quinta-feira, novembro 19, 2020

A Diplomacia Presencial

 


                                                                                                                                    
É sempre muito difícil dar créditos integrais a relatos políticos na primeira pessoa. Assim, autobiografias políticas sempre devem ser lidas com o devido cuidado. Feita essa ressalva, e protegidos pelos até 25 anos de distância entre os fatos ali narrados, os 4 volumes dos Diários da Presidência escritos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ilustram alguns momentos e impressões que são, no mínimo, interessantes para o cenário político (brasileiro e internacional) deste momento.

Em maio de 1995 FHC era recebido, como outros presidentes brasileiros já o foram e serão, pelo então presidente dos EUA, o democrata Bill Clinton. Nos Diários, FHC registrou a fala de Clinton num encontro privado entre os dois: “O que posso fazer para te ajudar? Que posso fazer para ajudar o Brasil? O que nós podemos fazer juntos?”. Uma conversa bastante amistosa, termo usado mesmo por FHC para esse registro. Cinco anos depois, o presidente dos EUA era o republicano George W. Bush, e os registros de FHC continuam mostrando boas conversas entre ambos (ainda que seja notória a amizade entre Clinton e Fernando Henrique), a ponto de Bush procurar o então presidente brasileiro até para auxiliá-lo em assuntos que não dizem respeito ao Brasil ou à América Latina, como o relatado nos Diários em abril de 2000. Bush, na ocasião, ligou a Fernando Henrique para solicitar que este, que receberia o presidente da China em viagem ao Brasil, intercedesse a favor dos EUA em questão diplomática sensível – na ocasião, um avião espião norte-americano se chocou, sobre o Mar da China, com um caça chinês, causando a morte do piloto do caça e a detenção, pela China, da aeronave e dos 24 tripulantes norte-americanos até que os EUA se desculpassem. Bush explicava a FHC que já havia se desculpado e solicitava que este explicasse isso ao presidente chinês.

Hoje, passados 20 e 25 anos destes momentos, alguém imagina o mesmo ocorrendo? Tem o Brasil ainda o mesmo respeito diplomático, a ponto de não apenas o competente e profissional corpo diplomático brasileiro mas o próprio presidente da República ser relevante a ponto de ser invocado a ajudar internacionalmente em questão que, em absoluto, envolve o Brasil? Infelizmente a resposta é um público e notório não.

A diplomacia presidencial, ou de cúpula, não é naturalmente a diplomacia profissional que as relações internacionais entre os Estados demandam, nem se espera que o chefe de Estado seja sempre o mais hábil diplomata. Porém, enfraquece e muito o corpo diplomático de um Estado quando há, por parte do chefe do Executivo ou o Ministro das Relações Exteriores, uma contaminação de desejos pessoais na própria representação internacional da nação. Foge não apenas aos manuais do Direito Internacional e da diplomacia mas ao manual prático do bom senso em si.

Ainda FHC: “procurei imprimir à política externa a prevalência de nossos interesses, mantendo boas relações com todos, sem sublinhar diferenças ideológicas ou preferências pessoais. Nisso fui ajudado por Felipe Lampreia e por Celso Lafer, bem como por vários de seus colaboradores”.

O relato em primeira pessoa sempre é parcial. Mas a cada dia que passa fica claro que o maior feito da atual presidência será lustrar a biografia dos seus antecessores, sejam quais forem.

 

Fabrício Felamingo



Bibliografia

CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência – volume 1 (1995-1996). 1ª edição. São Paulo, Cia das Letras, 2015.

__________________________ Diários da Presidência, – volume 4 (2001-2002). 1ª edição. São Paulo, Cia das Letras, 2019.


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