quinta-feira, dezembro 17, 2020

PEIXE VIVO

 


No nosso artigo anterior, falávamos do papel da diplomacia presidencial e sua importância nas relações internacionais. A Presidência da República, concluímos, não precisa ser ocupada por pessoa de conhecimentos específicos nesta questão, ou mesmo na maioria das questões. Não se espera isso daquela figura.

Nesta semana o Senado Federal negou (em situação com raríssimos precedentes, um deles remontando a Jânio Quadros, o que só reforça a gravidade do caso agora) a indicação feita pelo Itamaraty de diplomata para o posto de delegado permanente do Brasil na ONU em Genebra. O cargo, importante por si próprio, tem recebido mais destaque nos últimos tempos dada as posições que a diplomacia brasileira vem defendendo a partir das ideias do atual Governo Federal. O que nos leva à questão central: a representação internacional do Brasil é posicionamento de Estado ou de Governo?

A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 4º, define com clareza que o Brasil se regerá, em suas relações internacionais, pelos princípios ali definidos. Dentre eles, podemos observar a prevalência dos direitos humanos, a defesa da paz, o repúdio ao racismo, anotando ainda a Constituição que o Brasil buscará a integração dos povos da América Latina.

Naturalmente a cada mandatário é assegurado o direito de estabelecer suas agendas, suas prioridades e se há algo do qual não se pode culpar a atual Presidência é de estelionato eleitoral. Dito isto, é sua obrigação, nas relações internacionais, seguir a posição de Estado, a partir dos princípios constitucionais. Desvirtuar isso é desvirtuar o poder conferido para o exercício da Presidência da República e parece claro que os princípios do artigo 4º destacados acima não apenas não são observados mas também claramente afrontados O próprio diplomata indicado, ainda que de carreira, vem atuando de forma a claramente atender ao posicionamento político do atual governo, contrário a tais princípios.

Ou seja, a Constituição define o posicionamento do Estado. A Presidência da República deve definir suas prioridades e guiar suas ações no plano internacional à luz de tais princípios. Nos parece claro que não é o que vem ocorrendo.

Antônio Houaiss (o do dicionário mesmo) trabalhou na documentação presidencial de Juscelino Kubitschek e “descrevia JK como homem aberto, auditivo, receptivo, fino sistematizador. Recebia informações novas e as incorporava de forma permanente, redisciplinando seu espírito. Ficava grato a quem lhe trouxesse ângulos inesperados. Não tinha preconceitos ideológicos: ouvia adversários e opiniões discordantes e não se importava com a orientação filosófica ou doutrinária do interlocutor. Aceitava a palavra dos estigmatizados da esquerda, assim como os conselhos moderados das raposas de antanho. Vivia na transição de dois Brasis e saltitava na corredeira da história, justificando o apelido pelo qual ficou conhecido”*

                Juscelino usou, de forma intensa inclusive, da prerrogativa de enviar aos postos nas embaixadas no exterior indicados políticos, não diplomatas de carreira (o que, de resto, foi hábito comum aos presidentes brasileiros até meados dos anos 2000). Mas não o fazia ao arrepio da Constituição. Não apenas porque a Constituição de então não trazia definições tão precisas, mas também pela ciência de que, nas relações internacionais, ainda que por sua indicação, os diplomatas deviam defender posicionamentos de Estado e não de Governo.

                O peixe vivo sabia nadar aquelas águas.

 

                                                                                            Por Fabrício Felamingo

 

* Trecho extraído de “JK -  o artista do impossível”, de Claudio Bojunga, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, página 358.


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