos, político, ator, escritor, ativista dos direitos civis e humanos, político, ator, teatrólogo, economista. Nascido em São Paulo, em 2011 e falecido no Rio de Janeiro em 2011, com obras escritas nas áreas mencionadas, e de cunho antropológico, histórico  e social.

[2] Nascimento, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva,4ª. edição, 2016, p.59.

[3] Lopes, Nei e Simas, Luiz Antonio. Filosofias africanas.Editora Civilização brasileira, 1ª. edição, 2020, p. 19


sexta-feira, julho 09, 2021

DEBATER OU NÃO?

Por Fabrício Felamingo


Na semana passada, mencionamos que há meses preenchemos este espaço virtual com análises sobre a situação limite pela qual o Brasil passa, tendo em vista a calamidade do mais de meio milhão de mortos em razão do coronavírus. A pergunta então era como foi possível que tenhamos chegado a este ponto, incluindo aí não apenas tantos infectados e mortos mas também permitindo que a polarização política crescesse ao atual estágio de ódio que alguns setores nutrem contra os mais diferentes atores (políticos, imprensa, Poder Judiciário etc). E concluímos as linhas defendendo que deveríamos exercitar nossa empatia e tentar mostrar a realidade a tantos quantos possível, buscando evitar que as eleições do ano que vem permitissem novamente a eleição do atual estado de desgoverno.

No entanto, surge aí a questão sobre como debater política em tal clima de polarização, beligerância e pouca (nenhuma?) inteligência emocional. E mais, ao debater, não se estaria reforçando ou legitimando as teses esdrúxulas defendidas pelo (des)governo atual? Um exemplo: é legítimo discutir o processo eleitoral, visando formas de auditoria da votação e evitando fraudes. Mas, ao fazê-lo, corre-se o risco de dar guarida à tese de fraudes nas eleições presidenciais, a respeito das quais o atual mandatário alega ter provas e que as mostrará “se quiser”, como se fosse de seu campo discricionário guardar evidências de crimes e fraudes ocorridas.

Não debater, por outro lado, confere e reafirma a pobreza do debate político atual, em que memes de internet são utilizados como elementos argumentativos e vídeos curtos na redes sociais são verdadeiras “aulas magnas” de política. Qualquer coisa com mais do que 5 ou 10 linhas é “textão”, quando não “mimimi”, e o aprofundamento nos temas praticamente não ocorre. Mais: não debater pode até evitar conferir legitimidade às teses esdrúxulas (e que, não se duvide disso, têm sua finalidade muito bem compreendida por quem as difunde originariamente, passando pela tergiversação e indo até a má-fé) mas não demonstra respeito àqueles e àquelas que, não sendo os emissores originários de tais teses, as retransmitem por sincero acolhimento, tendo em vista a falta de conhecimento suficiente para rebatê-las. Os 58 milhões de votos à chapa vencedora no 2º turno em 2018 não correspondem a 58 milhões de cidadãos defensores de não vacinação, ou cloroquina, ou voto impresso (não confundir com eleições auditáveis, coisas distintas que são). E mesmo os que assim se posicionam, o fazem na maior parte das vezes baseados em sua boa-fé individual, pela crença sincera da melhor escolha.

Da mesma forma, os 47 milhões de votos da chapa perdedora não foram conferidos por eleitores desmemoriados do mensalão e afins mas, ao contrário, foram por muitos digitados nas urnas apesar desse e de outros eventos que desabonam, e muito, os governos anteriores. Mas os até então 28 anos de vida pública do atual presidente já sinalizavam de forma bastante convincente para parcela significativa desses 47 milhões de eleitores que mais do mesmo era, infelizmente, menos pior do a “novidade” que se prometia do outro lado. Isso estava visível aos demais 58 milhões de eleitores? Talvez estivesse acessível, mas a falta de discussão política menos apaixonada e mais racional com certeza foi determinante para o resultado atual. As inimagináveis mais de 520 mil mortes até agora no mínimo mostram que ninguém jamais poderia supor o quão ruim seriam as coisas e são um triste ponto de partida para que busquemos novas formas de discussão.

Enfim, é pela totalidade dos brasileiros, de um lado e outro, que devemos buscar o diálogo e o bom debate, olvidando-se daqueles que se locupletam hoje no poder. Caso contrário, corremos o risco da permanência do atual estado das coisas.