Carlos Roberto Husek
Professor da PUC de São Paulo
Coordenador da ODIP - Oficina de Direito internacional Público e Privado
Abdias Nascimento (1914/2011),
antropólogo, poeta, dramaturgo, artista plástico, intelectual e ativista
pan-americano, buscou desenvolver no Brasil a questão do negro, na sua inserção
na sociedade brasileira e desmistificou algo que continua arraigado entre nós,
que é a chamada “democracia racial”. Não o fez, por dimensão intelectual e de
cientista social, por vindita pessoal, grupal, social ou familiar, mas por
rigoroso estudo de alguém – se é que é possível dizer – que no momento da
produção científica não tem cor ou raça. Difícil a aceitação disso, para todos
nós, que de alguma forma, estamos presos às nossas idiossincrasias, à nossa
criação, ao nosso passado, à transmissão avassaladora da cultura que nos é
transmitida, nos posicionando, de antemão, diante da vida com um olhar específico,
quase sempre carregado de preconceito e de obstáculos à inteligência (visão das
coisas), que obscurece o mais preparado dos mortais. Observe-se as últimas
manifestações de políticos, ministros, ex-generais do exército, que não parecem
atinar com o mínimo de compreensão e percepção da realidade e tendo em vista a
posição que ocupam no cenário nacional, ou que ocuparam, arrastam nas suas
ideias uma multidão de fanáticos, que, efetivamente não pensam para alimentar a
mídia – falada, escrita, televisiva - e, principalmente, pelas redes sociais
suas próprias demandas, algumas que se escondem nos confins do inconsciente.
Abdias do Nascimento, negro, não
partiu dessa condição, mas analisou com objetividade a sociedade brasileira, e
destrinchou e expôs a verdade de forma crua, em vários de seus escritos, dentre
eles o elogiado “O genocídio do negro brasileiro – Processo de um Racismo
Mascarado”[1]
, que logo de início parte da desmistificação, de forma contundente, do ensino
oficial e da transmissão oral e escrita sobre a propalada “democracia racial”:
“O que logo sobressai na consideração
do tema clássico deste ensaio é o fato de que, à base de especulações
intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas ciências históricas,
erigiu-se no Brasil o conceito da ´democracia racial`; segundo esta, tal
expressão supostamente refletiria determinada relação concreta na dinâmica da
sociedade brasileira: que pretos e brancos convivem harmoniosamente,
desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência,
nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas. A
existência dessa pretendida igualdade racial constitui mesmo, nas palavras do
professor Thales de Azevedo, ´o maior motivo de orgulho nacional`(...) e ´a
mais sensível nota do ideário moral no Brasil, cultivada com insistência e com
intransigência`. Na mesma direção laudatória, o Jornal do Brasil do Rio de
Janeiro, afirma que “A maior contribuição que nós temos dado ao mundo é
precisamente esta nossa democracia racial`.[2]
De saída, verifica-se que Abdias
parte de uma afirmação por todos tida como certa e a destrói com lógica, quase
aritmética, ao longo dos capítulos que se seguem (quinze capítulos, 229
páginas), desmascarando esta inverdade, com apoio e assinatura de vários
intelectuais, brancos e negros, do Brasil e do exterior.
Por que insistimos nesta temática,
nos últimos escritos da ODIP? Porque é constrangedor vivermos completamente
cegos, em relação à realidade social, que a chamada “quota”, por si, já
emblemática, não conseguiu até o momento desnudar.
Não somos o país da “democracia
racial”, e quiçá, não sejamos o país da “democracia plena”, esta garantida nas
leis e na Constituição – é um começo -, mas de pouca prática, á medida que os
governantes dela abusam com interpretações estapafúrdias da Carta Magna,
somente com o intuito de manutenção do poder. Este não é um mal só nosso, O
mundo atual passa por uma síndrome de abstinência do diálogo e do exercício da
tolerância com o outro, que sem dúvida é a base da democracia e do “Estado
Democrático de Direito”, mas este é um assunto para um próximo estudo, embora
umbilicalmente ligado ao tema deste artigo. Continuando, o fato é que nossa
insistência tem preocupação interna e internacional. Interna, porque as
manifestações dominantes são desastrosas e nos impõem, aos brancos e mesmo aos
negros, uma visão muito distorcida do real, elevando a ficção em verdade.
Internacional, porque tentamos passar para o mundo, somente com base no sistema
jurídico, que alcançamos o prazer da convivência social.
Enquanto, não passarmos a limpo essa
história racial, não vamos progredir e não vamos ser livres. A escola primária
patrocinada pelo Estado, onde o número de pretos, pardos e mulatos é maior,
apesar da boa vontade de seus professores mostra-se manietada, porquanto os
alunos que dela saem não conseguem disputar o mercado de trabalho, e sequer
sobreviver.
O ensino médio já faz ampla
separação, entre brancos e negros, porque este ensino é quotizado, de certa
forma, para aqueles, e a as faculdades, terminam em erigir muros altíssimos
para o alcance dos descendentes de africanos, em quaisquer de suas modalidades.
Podemos nos esconder, enquanto
intelectuais, atrás de falsas ideias, porém do que nos servem, na contribuição
que devemos dar para um país melhor?
Diz Abdias Nascimento, em parte de
suas conclusões: “Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência
mutável, polivalente, que o torna único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se
necessário travar a luta característica de todo e qualquer combate antirracista
e antigenocida. Porque sua unicidade está só na superfície; seu objetivo último
é a obliteração dos negros como entidade física e cultural. Tudo em
conformidade com a observação de Florestan Fernandes: ´Uma situação como esta
envolve mais do que desigualdade social e pobreza insidiosa. Pressupõe que os
indivíduos afetados não estão incluídos como grupo racial na ordem social
existente como se não fossem seres humanos nem cidadãos normais (grifos
nossos)’”
Aviso aos que se debruçarem sobre
estas poucas linhas (preconceituosos de plantão), que não sou negro nem mulato,
meu pai era tcheco e minha mãe, descendente de italianos, todos brancos e
alguns de olhos azuis e cabelos loiros, mas sou, sem dúvida, um cidadão
brasileiro, professor, preocupado em fazer valer o que está Constituição da
República, em especial, nos seus artigos 1º., 3º. e 4º., em resumo: soberania,
cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa, pluralismo político, construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, prevalência
dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, repúdio ao terrorismo e ao
racismo, dentre outros.
Não são palavras. Está na
Constituição Federal!
[1] Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – Processo de
um racismo mascarado, com textos de Florestan Fernandes e Elisa Larkin
Nascimento, Editora Perspectiva. 4ª. edição.
[2] Ibidem, p. 47/48.
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