segunda-feira, maio 29, 2023

O domínio reservado dos Estados

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Há um conflito conceitual no mundo moderno entre o Direito Internacional e a soberania dos Estados, sendo que uma das formas de concretização desta, o chamado “domínio reservados Estados”.

Não se observa a existência de uma regra que conceitue ou defina tal domínio, ficando no ar que este espaço existe e deve ser respeitado por todos os Estados e pelos organismos internacionais.

O fato é que, com o tempo, vem diminuindo o espaço do que é reservado para o Estado, em face do aumento das normas e princípios de Direito Internacional, advindos, principalmente dos tratados e convenções internacionais, bilaterais ou multilaterais. À medida que o Estado adere a um tratado (negocia, assina, ratifica, incorpora), se vê obrigado a admitir que a soberania exercida sobre o seu território e sobre o seu povo, não é total, tendo em vista a necessidade de cooperar com os demais Estados e com a sociedade internacional, desenvolvendo uma convivência pacífica e colaborativa.

Em uma época que as fronteiras não representam mais uma barreira intransponível, o Estado recebe - querendo ou não - influências do exterior, e mais do que isso, os efeitos jurídico-políticos de atos praticados por outros Estados e por organizações internacionais; e, também estende seus interesses para outros territórios, quer seja na área econômica, na área política, na área social ou jurídica. As fronteiras do Estado, embora definam o seu território, revelam-se mais como portais que podem e devem ser abertos para que se transite – via de mão dupla – os atos estatais, nas relações internacionais, cada vez mais intensas e necessárias.

Ninguém, nenhuma organização, nenhum ente público e nenhum ente privado, consegue viver só. Impossível concretizar as mínimas demandas administrativas, quando se fecham em seus próprios campos de domínio.

Entre a necessidade internacional, que não pode ser afastada, nem filosófica nem ideologicamente, e a independência e autonomia do domínio de suas próprias decisões e consequências, o Estado hesita e faz hesitar o próprio sistema internacional, por ele próprio engendrado.

Não há dúvida que este sistema só existe por iniciativa dos Estados, que nele se inserem como criadores e ao mesmo tempo como criaturas. Todavia, esta natural interação produz problemas. Inquirir, quais os mecanismos de solução, em um caso concreto, se é que se revelam claros, é tarefa insana para os teóricos e para os práticos, que raciocinam e toma decisões em nome do Estado e das organizações internacionais.

De início, a resposta parece negativa. Na verdade, não há clareza, desde a Liga das Nações e passando pela Carta da ONU e pelas Cartas Regionais. Em outras palavras, todos entendem e não duvidam, que o Estado tem um domínio que é seu, reservado, mas o tamanho desse domínio, sua área de extensão e quando pode ser invocado e respeitado, é um sítio a ser sempre medido e desvendado.

Dentre as normas que embasam o domínio reservado, pode ser mencionado o art.2, inciso 7. Da Carta das Nações Unidas: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta, este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constante do Capítulo VII.

Quais assuntos que dependem essencialmente da jurisdição de qualquer Estado? Podemos imaginar os referentes à sua administração interna: correios, portos, aeroportos, transportes em geral, distribuição de alimentos, organização da força militar, organização do sistema jurídico, sistema tributário, sistema de saúde, sistema eleitoral, e outros de igual natureza.

No entanto, nem todas as áreas estão blindadas, por si, de uma intervenção internacional, em casos gravíssimos, ou que fujam à normalidade, ou por uma total incompetência do governo, ou pelo exercício descontrolado das próprias razões do governante. Afinal, a base de tudo, é o ser humano; para ele volta-se a economia, para ele volta-se o Direito, para ele volta-se a saúde, para ele voltam-se as benesses da vida, e o Estado é um instrumento de realizações da sociedade que lhe está subjacente.

Vejam que o artigo em referência, após dizer da proibição em assuntos internos, ressalva a aplicação de medidas coercitivas. Os limites estão postos; limites da soberania e limites da ordem internacional.

O Capítulo VII, diz respeito às ações que ameacem a paz, a ruptura da paz e aos atos de agressão, que serão tomadas pelo Conselho de Segurança, mas, em princípio, sem o uso da força: “Art. 40. A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no art. 39, convidar as partes interessadas a que aceitem as medidas provisórias que lhe pareçam necessárias e aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os direitos e pretensões, nem a situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas.” E mais adiante, no art.41, diz quais são as medidas possíveis “interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou qualquer de outra espécie e o rompimento das relações diplomáticas. E no art. 42 complementa que “se tais medidas se mostrarem inadequadas, poderá se utilizar de forças aéreas, navais ou terrestres.

Assim, não está no domínio reservado dos Estados a agressão, a ruptura da Paz e a ameaça a Paz. Outras atividades, devem ser analisadas, ante os binômios: fato e norma e fato e princípios internacionais, em que se possa divisar a infringência dos direitos humanos, a matança, a escravização do povo, as perseguições, a fome, a guerra interna incontrolável, o genocídio etc.

O fato é que o ser humano vive no globo e não é possível que suas ações, preocupações e interesses estejam apenas constritos ao território em que vive. Esta é a nova realidade dos séculos XX e XXI e o poder estatal será mais poder quanto mais cooperar com a comunidade internacional, porque não se concretizará tal poder se agir apenas em seu território, desconhecendo e afastando as influências alienígenas, em um mundo globalizado.

Especificar, em cada caso concreto, o domínio reservado do Estado, não é tarefa automática e simples, mas os parâmetros encontram-se nos princípios internacionais e na interpretação equilibrada e cautelosa da Carta das Nações Unidas, diante dos fatos.

O Direito não é mágico e se concretiza na sociedade, com linhas tênues e de convencimento, para equilibrar regras e princípios.

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