quarta-feira, maio 17, 2023

Um mundo em crise: O certo e o errado

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A dúvida assola a todos nós, que vivemos sob a ordem jurídica do Estado. Até que ponto a política interfere na interpretação jurídica, principalmente dos tribunais superiores? É fato que de uns tempos para cá vivemos de incertezas. Antes, um ex-Presidente da República estava condenado e preso e o que estava no poder, segundo ele, não tinha contra si nem uma nódoa de corrupção. Agora não só quem antes era condenado é o supremo chefe da nação, como o que estava livre de manchas aparece todo malhado com envolvimento em suas falcatruas, de pessoas dos três poderes e de elementos do exército, aposentados ou não, segundo as notícias. Antes quem era juiz, estava acima do bem e do mal, combatente do crime, de mãos limpas, perseguindo todos os que se opunham ao Estado Democrático de Direito, no entanto, foi ser ministro da Justiça, daquele que efetivamente contrariava a Constituição Federal, se opunha a Organização Mundial da Saúde, cooptava pessoas para os seus desígnios, mandava com voz autoritária e destituía dos cargos os que lhes contrariassem as intenções políticas, como se fosse um ditador, pouco importando a repercussão econômica e social de seus atos: “O Estado sou eu”. Antes membros do Ministério Público perseguiam provas, expunham na mídia o trabalho incansável, atuavam a bem da Justiça e da sociedade; ora, um desses antigos combatentes entrou para a política, sofreu processo e perdeu o mandato, condenado por manipulação de provas e pela “lei da ficha limpa”!

Parece que a voz da política é mais forte do que a voz da Justiça! Qual a extensão e a medida? Até que ponto os fatos e as forças do momento influenciam as decisões jurídicas?

É certo que influenciam, e é certo que devem influenciar, posto que Direito não é matemática e a lógica do Direito lida com elementos sociais, políticos, psicológicos, econômicos; se assim não fosse, bastaria entregarmos os processos e as decisões jurídicas aos computadores e a tecnologia, que não tem paixões, “resolveria” os nossos problemas. A Justiça não é produto frio e lógico de aplicação da norma sobre um fato. O erro não está na influência dos fatos, está em não considerar a superioridade das regras, que, por óbvio, tem limites de interpretação, e tais limites estão, em última análise, na Constituição Federal.

Os fatos de um dado momento político não podem ser dominantes, a ponto de inverterem objetivo expresso na norma; mas também a norma não se reduz à própria norma, como um elemento lógico, inequívoco, de mensagem clara e insuscetível de interpretação. Poucas escapam disso, excepcionalmente, e com cautela, aquelas que definem os fundamentos da República e da dignidade humana.

Friedrich Muller, ao mencionar o pós-positivismo, faz crítica ao pensamento kelseniano, que tinha no positivismo a resposta para tudo, encerrando a sociedade, o bem e o mal, dentro da regra: “´Pós-positivista` significa também: depois de Kelsen. Hans Kelsen marcou cientificamente o ponto mais alto do Positivismo. Mas ele permanece ainda prisioneiro dos erros do Positivismo: primeiramente, não ver as fronteiras, os limites da língua jurídica –ele queria mesmo reduzir o direito ao raciocínio lógico, traduzi-lo para uma lógica abstrata, uma lógica formal. E, em segundo lugar, excluir a realidade e querer considerar a jurisprudência como ´pura´. Com isso, retira-se do Direito o seu próprio conteúdo. Mas em toda essa atividade trata-se, sim, dos conteúdos materiais (...) Então, a Teoria Estruturante do Direito é intencionalmente ´impura`[1]

Rendemos nossas homenagens a Kelsen –e não poderia ser diferente; trata-se na, Filosofia do Direito, de um divisor de águas– mas o Direito é bem mais complexo, tendo em vista os elementos que o compõem, como supramencionados, porquanto, em parte concretiza-se na norma mas, é também, produto da sociedade, com todas as suas ambiguidades e irresoluções.

Julgar não é tarefa fácil, porque exige do julgador formação ampla, não só jurídica. Concretizar a justiça –como valor– é, então, tarefa quase impossível.

Entretanto, é factível uma aproximação do que se pode dizer ideal, distante do fato, do furor, da cólera, do amor ardoroso e também afastado da logicidade racional e fria. Será que podemos nos aperfeiçoar?

As lições de Bittar são importantes para as nossas divagações: “O poder das mídias de massa (TV; rádio; jornal; revista; blog; redes sociais; etc.) tem a ver com a irradiação, o alcance e capacidade, a autoridade informacional, a facilidade de acesso, a imediatidade e a prontidão da informação. O poder dissuasório das mídias de massa se realiza pela multiplicidade das linguagens, pois se utilizam da imagem, do som, da palavra oral, da palavra escrita, assumindo a capacidade de, em larga escala, veicular com facilidade, sem prerrequisitos, com alcance consciente e inconsciente. Isto tem provocado curiosidade crescente, uma difusão sem precedentes, mas também uma anestesia de consciência e qualidade da informação...(...) Desta forma, o poder das mídias de massa serve como um contrapoder em face de outros poderes sociais (poder político; poder econômico; poder burocrático), de forma a colaborar para informar, visibilizar, fazer-saber, conscientizar, pulverizar, irradiar, garantir transparência, denunciar, controlar, tornar transparente. Não por outro motivo, uma esfera pública midiática íntegra e forte é de fundamental importância para a vitalidade democrática. No entanto, há fronteiras entre o bom e o mal exercício do direito de informar, podendo-se, no exercício destas atividades, conhecer-se de perto, o abuso, a distorção, o deslimite, a manipulação, a sede de lucro, a ganância pelo furo profissional, o incentivo ao rebaixamento qualitativo da informação, a aparência e neutralidade e o uso ideológico real, o controle ideológico de mentalidades, a assunção de uma posição política em face da luta de classes, a alienação e a anestesia na seletividade  de disseminação da informação.[2] E, tudo isso está no julgar.

Não se iludam, todos nós julgamos, desde que acordamos; todos nós somos juízes, e julgamos os próprios juízes, que têm a função jurídico-político (poder do Estado) de julgar. Nós e estes últimos, entretanto, temos que estar atentos à norma e aos fatos, para não incorrer em injustiças e conservar a Democracia.

É o caminho para evolução.



[1] Muller, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional, p.107, 4ª. Ed. Revista dos Tribunais.

[2] Bittar, Eduardo C. B. Introdução ao Estudo do Direito – humanismo, democracia e justiça, p.504, Saraiva, 2018.

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