sexta-feira, setembro 02, 2022

O Direito Internacional, o Estado e a eficácia

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado



O Direito Internacional passou e passa, rapidamente por diversas fases, e quando o estudioso pensa que se apropriou de seu instrumental e de sua técnica, surpreende-se com a sua ignorância. O que parecia uma ilha, era, na verdade, um vasto território; o que parecia um vasto território, era o próprio globo terrestre; o que parecia o globo terrestre, ora se apresentava, como algo sutil, espiritualmente posto; o que parecia política e fato, era jurídico; o que parecia juridicamente positivado, era filosofia jurídica; o que parecia filosofia jurídica, era essencialmente humano e prático; o que parecia um sonho, era a realidade.

O Direito Internacional, como sistema, não é primitivo e incompleto como sempre se divulgou, porquanto nele se pensou com os parâmetros positivistas das demais matérias do mundo jurídico.
Há de se inquirir: existe Direito sem sanção? Existe ordem jurídica sem regras rígidas que devam ser obedecidas sob alguma penalidade?


Efetivamente, comparar o Direito Internacional com as experiências internas dos Estados é negá-lo, porque é sabido que não tem as mesmas características, embora não deixe de ser Direito e de ter a sua eficácia; eficácia esta que não depende de sanções e de forças coercitivas, e “hard law”, mas de cooperação, convencimento, de “soft law”, de ductilidade, adaptação, de reconhecimento dos diversos modos de ver o mundo, da interação entre os povos, independentemente de suas diferenças. 

E quem disse que as ordens jurídicas dos Estados, somente são assim consideradas, por que são sancionadoras? Uma ordem jurídica sobrevive como ordem, por determinar rigidamente os caminhos, ou sobrevive porque os caminhos determinados são tidos como corretos? Desobedecesse amiúde, em todos os níveis as ordens postas, quer seja na área política, na área criminal, na área tributária, na área comercial; as cadeias estão lotadas, os mandados de prisão pululam, as intimações de pagamento percorrem o território, os ocupantes do poder, tergiversam e contrariam os deveres mais básicos, as Constituições são desrespeitadas, as autoridades assinam papéis e ficam de joelhos para os interesses dominantes, interpretam-se as leis de acordo com os interesses de grupos, mas todos assistem os desfiles militares nas datas emblemáticas, fazem discursos a favor dos pobres, desajustados e famintos, pregam os direitos humanos, enquanto andam pelas ruas bandos de esfomeados e maltrapilhos. Pergunta-se: a ordem jurídica, como a juridicamente concebemos, funciona? É uma ordem, e isto é o Direito?


Ainda que não confundamos ordem jurídica com o Direito, para os efeitos deste artigo, vamos olhar o Direito Internacional como um todo, já que o positivismo encontra-se intimamente ligado ao Estado.

Direito e Estado são realidades indissociáveis, subordinadas, dependentes, na visão clássica, mas há uma nova realidade, e aqui, nos valemos das lições de Jónatas Machado; “Uma importante linha doutrinal sustenta a tese de que o desenvolvimento do direito internacional nas últimas décadas permite que este seja compreendido através da sintaxe, da semântica e da pragmática do direito constitucional. Parte-se da emergência e consolidação de uma comunidade internacional portadora de valores fundamentais, geradoras de normas jurídicas consagradoras de obrigações ´erga omnes`, e da tendência crescente no sentido da codificação dessas normas em termos quase constitucionais. Estes valores fundamentais, radicados na consciência jurídica coletiva dos povos, elevam-se a uma espécie de supraconstitucionalidade autogerativa, materizalizando-se num conjunto de normas básicas da comunidade internacional globalmente considerada, integrando a respectiva ´Constituição` ou `Codex fundamental`. A comunidade internacional apresenta-se, cada vez mais, como comunidade constitucional, em contraponto à dimensão parcial assumida com intensidade crescente pelo constitucionalismo nacional...(...) Se um conjunto crescente de povos escolhe, em sede constituinte, os valores dos direitos humanos, da democracia, do Estado de direito, da resolução pacífica dos conflitos, da justiça social, do desenvolvimento sustentável, etc., para regerem a vida interna dos respectivos Estados, pode razoavelmente inferir-se que os mesmos povos pretendem que as relações internacionais em que participam se subordinem àqueles valores, atribuindo-lhes uma função materialmente constituinte do direito internacional.[1]


A partir daí podemos, com toda propriedade, dizer: o Direito Internacional existe, é cogente nas suas normas e princípios comuns, e os Estados a ele devem obediência, que não se traduz em cláusulas contratuais e/ou convencionais, e nem se há de reduzir as obrigações estatais – independentemente de ideologia ou de governo – em adesões, ratificações e assinaturas previamente formalizadas. As matérias referentes aos direitos humanos, a paz e a segurança internacionais, a organização da economia e do comércio internacional, a proteção dos espaços internacionais e do meio ambiente, grassam na vontade coletiva dos povos, dos seres humanos, e na finalidade e contexto maior das próprias organizações internacionais.


O Direito Internacional não é política e não é fato. É Direito com todas as suas implicações.
 

[1] Machado, E.M.Jónatas – Direito Internacional – do paradigma clássico ao pós-11 de setembro, Coimbra Editora, 3ª. edição, p,51/52.


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