sexta-feira, dezembro 15, 2023

Ainda Maduro, ainda Essequibo, e outros

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A seriedade passa ao largo dos problemas modernos na vida privada e na vida pública. Dão-se loas somente ao capital, não como forma de melhorar a vida das comunidades e das pessoas, mas como alimentar a ganância do poder e do dinheiro, que em si é poder na vida particular, e quando vem casado com alguma espécie de força institucional, é poder na vida pública.

O que Maduro quer com Essequibo, reivindicar histórica e antropologicamente a propriedade do território que pertencia à Venezuela?

Não cremos, por vários motivos, deles, o principal: é que Maduro não tem formação intelectual para tanto e, durante o seu governo, adquirido pela morte de Hugo Chaves e pelas instruções enviadas pelo falecido, em espírito, ao seu pupilo, nunca se preocupou com este território, como objetivo governamental e parte intrínseca do povo venezuelano.

Então, qual é a proposta de Maduro?

Para a mídia é reassumir o que pertence à Venezuela; para o público interno é insuflar o orgulho nacional desgastado pelos imperialistas dominadores da América Latina; para ele, em especial, é manter-se no poder, de um país falido e arrasado por uma administração voltada para os próprios interesses hegemônicos de poder, com esquecimento do povo, e tomar posse – isto, sim - e mais objetivamente, da riqueza petrolífera e mineral que foi detectada no solo daquela região.

Ainda que por via transversa – por política de poder equivocada - se pudesse alcançar uma justiça histórica para o povo venezuelano, ainda assim, não tem muito sentido essa bravata de conquista territorial, que não mais se justificaria nos tempos jurídicos modernos. Claro, se não fosse a sede de conquista da Rússia sobre a Ucrânia, de Israel sobre o território palestino (independentemente do legítimo direito de defesa pelo ataque sofrido), da China sobre Formosa, e outros tantos territórios em disputa. Todavia, o princípio e a norma internacional não permitem que assim seja.

Não há força cogente aos órgãos internacionais, para impor aos Estados recalcitrantes, penas duras?

Entretanto, este não é o escopo do ordenamento jurídico internacional, que foi criado sobre uma perspectiva democrática, de diálogo e de respeito.

Em termos de Direito Internacional – difícil firmar a essência desse Direito para os leigos (que são quase todos os que fazem a política internacional) – temos um ordenamento jurídico posto a partir de 1945, com fundamento nos seguintes princípios: a) soberania dos Estados; b) não-intervenção de um Estado sobre os assuntos internos de outro Estado; c) prevalência dos direitos humanos; d) respeito aos acordos internacionais (pacta sunt servanda), que é sempre deixado de lado quando os interesses políticos, econômicos e de domínio envolvem alguns entes da comunidade internacional, e outros, que vão na mesma linha de uma sociedade internacional cooperativa e fraterna.

Claro está, que o atual sistema jurídico internacional tem falhas, mas quais sistemas jurídicos – mesmo nos Direitos internos – não têm falhas?

É que – e isso se explica à exaustão nas academias – a ordem jurídica interna é hierárquica, sancionadora, dominada pelo Estado, em relação à sociedade interna, com um corpo de leis, em sua essência rígido, enquanto a sociedade ou comunidade internacional é igualitária, horizontal, não-sancionadora, não-hierárquica, de cooperação, de soberania dos Estados, grandes ou pequenos (sob quaisquer pontos de vista: econômico, militar ou tecnológico).

Ocorre que as falhas apontadas pelos estudiosos – menos estudiosos e mais cegos – é a inexistência de um ordenamento nos moldes dos ordenamentos internos, daí chegarem à conclusão canhestra de que não é uma ordem. Uma das consequências desse pensamento é o de que o Direito Internacional é apenas política internacional, é apenas fato. Ora, se assim se apresenta - e podemos considerar em homenagem ao diálogo, ao estudo e à busca da verdade - não temos solução para o viver em paz, a não ser a solução das grandes potências, dos armamentos, do domínio, do orgulho nacionalista, da necessidade de conquista, que, fatalmente, nos porá, em algum momento, em meio a uma terceira guerra mundial.

Alguns, ironicamente, podem dizer que as guerras aí estão e a ONU e as organizações internacionais nada fazem. Em parte correta a acepção, e em parte míope, porque tais guerras são localizadas e representam focos de resistência a um sistema de direito que, embora não perfeito, se baseia em princípios que são bons para todos os povos, necessitando, é certo, de aprimoramentos essenciais para funcionar, de forma plena, nos séculos vindouros, como maior e efetiva promoção dos seres humanos e de suas organizações, reconhecendo-lhes direitos internacionais e responsabilidades internacionais, independentes dos Estados.

Chegou a hora de reconhecermos que os Estados são importantes sujeitos de Direito Internacional, mas não os únicos, e que essa realidade criativa e técnica (Estado como pessoa de Direito Internacional Público) é dominada por cabeças humanas, nem sempre voltadas para o bem. Enquanto isso não acontece, é fácil declarar a guerra, a invasão, o morticínio, a escravidão, jogando tudo sobre os ombros do Estado: aí diríamos: “o povo russo, o povo chinês, o povo judeu, o povo palestino”, como se tais povos se corporificassem no Estado, encarnando todas as virtudes e todos os vícios e defeitos dos que dirigem e lideram o Estado.

O povo russo tem uma tradição, dotes artísticos, revelou na literatura e na arte em geral, alguns gênios; o povo judeu tem sua história e suas ambições sociais, religiosas e filosóficas e, também, seus escritores e artistas; o povo chinês tem sua organização científica e tecnológica avançada em diversos campos; o povo palestino tem sua ambição de organização social e de Estado independente e de viver em paz. O que esses povos têm a haver com seus ambiciosos dominadores? Talvez a responsabilidade desses povos esteja em que em algum momento elevaram ao poder não os melhores indivíduos, mas os piores. Todavia, isso não os responsabiliza pelos atos de seus mandatários, porquanto não há uma relação intrínseca de vinculação jurídica afiançável, entre os povos e os dominadores, porque mesmo nos Estados democráticos, com eleições periódicas e livres, deve se levar em conta a educação, a economia, a cidadania, plenamente vivida e outros caracteres, que tornariam um povo senhor absoluto da sociedade em que vive.

Respeitar o Estado e a sociedade que lhe é subjacente é uma das tarefas do Direito Internacional. Fazer crer que os princípios e regras de Direito podem ser a salvação para as pessoas individualmente consideradas, para as pessoas consideradas em seus grupos, para os próprios grupos, para as coletividade, para as organizações e instituições criadas nas sociedade internas, para os Estados, mesmo considerando a fragmentação atual dos poderes dentro da sociedade uma sociedade pluralista, é o caminho do Direito Internacional –enquanto Direito, repleto de obstáculos, psicológicos, sociológicos e econômicos– não mais um Direito dos Estados, mas um Direito dos atores e sujeitos internacionais, com o reconhecimento de que o Estado é apenas um desses sujeitos.

É a única luz que temos no Direito e no Direito Internacional, a compreensão dessa simbiose, entre Estados, indivíduos, organizações estatais e não-estatais, e o cumprimento dos objetivos de segurança e paz internacionais. Não há saída, ou só restará o “salve-se quem puder”.

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