Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional
da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional
Público e Privado
Há um conflito conceitual no mundo moderno entre o Direito Internacional
e a soberania dos Estados, sendo que uma das formas de concretização desta, o
chamado “domínio reservados Estados”.
Não se observa a existência de uma regra que conceitue ou
defina tal domínio, ficando no ar que este espaço existe e deve ser respeitado
por todos os Estados e pelos organismos internacionais.
O fato é que, com o tempo, vem diminuindo o espaço do que é
reservado para o Estado, em face do aumento das normas e princípios de Direito
Internacional, advindos, principalmente dos tratados e convenções
internacionais, bilaterais ou multilaterais. À medida que o Estado adere a um
tratado (negocia, assina, ratifica, incorpora), se vê obrigado a admitir que a
soberania exercida sobre o seu território e sobre o seu povo, não é total,
tendo em vista a necessidade de cooperar com os demais Estados e com a
sociedade internacional, desenvolvendo uma convivência pacífica e colaborativa.
Em uma época que as fronteiras não representam mais uma
barreira intransponível, o Estado recebe - querendo ou não - influências do
exterior, e mais do que isso, os efeitos jurídico-políticos de atos praticados
por outros Estados e por organizações internacionais; e, também estende seus
interesses para outros territórios, quer seja na área econômica, na área
política, na área social ou jurídica. As fronteiras do Estado, embora definam o
seu território, revelam-se mais como portais que podem e devem ser abertos para
que se transite – via de mão dupla – os atos estatais, nas relações
internacionais, cada vez mais intensas e necessárias.
Ninguém, nenhuma organização, nenhum ente público e nenhum
ente privado, consegue viver só. Impossível concretizar as mínimas demandas
administrativas, quando se fecham em seus próprios campos de domínio.
Entre a necessidade internacional, que não pode ser afastada,
nem filosófica nem ideologicamente, e a independência e autonomia do domínio de
suas próprias decisões e consequências, o Estado hesita e faz hesitar o próprio
sistema internacional, por ele próprio engendrado.
Não há dúvida que este sistema só existe por iniciativa dos
Estados, que nele se inserem como criadores e ao mesmo tempo como criaturas.
Todavia, esta natural interação produz problemas. Inquirir, quais os mecanismos
de solução, em um caso concreto, se é que se revelam claros, é tarefa insana
para os teóricos e para os práticos, que raciocinam e toma decisões em nome do
Estado e das organizações internacionais.
De início, a resposta parece negativa. Na verdade, não há
clareza, desde a Liga das Nações e passando pela Carta da ONU e pelas Cartas
Regionais. Em outras palavras, todos entendem e não duvidam, que o Estado tem
um domínio que é seu, reservado, mas o tamanho desse domínio, sua área de
extensão e quando pode ser invocado e respeitado, é um sítio a ser sempre
medido e desvendado.
Dentre as normas que embasam o domínio reservado, pode ser
mencionado o art.2, inciso 7. Da Carta das Nações Unidas: “Nenhum
dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em
assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou
obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da
presente Carta, este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas
coercitivas constante do Capítulo VII.”
Quais assuntos que dependem essencialmente da jurisdição de
qualquer Estado? Podemos imaginar os referentes à sua administração interna:
correios, portos, aeroportos, transportes em geral, distribuição de alimentos,
organização da força militar, organização do sistema jurídico, sistema
tributário, sistema de saúde, sistema eleitoral, e outros de igual natureza.
No entanto, nem todas as áreas estão blindadas, por si, de
uma intervenção internacional, em casos gravíssimos, ou que fujam à
normalidade, ou por uma total incompetência do governo, ou pelo exercício
descontrolado das próprias razões do governante. Afinal, a base de tudo, é o
ser humano; para ele volta-se a economia, para ele volta-se o Direito, para ele
volta-se a saúde, para ele voltam-se as benesses da vida, e o Estado é um
instrumento de realizações da sociedade que lhe está subjacente.
Vejam que o artigo em referência, após dizer da proibição em
assuntos internos, ressalva a aplicação de medidas coercitivas. Os limites estão
postos; limites da soberania e limites da ordem internacional.
O Capítulo VII, diz respeito às ações que ameacem a paz, a
ruptura da paz e aos atos de agressão, que serão tomadas pelo Conselho de
Segurança, mas, em princípio, sem o uso da força: “Art. 40. A fim de evitar
que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer
recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no art. 39, convidar
as partes interessadas a que aceitem as medidas provisórias que lhe pareçam
necessárias e aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os
direitos e pretensões, nem a situação das partes interessadas. O Conselho de
Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas.” E mais
adiante, no art.41, diz quais são as medidas possíveis “interrupção completa
ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários,
marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou qualquer de outra
espécie e o rompimento das relações diplomáticas.” E no art. 42 complementa que “se tais
medidas se mostrarem inadequadas, poderá se utilizar de forças aéreas, navais
ou terrestres.”
Assim, não está no domínio reservado dos Estados a agressão,
a ruptura da Paz e a ameaça a Paz. Outras atividades, devem ser analisadas, ante
os binômios: fato e norma e fato e princípios internacionais, em que se possa
divisar a infringência dos direitos humanos, a matança, a escravização do povo,
as perseguições, a fome, a guerra interna incontrolável, o genocídio etc.
O fato é que o ser humano vive no globo e não é possível que
suas ações, preocupações e interesses estejam apenas constritos ao território
em que vive. Esta é a nova realidade dos séculos XX e XXI e o poder estatal será
mais poder quanto mais cooperar com a comunidade internacional, porque não se
concretizará tal poder se agir apenas em seu território, desconhecendo e
afastando as influências alienígenas, em um mundo globalizado.
Especificar, em cada caso concreto, o domínio reservado do
Estado, não é tarefa automática e simples, mas os parâmetros encontram-se nos
princípios internacionais e na interpretação equilibrada e cautelosa da Carta
das Nações Unidas, diante dos fatos.
O Direito não é mágico e se concretiza na sociedade, com
linhas tênues e de convencimento, para equilibrar regras e princípios.