segunda-feira, setembro 11, 2023

Um Estado não corrupto

 

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Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A corrupção do Estado e do agente do Estado, na corrupção total dos relacionamentos (esta expressão é nossa), é, segundo Fernando Calderón Manuel Castells, “um traço sistêmico da América Latina do século XXI”[1]. Em sua análise serve-se de dados da Transparência Internacional para explicar que países como Chile, Costa Rica e Uruguai apresentam nível baixo de corrupção, o que significaria que nos demais o nível de corrupção é maior. Interessante a avaliação que segue a esses dados, ao observar: O Chile teve a ditadura de Pinochet, que estabeleceu um Estado semipredador e que se apropriou de benefícios e recursos públicos, em benefício do ditador e de seus seguidores mas, como reação, a partir de 1990 teve restabelecida a Democracia e instaurada a institucionalidade na magistratura e o profissionalismo na administração pública.

O segredo da possível estabilidade pareceu estar na manutenção do mercado – este não poderia ser abandonado - centrado na exportação  e no prestígio aos direitos humanos, - que com Pinochet não existiam – aumento salarial acordado com os sindicatos e a criação de uma rede de segurança em educação – mais livros e professores, e não o contrário, a inserção tecnológica e digital, de textos sem conteúdo educacional válido, repleto de erros históricos, geográficos e filosóficos (como vimos, recentemente acontecer, sabe-se lá de onde foram tirados!), bem como política de saúde e de aposentadoria.[2]

Poderíamos ir por caminho similar, sem radicalismos ideológicos, mas consagrando – aí sim, de forma extremada – a Democracia, as eleições, a cultura, a diversidade de ideias, o ensino para a vida civil (entendemos que a vida militar, necessária e imprescindível para a defesa da nação, está dentro do propósito maior da sociedade civil), a ciência, o incentivo à pesquisa em todos os campos, a literatura e a todas as formas de arte e de esporte.

É inacreditável – permita-nos a dúvida do momento -  a chamada dança dos ministérios nos governos que se formam! Os ministros de um presidente devem auxiliá-lo nas áreas técnicas em que o chefe de executivo não tem obrigação de conhecer – basta ser ele o líder do governo -, como na educação, na economia, no trabalho, no esporte, na saúde, na indústria e comércio, nas relações exteriores e outras, e não serem, como hoje são, moedas de trocas para prestigiar partidos políticos e pessoas, que velada ou abertamente, possam ameaçar a votação de um projeto para o bem público, se não tiverem partes do poder (o Presidente da República, seja ele quem for, não pode ser refém de interesses menores). Onde se encontra a República nessa forma de agir? Onde está a preocupação com o povo, nisso?

Claro que o diálogo com todos os partidos e com todos os políticos é fundamental à medida do que efetivamente representam para a sociedade. É o que realmente acontece, na atualidade?

A corrupção é um caminho natural em tais questões: corrupção ampla, que leva em conta os nichos do poder, da influência, do mando predatório. E quem disse que o civil é errado pelos caminhos que toma na condução da coisa pública, e o que possui a legalidade do uso das armas e dos uniformes não erram, nos mesmos caminhos? A questão toda se insere na educação para a vida social? Todos podem serem corrompidos, se não tomarem cuidado com as próprias ações.

Tais considerações não importam em afastamento de nossa crença particular de que as instituições estão corretas e que aqueles que as ocupam são, em geral, dignos de as ocuparem. O Brasil é maior do que todos, e só haverá possibilidade de progresso enquanto acreditarmos na ordem jurídica posta, como ora posta, com os princípios inseridos na Lei Maior de 1988.

A falsa questão dos direitos humanos versus combate aos “bandidos e vagabundos” nos leva, no mínimo, a erros de percepção administrativa ou a corrupção política. Não se termina com a “bandidagem” matando; mata-se um grupo de bandidos e outros se criam na mesma proporção, e às vezes com mais força. Direitos humanos são de todas as pessoas e não de classes específicas; devem ser a espinha dorsal da sociedade, a base de seu Direito, a argamassa do seu edifício, a coluna de sua sustentação (aliás está na Constituição Federal). Boa parte dos chamados “bandidos” e drogados ou passadores de drogas, foram criados em condições injustas, sem oportunidade, sem ensino, sem família, sem emprego, sem comida. Há os que, apesar de terem tudo, se desviam do caminho, mas certamente não são a maioria do contingente dos marginalizados.

Por que não reconhecer que a nossa sociedade é essencialmente injusta e antidemocrática? Talvez, para manutenção do poder: os privilegiados, não querem dialogar nunca, só querem reprimir os que ameaçam, de algum modo seus refúgios. Os “bandidos” no fundo pensam de igual modo, querem seus retiros, seus remansos, suas edículas, seus nichos de domínio e para isso buscam assaltar, matar, obter coisas: transformam-se em comunidades paralelas, com os seus próprios poderes, Executivo (o líder manda), Legislativo (as regras criadas pelo grupo devem ser obedecidas, sob pena de morte) e Judiciário (o julgamento é por um tribunal “ad hoc”, com juízes formados pela ordem jurídica da facção). Estados paralelos, dentro do Estado oficial, tudo por causa da corrupção intrínseca de agentes estatais, que cegos não enxergam o mal que fazem.

Os “bandidos” são criados por nós, que depois sofremos e gritamos porque nos encontramos nas mãos deles!

Que tal começarmos a agir de acordo com a Constituição Federal, com as leis infraconstitucionais e, quando estivermos em algum lugar do poder, na família, na empresa, no Estado, praticarmos o bem; não há necessidade de que seja o bem de Cristo, ou do bem de Buda, ou de qualquer outro avatar iluminado, mas simplesmente o do bom senso: a liberdade de falar e de ouvir, de argumentar e de raciocinar, de viver individual e coletivamente. A simplicidade de respirar, olhar, viver!

A corrupção do Estado é a corrupção dos nossos valores; a corrupção de todos nós. Menos livros, menos professores, mais armas, mais dinheiro, mais medalhas, mais panegíricos aos que nos dominam e menos raciocínio e humildade; em assim sendo, dúvidas não existirão: continuaremos a ser apenas o país do futuro.

Quando virá?



[1] Castells, Fernando Calderón Manuel. A nova América latina, Zahar, 1ª. Edição, p.297.

[2] Ibidem, p. 298/299.

sexta-feira, setembro 01, 2023

Normas internacionais: “hard law” ou “soft law”


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

As normas de Direito Internacional, como todo e qualquer norma, tem a sua proposição – o que é de direito – e estabelece as consequências. Sua estrutura, portanto, geralmente advinda dos tratados internacionais, não é diferente da estrutura das normas internas dos diversos Estados.

Entretanto, põe-se em dúvida a sua real efetividade, uma vez que ela não advém de um Poder legislativo ou equivalente, que imponha aos seus jurisdicionados uma determinada conduta.

Lembremos que, de certa forma, a vida jurídica internacional busca seus modelos básicos no
Direito Interno dos Estados, e até propicia esferas de julgamento de casos conflituosos, por Cortes específicas, com regras sobre “quórum”, apresentação de provas, argumentação de defesa e de ataque e alguma espécie de penalidade para os infratores.

Lembremos, ainda, que não só os Estados entram em conflitos, tendo em vista a interpretação de princípios e normas, e a atuação dos organismos internacionais, bem como, na vida atual, o próprio ser humano se vê envolvido em questões internacionais e pode vir a ser julgado pelo cometimento de atos ilícitos na esfera mundial, independentemente dos Estados.

Por outro lado, os princípios internacionais e o costume são tidos “lato sensu” como normas, que devem ser obedecidas, embora nem sempre se tem certo, a consequência de eventual infringência.

Assim, temos uma variedade de normas internacionais, das mais diversas origens, que buscam harmonizar e mesmo uniformizar as relações internacionais.

A grande maioria das normas internacionais são produzidas pelos próprios Estados, em tratados internacionais multilaterais e bilaterais, que eles mesmos se propõem a cumprir; isto é, são ao mesmo tempo os legisladores e aqueles para os quais as normas são dirigidas, quando não os julgadores do descumprimento. Em suma: na sociedade internacional, o poder de impor normas, de cumpri-las e julgá-las, é diversificado e fragmentado, inexistindo poderes eleitos e com organicidade, perfeitamente delimitada.

Entretanto, as normas existem, são tidas como tais e em geral são acatadas. Se entendermos que a sociedade, seja ela qual for, interna ou internacional, se mantém íntegra por instrumentos de contenção, de repressão e de premiação das boas práticas, as normas internacionais cumprem o seu papel e formam um sistema jurídico, porque sobreleva no horizonte internacional um “ius cogens” composto de normas tidas como fundamentais, como as que são de direitos humanos, ainda que não provindas de tratados.

A pergunta que fica para a pesquisa acadêmica é se tais normas prevalecem por serem “hard law” e/ou por serem “soft law”?

Aqui há uma provocação, porque muitos estudiosos não dão ao Direito Internacional a natureza de Direito e não veem no sistema internacional, um sistema jurídico.

Opiniões à parte – todas respeitáveis – entendemos que são normas e que o sistema jurídico existe: algumas rigidamente postas, com consequências estabelecidas pela eventual indisciplina; outras, revelam-se mais atuantes pela expectativa do cumprimento por todos, e caso este não ocorra, o efeito será de prejuízo econômico, social ou político, o que às vezes é mais temido, do que uma decisão judiciária, do que uma condenação.

Por tais motivos, concluímos que o mundo internacional vive basicamente desse desiderato, dessas expectativas, do que de considerações técnico-jurídicas, muito agosto dos ordenamentos jurídicos internos.

O que releva dizer que as normas internacionais são intrinsecamente de “soft law”. Adaptáveis, às situações, interpretativas, de textura aberta, maleáveis, inquebrantáveis – ou, o que se deseja assim – porque se dobram às intempéries dos ventos políticos, mas não se rompem em definitivo; as revoluções, com total quebra do sistema, não são alimentadas e queridas: discute-se; existem celeumas e críticas, mas o Direito Internacional mantém-se hígido; a sua força está na sua aparente fraqueza.

Entender que o Direito, como sistema, somente funciona pela hierarquia das normas e por regras de imputação (Kelsen) até chegar à Constituição Federal e/ou, mais adiante, à chamada “norma hipotética fundamental”, é empobrecê-lo.

O sistema internacional funciona pelo convencimento, pela cooperação, pela idealização do conviver social, em paz, em todas as áreas, no Direito considerado público (que envolve Estados) e no considerado Direito privado (que envolve particulares), tendo em vista o compromisso dos Estados e relativizar as suas soberanias, e criar regras de aceitação do direito estrangeiro.

Não há necessidade de punição e medo, mais do que aceitação. Se aquelas funcionam para o Direito interno, não é certo que funcionem de igual forma, para o Direito Internacional.

Na área internacional somos, basicamente, “soft law”.