quarta-feira, junho 21, 2023

GOLPE, NÃO!

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Qualquer tentativa de golpe de Estado, venha de qualquer setor da sociedade e do poder, é uma vergonha.

Quem se arvora em saber o que é melhor para o país?

Juristas, forças armadas, juízes, políticos, parlamentares, donos de empresas, associações civis, particulares, professores, que se envolvam em atos golpistas, com desforço físico ou intelectual, para estabelecer o que entendem por Estado de Direito, são agentes cancerígenos que buscam disseminar metástases antidemocráticas em todas as instituições.

Fora da Constituição Federal (não das “quatro linhas” adrede argumentadas, de forma insidiosa), mas de todas as suas linhas, como, por exemplo, as traçadas pelos art. 1º. ao 4º. – Princípios Fundamentais -, as alinhavadas pelos art. 5º. ao 17º. – Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Direitos Sociais, Direitos Políticos –, as desenhadas pelo art.18º. ao 43º - Organização do Estado -, as pontuadas pelos arts. 44º. ao 135º. – Organização dos poderes -, as delineadas pelos arts. 136º. ao 144º. – Defesa do Estado e das Instituições Democráticas -, as projetadas pelos arts. 145º. ao 169º. – Tributação e Orçamento -, as esboçadas pelos arts. 170º. ao 181º. – Ordem Econômica e Financeira -, as constituídas pelos arts. 193º. ao 232º. – Ordem Social -, tudo será estratagema, desfalque, injúria constitucional, insurreição, motim, rebelião, revolta, que rasga a Constituição Federal, atinge o povo, fere o Brasil mortalmente, e não condiz com a sua essencial vocação democrática.

Juristas não podem interpretar inocentemente a Constituição Federal, a favor de golpistas.

Militares não podem esquecer as funções constituições e de Estado, a favor de golpistas.

Parlamentares não podem contrariar o voto que receberam democraticamente, para atuar contrariamente ao próprio parlamento, a favor de golpistas.

Magistrados não podem se desviar de seus desideratos constitucionais e da imparcialidade e da independência, a favor de golpistas.

Ministros de Estado, não podem, à guisa de serem escolhidos pelo Presidente eleito, praticarem atos a favor de golpistas.

Nada, absolutamente nada, justifica qualquer golpe, pouco importando a ideologia que venha atapetando o caminho dos que almejam a fissura institucional e a perpetuação no poder.

Liberdade sim, de falar, de agir, de fundar partidos, de professar convicções religiosas, de abraçar ideias filosóficas, de pensar no Estado, sem abolição de liberdades, sempre nos limites da Constituição Federal.

Não há nenhum dispositivo constitucional que ampare pretensões contrárias ao Estado Democrático de Direito, nem os que pretensamente entendem defendê-lo e justificá-lo, com hermenêutica canhestra que arrime a argumentação – com base na própria Lei Maior - que explique a defesa do país, pela incisão e cancelamento das garantias constitucionais.

A famigerada interpretação do art. 142 da Constituição Federal, feita pelos golpistas, não se sustenta pelo mínimo crivo de luz inteligente, porque foi realizada sob a indução da força e do poder, não do poder do povo, mas dos governantes de plantão.

Diz o art. 142. “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O objetivo maior é a defesa da Pátria, pela garantia dos poderes constituídos, a garantia da lei e da ordem, e das fronteiras. A quebra de tais poderes, da lei e da ordem, e dos limites físicos, econômicos e culturais, não é defesa da Pátria. A Pátria é constituída pelo território, pelo povo, pelo governo eleito, pela cidadania, pela busca do estudo, pela busca das oportunidades, da coerência de uma mesma visão política e social, baseada na Democracia, pela conservação da língua e dos costumes.

Nada, absolutamente nada, enseja a interpretação de que o Presidente da República se sirva das forças constituídas para anular os poderes constitucionais, e, muito menos se utilize, para tanto, de seu temporário poder para constituir novas forças e órgãos.

Os poderes exercidos no passado, os exercido no presente e a pretensa interpretação futurista de exercício inadequado posterior, não são suficientes para justificar um golpe revolucionário. Só a quebra institucional, efetiva e concreta, é que poderia encetar alguma espécie de reação, desde que baseada na vontade popular, não a do povo enganado, manuseado, alimentado por expressões de ódio e de revolta, conduzido por palavras de ordem e de gritos, à guisa de condução de gados, meios que se servem tanto os da direita reacionária, como os da esquerda inconsciente.

 O povo, na sua expressão individual e coletiva, deve ser informado claramente e raciocinar sobre os destinos da nação, o que só se consegue com a liberdade de imprensa, com a comunicação ampla, não direcionada para objetivos escusos, com o ensino não subordinado a ideologias, com a divulgação da ciência, com o embate de ideias. De outra forma, não será o povo soberano, senão, o povo manietado, subordinado, abúlico, pronto para pegar em armas, de forma religiosa, cega, movido pela fé e não pelas ideias claras, em busca apenas de ídolos.

Os órgãos da Administração Pública devem agir no tempo presente, e não no tempo passado e não no tempo futuro, salvo para administrar as questões sociais (educação, alimentação, saúde, combate ao crime, etc). Não há pitonisa, vidente de bolas de cristal, de cartas, de búzios, de horóscopos, que possam afirmar que o Estado necessita se defender por intermédio de um golpe de dominações futuras. Tais argumentações são armadilhadas, usadas para afirmar as próprias razões de mando (não se pode esquecer que Maduro da Venezuela, quando assumiu o poder, disse para o povo que havia recebido de madrugada, o espírito do Hugo Chaves, com mensagens de governança. E o povo acreditou!), o mesmo, faz, com outras palavras ou gestos, Putin (Rússia), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Bashar al-Assad (Síria). As mal chamadas “Direita” e “Esquerda” agem iguais.

A melhor defesa do Estado é seguir a Constituição Federal, garantindo aos eleitos o exercício democrático advindo da eleição – não fraudada – e garantindo a possibilidade de troca de governantes em eleições futuras.  A alternância do poder, o respeito ao diálogo, a obediência às regras estabelecidas – não pelo ditador – mas pela Democracia, é a única forma de progresso real.

O Brasil passou por fases ditatoriais e tem, lá no fundo, alguns resquícios de ditadura, que vira e mexe tentam abalar a Democracia. Quem se arvora, como pessoa (carnes, ossos, mente), a falar em nome de milhões?

Enquanto não nos preocuparmos com a miséria, orgânica, intelectual do povo, a vitória será dos aquinhoados das benesses, por nascimento ou por manipulação do poder.

Alessandra Pearce de Carvalho Monteiro, estudiosa, pós-graduada em Coimbra, explica:

A primeira postura antidemocrática que partidos políticos podem assumir é a incitação ao ódio e à discriminação contra grupos da população, especialmente as minorias estigmatizadas, como os imigrantes, pessoas não brancas, homossexuais e mulçumanos...(...) Em sua famosa obra `Ensaio sobre a Liberdade`, Stuart Mill desenvolveu a teoria de defesa da liberdade de expressão mais influente de todo o pensamento liberal, que tem como fundamento dois princípios postulados: i) as pessoas devem ser livres para fazerem o que quiserem, desde que não prejudiquem terceiros; ii) o Governo não pode legislar para proteger uma pessoa de si própria ou impor a crença da maioria acerca de noções sobre virtude e moral. Ou seja, eis uma teoria que busca proteger os interesses de minorias que não se adequam aos padrões culturais dominantes ao garantir que as suas escolhas possam ser realizadas com autonomia. Se para Millo o grande motivo para a defesa da liberdade de expressão era evitar a tirania estatal ou a tirania da maioria, apenas mediante a completa subversão dos fundamentos de sua teoria é que se pode utilizá-la para defender a liberdade de expressão daqueles que buscam, ao revés, incentivar a discriminação, a opressão e o ódio às minorias. Contudo, é precisamente isso que tem acontecido no debate sobre censura ao discurso do ódio. Doutrinadores utilizam os argumentos desenvolvidos por Mill de forma descontextualizada, ou seja, sem levar em consideração o fundamento de proteção às minorias, e terminam por concluir que a liberdade de expressão também pode ser exercida para atacar, inclusive, essas mesmas minorias!

Manipulação!

Vamos ficar alertas!


Nota: Alessandra Pearce de Carvalho Monteiro - Extremismo Político - como as democracias podem lidar com as novas ameaças antidemocráticas, Arraes Editores, 2019, p.43 a 45

segunda-feira, junho 05, 2023

Dos recursos narrativos à narração dos discursos



Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

São discursos narrativos o diálogo, a descrição, a narração e a dissertação.

Nos diálogos, temos as falas de personagens, em diálogos diretos, por meio de aspas, travessão e outros expedientes e o diálogo indireto, quando aquele que comunica diz: “ele disse que...” ou expressões similares, bem como o monólogo interior, uma espécie de fala mental. A descrição corresponde a enumeração dos componentes e pormenores de objetos, paisagens, pessoas. A narração implica em acontecimento, ação e movimento e a dissertação diz respeito à explanação das ideias ou conceitos.

Como ensinam os professores de Português, estes recursos podem não aparecer estanques, e sim, misturados, e entremeados de gestos, dificultando aquele que escuta ou vê de entender o seu conteúdo.

Os políticos – sem qualquer ciência, é verdade, mas com muita perspicácia – utilizam-se muito disso. Misturam tudo a seu bel prazer, embutem diálogos nas descrições, fazem narrativas nas suas dissertações, e quando se vai verificar, não sobra nada aproveitável. O fato desaparece nas expressões, significados e significantes, falas discursivas e falas que se dizem técnicas, a ponto de nós – pobres mortais – ficarmos perdidos nessa floresta de amarrações comunicativas.

Fatos não são fatos, tortura não é tortura, repressão não é repressão, corrupção não é corrupção, abuso do poder não é abuso do poder. São somente narrativas.

A Rússia é o país vítima da guerra impetrada, indiretamente pela Ucrânia?

O Lava Jato e os petrodólares, todos envolvidos, uns e outros, são vítimas?

Maduro é, na verdade, um democrata, que luta contra as forças da economia mundial, e contra o gigante do Norte, defendendo o seu povo e o seu “Estado de Direito”, ainda que, para tanto, mande prender os considerados inimigos do povo, perpetua-se no poder, para que não haja involução dos objetivos da república, desfaz o Congresso, que lhe é contrário e os juízes independentes, tudo em nome da Venezuela. Um herói que prossegue na saga grandiosa e generosa de Hugo Chaves, o seu mentor espiritual? Ele recebeu comunicação espiritual de Hugo Chaves, assim que tomou conta do poder!

Narra-se de um e de outro lado, todos convictos de que podem convencer e de serem favoráveis à Democracia e à República.

Para vencer uma batalha, tudo é possível, desde exércitos bem armados e “fake news” nas redes de comunicação até discursos inflamados.

Não querer a volta de um desenho de ditador, não pode significar que se deva assinar, em baixo, de todas as narrativas oficiais e oficiosas.

Pobre leitor e cidadão que se farta de ouvir narrativas dissertativas, com diálogos embutidos e descrições imaginosas, e acaba por crer que um ex-presidente é defensor da família e dos princípios religiosos e da bandeira nacional e que os que estão no poder são contundentes contra os despóticos ditadores, do presente e do passado.

O Brasil melhorou – não há dúvida – em termos de suas relações internacionais; reconstruiu pontes desfeitas, buscou o diálogo, mostrou-se disposto a ouvir narrativas, sem tomar uma posição que fuja da postura de interlocutor confiável e mediador possível, pelo menos, até agora.

Ouvir é sábio, para agir e falar, necessário cautela, e principalmente confiar em assessores acostumados aos diálogos internacionais: os membros da Diplomacia

As eventuais narrativas – narrativas de narrativas - podem vir a desfazer o caminho ora percorrido, ou isso também é uma narrativa?

Somos um país de extensas e infindáveis narrativas, internas e externas.

Vamos descansar em uma clareira – deve haver alguma – nesta floresta comunicativa de desejos, e olhar para ver se através das copas das árvores aparece a luz.