Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional
da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional
Público e Privado
Iemanjá, nascida do consórcio de Obatalá, o céu, com Odudua,
a terra, deusa das águas, que no sincretismo católico é a Nossa Senhora, mãe do
mundo, nos tenta governar, de alguma forma.
Em épocas de esgotamento e decadência, as lendas – nossa
época – se lendas forem, quando bem analisadas, revelam verdades profundas.
Há um inconsciente coletivo (Jung), que aflora nos mitos, nas
alegorias, nos deuses, e são tão reais e verdadeiros, que quase podem ser
tangenciados, e certamente vividos. Nossa pretensa vida consciente, nada mais é
do que um pálido reflexo da realidade que está intrínseca em nosso ser.
O inconsciente está levemente sedimentado pelos cascalhos
acumulados ao longo da vida; que por vezes arrebentam entre essas frágeis
paredes e aparecem à luz do sol, com todo o seu esplendor.
Quem somos, afinal?
Há que se duvidar das aparências e das qualificações:
monstros, anjos, seres impensados, que não se denotam, mesmo que olhemos
fixamente no espelho. Van Gogh tentou e até fez um autorretrato, analisando-se,
perscrutando-se, sem uma das orelhas, a direita, que decepou, sem piedade,
oferecendo-a embrulhada, de presente, a uma prostituta da ocasião.
Ele não era a sua orelha, ele não era nenhuma parte de seu
corpo; sob os cascalhos da vida, estava internalizado, onde poderíamos
encontrar o genial artista, que em uma abstinência de álcool – naquele instante
– buscou cortar um pedaço de si mesmo para presentear um momento de amor.
Iemanjá, Mãe-d´Água, também nos remete ao que está
acobertado, e que de tempos em tempos, escapa e se apresenta no vai e vem das
ondas.
O oceano, águas de uma grande bacia global, se agita de um
para outro continente, e boa parte dos seres vivos, em momentos de dificuldade
invocam os deuses, com vários nomes e várias representações, todos,
provavelmente, na pele representativa de Iemanjá.
O Brasil tem sete mil, quatrocentos e noventa e um
quilômetros de litoral, banhado pelo mar. Iemanjá, faz com que as ondas beijem
as praias ou se encapelem raivosas, atingindo as cidades, adentrando o
continente, enfurnando brancos, índios, pretos, todos, de certa forma presos, pelos
grilhões líquidos e inconscientes do domínio, do egoísmo, da insensatez.
Quando os portugueses conquistaram a costa brasileira,
tornaram seus trabalhadores, os índios, que lá viviam da pesca e da caça – o
paraíso prometido; depois inauguraram a rota da escravidão – Brasil/África – e
a partir daí, o território nacional passou a ser o encarceramento de almas, em
busca de romper as cadeias civilizatórias para um novo mundo.
Iemanjá, sempre prestimosa, buscou trazer mensagens de paz –
vagas suaves no mar azul – e molhar as areias, com suas lágrimas e desvelos,
embora, também se exalte, e irada, em conjunto com outros deuses,
principalmente Inhaçã, deusa dos ventos e da tempestade, faça multiplicar as
águas, nos campos e nas cidades, como desastres infindáveis, mortes e
sofrimento. Vem através dos cascalhos coletivos e individuais, e nos abraça,
nos perdoa e nos castiga, por continuarmos a derrubar as matas, a matar os índios,
a escravizar, a impor a todos a fome, a sede e o abandono e os planejamentos
marginais.
Iemanjá,
Iemanjá,
Azul, azul do mar,
suba no horizonte;
e os continentes,
a navegar
nas suas ondas,
sinuosas,
sabe-se
lá,
onde vão parar!
Que Iemanjá e os deuses tenham pena de nós!
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