quinta-feira, abril 13, 2023

As projeções do nosso dia a dia

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Há projeções coletivas e individuais, inconscientes, que fabricam ações parecidas, não importando a região, a cultura e o tempo. Propagam-se e influenciam as pessoas dos mais variados costumes e educação, e nada tem a haver com o grau de instrução e conhecimento político ou esclarecimento sobre a vida e sobre o mundo. Multiplicam-se.

Acaso ocorram mortes em uma escola, engendrada por um desajustado, logo outras ocorrerão em outras escolas, em outros cantos, até em outros países, copiando iguais procedimentos, como se fossem repetições de um mesmo caso, com personagens diferentes.

A força da maldade parece ser mais contaminadora do que a dos bons exemplos; as demonstrações de pureza, de amor, de amizade, de solidariedade e cooperação.

Somos seres imperfeitos, é certo, mas nossa imperfeição não é só individual e, sim, coletiva. Na tela que transmite imagens do agrupamento humano, ficamos chocados e atraídos com as diversas possibilidades de infringência das regras costumeiras ou escritas e com a repercussão que isso produz e se reproduz.

O absurdo das atitudes nos emociona, porque confirma o animal, que intrinsecamente nos domina, e se não houver um ego e um superego alinhados, sofrerá, por certo, a nossa fantasiada humanidade!

Nos dias de hoje, tudo é possível: todas as crenças, todas as formas, todos os monstros que nos habitam, todas as imagens que fazemos de nós mesmos, e que justificamos, declarando ao mundo a nossa independência, o nosso orgulho, o nosso autodomínio, e, com isso, construímos um caminho pretensamente único, inseridos na repetida história dos fatos, que são jogados no ar, como tintas, e se fixam em manchas, das mais variadas cores, dando colorido à existência.

A individualidade toma conta e os fatos coletivos desastrosos, incongruentes, “foo fighters”[1], alimentam o ego, informado e em algumas ocasiões, dominado pelo subconsciente.

Que seres frágeis somos! Individualidades sem lastro, imitadores de ações coletivas, encantados pelo fantástico, não só na vida pessoal, familiar ou entre amigos, mas também na vida pública!

E isso nada tem a haver com os arquétipos de Jung[2], que funcionam como argamassas comuns, sobre a qual edificamos – sem possibilidade de escolha - a nossa estrutura psíquica. Não. O que analisamos aqui, é um fenômeno que vai do inconsciente para o consciente, ainda que este seja muito influenciado, sem percepção racional dos acontecimentos.

Daí porque existem tantos adoradores do diabo, das armas, dos homicídios, dos sacrifícios coletivos, dos suicídios, das crenças mitológicas, dos discursos de ódio, das revoluções e do sangue correndo: é o domínio das imagens, que cegam a racionalidade e a inteligência.

Não é fácil pensar. Não é fácil ler nas entrelinhas e por trás das palavras. Não é fácil ver o que não está visível a olho nu.

Olha-se para o espelho quebrado em várias partes, e o que se enxerga é um pedaço de braço acoplado a uma cintura, um olho sobre o nariz, uma das mãos sobre o ombro, uma perna em forma de arco e outra rígida, uma orelha que escapa da testa. O nosso mundo é um espelho partido, devemos desconfiar do que vemos e das conclusões que tiramos.

Os heróis são tristes figuras!

Será que podemos voar?



[1] Dizem das luzes que acompanhavam os bombardeios na segunda guerra mundial.

[2] Arquétipos são conteúdos coletivos inconscientes. Explica Jung: “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Esyte, porém, repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos de ´inconsciente coletivo`” C.G.Jung – Obras Completas, vol. 9/1. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p.12, 11ª. Ed. Editora Vozes.

terça-feira, abril 04, 2023

O mundo como deveria ser

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Poesia e Direito, Direito e Poesia, um território único a ser explorado. Peter Haberle, considerado um dos grandes constitucionalistas europeus, incorporou as duas áreas. Em entrevista a Hector Lopes Bofill, professor de Direito Constitucional e uma das mais destacadas vozes da jovem poesia catalã, diz:

Há aspectos do direito constitucional que são especialmente sensíveis à atividade criadora dos poetas. O preâmbulo das constituições é um bom exemplo, bem como os enunciados empregados nos catálogos dos direitos. Os poetas proporcionam a suficiente dose de utopia que orienta o sentido da realidade constitucional. Poder-se-ia citar o caso da nova Constituição Federal suíça de 1999, uma parte de cujo preâmbulo foi concebida pelo poeta suíço A. Mushg ao proclamar que a força do povo se mede no bem-estar dos débeis. Os valores derivados de alguns princípios e objetivos constitucionais, como a tolerância e a educação democrática, podem fundar-se na formulação linguística e no conteúdo material enunciado pelos poetas. No que concerne aos direitos fundamentais, só haveria de referir-se à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujo sucesso universal foi em parte propiciada pelo caráter contundente, sugestivo e penetrante do estilo que lhe conferiram alguns literatos reunidos na Assembleia Nacional francesa como Mirabeau.

Fico pensando que o mesmo se dá com o nosso Texto Maior, produto do momento político-jurídico de 1988, carta política e ao mesmo tempo jurídica, e de inspiração de seus próceres, sensibilizados pelo momento. O seu Preâmbulo não é obra de juristas, nem de políticos, mas de uma metamorfose que transformam uns e outros, em uma simbiose poética que deve servir de base para a interpretação de quaisquer de suas regras: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

É possível dizer que aquele que na vida político-administrativa age por conta própria, discriminando, ressaltando as diferenças sexuais e raciais, tecendo longos laudatórios favoráveis às armas e aos armados, exaltando os ricos e menosprezando os pobres, protegendo as famílias de posse e pouco ou nada fazendo para minorar a vida dos pobres, estão agindo de acordo com o referido Preâmbulo?

É necessário um pouco de poesia para cumprir o mandamento constitucional. Atitude de vida, de desapego das honrarias, de amor, de mais apreço pelo povo e menos apreço pelos cargos públicos; quem possui tais caracteres? Só o ser humano público, que não defende privilégios e nem se assenta nos louros da glória, pode ler e entender o Preâmbulo da Constituição Federal, texto poético que inspira o documento fundamental da República.

Algumas palavras (figuras), postas no Preâmbulo são emblemáticas da emoção em se proclamar a Carta Magna, a saber: Estado Democrático, direitos sociais, direitos individuais, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade, justiça, sociedade fraterna, sociedade pluralista, sociedade sem preconceitos, harmonia social, solução pacífica dos conflitos.

Tem alguma conexão com armas, com neonazistas, com raça pura, com domínio sobre as mulheres, com perseguições?

Temos uma Constituição avançada, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, com a Carta da ONU, em harmonia com os princípios internacionais, representativa da preocupação com o ser humano e com a humanidade, mas há ainda, no meio do povo grupos pequenos, refratários ao progresso, radicais; para os quais o raciocínio e o argumento não fazem parte do dia a dia; para os quais, o mar não é azul, o céu não é amplo, as árvores não são verdes; para os quais não há brilho no olhar: só ódio, só vingança, só ganância, só morte, só galhos secos, só águas barrentas, só nuvens plúmbeas; que só tem presente a cólera assassina e psicótica, dos que não entendem o mundo.

Eles estão espalhados nos mais diversos setores sociais, e mesmo entre aqueles que deveriam ter uma vida intelectual, supostamente superior.

Acho que nunca leram o Preâmbulo da Constituição Federal, como provavelmente, nunca leram Machado de Assis, Vinicius de Moraes, Drummond, Fernando Pessoa, Castro Alves, Guilherme de Almeida, para dizer o mínimo, sem entrar na seara dos pensadores, estes, então, passam ao largo das leituras, porque os simbolismos que alimentam a execração, a malquerença, o nojo, a repulsa, a gana, o rancor, a sanha aniquiladora do humano, fala mais alto e repercute em todos os primitivos neurônios de seus cérebros deformados. Estão cegos e surdos. Não os comove a delicadeza. Gostam das guerras, dos braços e cabeças amputados, dos fígados expostos, do sangue correndo pelo chão.

Nunca leram o Preâmbulo da Constituição Federal, ou se o fizeram, não conseguiram entender o texto, que o povo, por seus representantes, declarou como profissão de fé para o Brasil.

A bem da verdade, não é que poesia e Direito andam juntas, e sim que têm o mesmo princípio informador: a poesia, como o que é humano, sensível, racional, lúdico, alegre, vivo; e, o Direito, como o que é desejável, para manter e crescer o ser humano, em uma sociedade organizada, com base nos princípios maiores de paz, de afeto, de compreensão.

Nunca leram o Preâmbulo da Constituição Federal.

Triste miopia...