Por Fabrício
Felamingo
Na semana em que o Brasil atinge um quarto de milhão de mortos pela
pandemia de COVID-19 no curto espaço de 365 dias, nos chama atenção o fato de
que, já no ano que vem, o Brasil comemorará o segundo centenário de sua
independência sem que possamos estimar quantos terão morrido nos próximos 12
meses. Sim, a vacina se tornou realidade científica em tempo recorde e se faz
realidade no Brasil, em que pese a forte objeção do Governo Federal. No
entanto, o ritmo de vacinação é lento e, em pouco menos de 2 meses de
vacinação, apenas cerca de 7 milhões de doses, das 450 milhões que seriam
necessárias aos brasileiros (duas doses para cada um) foram administradas. Ou
seja, ainda muitas vidas serão levadas, e a banalidade dessas mortes se acentua
sabendo-se que seriam evitadas com uma maior rapidez da vacinação.
Ainda assim muitos a cada dia menos se preocupam com isso. A
banalidade impera, estão “cansados” das notícias “velhas” das mortes e dos
infectados. Notícia agora é um deputado federal ser preso por fazer apologia do
AI-5, por exemplo. O que nos leva a pensar que há hoje no Brasil talvez o
período de maior “desgoverno” da história recente, desde 1985 (incluídos
governos Sarney e Collor nessa conta). Podemos dividir em poucos períodos os
199 anos de nossa história independente, sendo não mais do que 5 pequenos
trechos no período republicano. E estamos apenas no segundo período mais longo
de estabilidade com transição de poder, uma vez que, após os 67 anos dos períodos
da Monarquia (1º e 2º reinados, intercalados pelo período da Regência), tivemos
apenas 41 anos até o Estado Getulista de 1930. Logo após, um hiato democrático
de apenas 19 anos (1945 a 1964) até nova incursão ditatorial, desta vez dos
militares. Somente em 1985 há a volta da democracia, ou seja, apenas 36 anos
desde então. Nesse período desde 1985, nos parece que o atual governo se
esforça em lustrar a biografia dos presidentes anteriores. Afinal, nada parece
ser pior do que hoje.
Portanto, não são indevidas as preocupações com os flertes do atual
governo e seus apoiadores com a ditadura. O AI-5 defendido pelo Deputado
Federal Daniel Silveira já foi defendido pelo atual presidente. E é bom lembrar
que a ditadura foi parte cruel, mas não isolada, de uma orquestração que
começou devagar e com apoio significativo de parte da sociedade (os editoriais
de grandes jornais neste século XXI, como Folha de S. Paulo e O Globo, a se
desculparem pelo apoio então dado em 1964 à “Revolução”, mostram o quanto não
foi, aquele momento histórico, um golpe sem apoio generalizado na sociedade
civil).
Há portanto que relembrarmos sempre o que foi aquele período para se
evitar qualquer mínima chance de apoio à ditadura. Em 1974, menos de 9 anos
após o apoio editorial da imprensa ao golpe, e antes de ser “empossado presidente”,
Geisel disse literalmente ao seu futuro ministro do Exército Dale Coutinho que “esse
troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
“Esse troço de matar” é a expressão que,
ao mesmo tempo em que prova a ciência inequívoca de Geisel (e portanto de todo
os mais altos graduados nas esferas de poder de então) às torturas e mortes
ocorridas nos porões da ditadura, demonstra o apoio que as mesmas esferas
conferiam a tais métodos. 1964 não começou com um AI-5. 1964 não começou com
“esse troço de matar”. O jornalista Elio Gaspari é o responsável por ter
trazido à luz, em 2003, essa frase proferida por Ernesto Geisel. Em seu livro
“A Ditadura Derrotada”, terceiro de cinco livros sobre o período (e, todos
eles, leituras indispensáveis àqueles que querem entender o período), Gaspari
reproduz as frases aqui citadas com a vantagem de tê-las ouvido gravadas, eis
que Geisel efetuava registros de telefonemas, conversas e reuniões. A prova das
frases existe, portanto.
Na conversa gravada, Dale Coutinho argumentava que o Brasil estava
“melhor”, era local procurado pelos investidores e que “o negócio melhorou
muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando começamos a matar. Começamos
a matar.”. A morte banalizada.
Esse troço de matar atual que é a COVID-19 recebe do atual governo a
mesma preocupação que as torturas e mortes do porão da ditadura receberam de
Geisel. Ciente do que ocorre, o governo pouco faz para evitar o pior. Chancela
as mortes e com elas convive bem (“todos vamos morrer mesmo um dia”, repete
sempre o atual Presidente). E mais, ainda nos deixa com a nítida impressão de que
acha que bom mesmo era no período da ditadura.
É de matar. Literalmente.