Carlos Roberto Husek
Professor de Direito
Internacional da PUC de São Paulo
E um dos coordenadores da
ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.
Séculos obscuros, eis o
passado africano, uma cortina de fumaça é o presente e o futuro continua
envolto em neblina; se os EUA nasceram para dominar a América e o mundo; se a
Itália após a unificação passou a ter cor e personalidade, o que antes
concentrava-se em Roma; se o continente europeu a partir do século dezenove
passou a dominar a história com a composição de vários países que se
reconheceram grandes – Espanha, Portugal, Inglaterra, França, Grécia (que tiveram
passados de glória), Alemanha, que foi grande em certa medida, não pela guerra,
mas pela organização, e outros que dignificaram o ser humano e passaram para o
século XX como arautos da civilização e da eficiência, em países como Holanda,
Suécia, Suíça; se a América central e do sul conheceram histórias e mais
histórias, nos seus domínios colonizados e revelaram países de língua espanhola, com suas riquezas
culturais e diversidade étnica, se o Brasil, que bem ou mal, na expansão de
suas terras teve e tem presença no mundo em vários aspectos, embora, ainda,
fora do concerto político internacional como membro que deva ser respeitado e
ouvido; se a América do Norte tem um
trio de países –ainda que se evidencie o domínio estadunidense– EUA, Canadá e
México, que se posicionam nessa parte do mundo, de forma reconhecida; se a Ásia
fala alto pelo Japão e pela China; se todo o globo terrestre, de algum modo,
revelou-se pelas línguas de seus povos e de suas culturas, o mesmo não acontece
com o continente africano, que teve sim sua história, principalmente nos povos
que vivem no deserto e em torno dele, mas que nos povos da África subssariana,
denominada negra, continua ainda sob espessas cortinas. Afinal, o que é esta África, de povos
parecidos pela cor da pele, de diferentes tribos e etnias, que ora se escondem,
ora surgem, ora falam, quase turgidamente, em rumores, como águas de riacho,
que se ouvissem apenas na alta madrugada, distantes, e envolvidas por montanhas
e floresta. A África que só aparece nos noticiários por suas ossaturas
enterradas nas camadas do passado, e que deram origem, dizem os antropólogos, à
humanidade, mas que agora tem o ventre seco e murcho de onde saiu o bicho homem
que povoou o mundo e não mais retornou às suas origens.
Essa mãe abandonada pelos
filhos que produziu, se exaspera e se digladia, grita ainda pelo deserto, e
aqueles que trouxe ao mundo, espalham-se pelos continentes, e buscam uma voz,
uma representação e ainda são escravizados ou semicivilizados pelos padrões das
cidades, ditas modernas. Século obscuros, eis o passado da África Negra, cortina
de fumaça o presente, e envolto em neblina o futuro.
Por que se tornou escrava
e esquecida? Por que desprezada? Por que seus filhos de pretos se tornaram
indesejados? Afinal, não seríamos todos irmãos de um passado comum? Ou será que
alguns vieram das estrelas, de mundos impensados, em navios de outras esferas e
que aqui implantaram suas sementes, desprezando o animal que já existia e já
vivia na Terra? Porque não há explicação lógica para os eventos presentes,
salvo, talvez, uma fantástica interpretação das origens de astronautas vindo de
outras galáxias e nestas paragens encontraram o povo que realmente o habitava,
o africano. E o africano é uma denominação que mais obscurece o entendimento,
porque sob tal denominação há uma variedade de povos e de nações.
Nos fixemos na África Negra,
que nasceu sobre o signo do comércio e da exploração, de todas as mercadorias
possíveis e imagináveis (especiarias, pedras, marfins, peles, óleos, animais)
até a oferta de escravos. Dizem que um faraó da quinta dinastia tinha entre os
seus comandantes, um, chamado “Baurzeded, que lhe trouxe das terras do sul, um anão
(negrilho), o primeiro conhecido na história do Egito faraônico...(...) estamos
nesse caso visivelmente em presença não de um comércio regular nem de um
tráfico escravagista, mas de uma operação excepcional de rapto, cercada de
todas as garantias para evitar a perda ou a fuga da preciosa mercadoria, objeto
de curiosidade.
Na verdade, o tráfico de
escravos veio por caminhos muito antigos escavando uma história que é difícil
entender, com os mulçumanos, árabes, europeus, todos eles envolvidos com o
comércio de escravos. Portugal envolveu-se como traficante, fez as terras da
América do Sul banharem-se de sangue, quando as ações eram extremas e disseminou
a obediência cega e a subserviência ajoelhada a medo. O que resultou? Uma
sociedade extremamente injusta, desagregada, subdividida em camadas, em que no
ápice da pirâmide alguns poucos dominam, os mesmos, de cepas antigas e/ou
assemelhadas. Vieram dos reis e imperadores, dos barões e condes e baronesas e
condessas, que enquanto os homens negros serviam ao patrão, as mulheres negras
serviam de baba e ama de leite das crianças brancas, serviçais e damas de
honra, e satisfaziam os apetites de seus amos, produzindo filhos proscritos,
que geraram outros que não conheceram suas raízes, e que afeiçoaram a todos os
serviços e a todos os mandos.
Não se olvide que quando o
comércio foi instalado, os próprios negros, chefes e poderosos em suas terras
comerciavam com portugueses, espanhóis e outros a entrega de sua gente em troca
de produtos. Portanto, o signo da escravidão negra, revelou-se mais como um desenvolvimento
comercial dos interessados, independentemente da cor da pele. Na verdade, a
escravidão, recentemente, na história (séc XVI), tornou-se quase sinônimo de
escravidão negra. Antes, já existiram escravos, não negros, na Grécia, em Roma,
nos Balcãs, no sul da Rússia, no Oriente médio; alguns escravos tinham a pele
branca e os olhos azuis. Tornou-se mais decisivamente negra de tempos para cá,
o que faz inquirir sobre a causa.
É Laurentino Gomes quem
esclarece, incluindo a etimologia da palavra: “Escravo, em português; esclave,
em francês; schiavo, em italiano; slkave, em alemão; ou slave, em inglês, são
todas palavras derivadas do Latim slavus, que, por sua vez, servia para
designar os slavos, nome genérico dos habitantes da região dos Balcãs, Leste
Europeu, sul da Rússia e margens do Mar Negro, grande fornecedora de mão de
obra cativa para o Oriente Médio e o Mediterrâneo até o século XVIII. Ou seja,
nesse caso, os escravos eram geralmente pessoas brancas, de cabelos loiros e
olhos azuis. Entre 1468 e 1694, os tártaros da Crimeia capturaram cerca de 2
milhões de russos, ucranianos e poloneses. As importações de escravos brancos
das regiões vizinhas ao Mar Negro pelos otomanos de Istambul foram de 2,5
milhões entre 1450 e 1700. No ataque a Viena, em 1863, os otomanos capturaram
cerca de 8 mil escravos cristãos, todos igualmente brancos.”[1]
Todavia, em nossos dias,
concentramos na escravidão negra porque esta, de certa forma, não terminou. Os
outros povos aqui mencionados conseguiram a liberdade, formaram suas nações e
Estados, os negros continuam divididos na África e disseminados de forma
inferiorizada em diversos países do mundo, incluindo o Brasil.
Trata-se da cor, mas
também do poder político e, principalmente, do poder econômico, bem como a
falta de estudos, a lacuna intelectual dos pensadores atuais sobre a África
negra e seus descendentes. Não há como, em pouquíssimas gerações – falamos do
Brasil – de 1500/1600 para cá, o preto se ver alforriado para integrar-se na
sociedade, como uma de suas cabeças condutoras, porque quase sempre encontra
obstáculos, que não permitem sua evolução. A quota nos diversos setores é um
passo, mas um passo irrisório, uma vez que a base social, a começar pelo ensino
público, a saúde e a segurança, lhe é vedada no mínimo existencial, para o
verdadeiro progresso.
Ainda assim algum
progresso, com o andar de tartaruga, vislumbra-se na sociedade contemporânea.
Tivemos no Brasil, alguns que se tornaram luzes para os de sua raça: André
Pinto Rebouças (jornalista e engenheiro, líder abolicionista, que esteve à
frente da construção de portos, ferrovias e obras ferroviárias); Sueli
Carneiro (professora universitária, doutora em Educação, ativista do
movimento social negro, fundadora do Instituto da mulher negra); Carolina
Maria de Jesus (escritora, moradora em favela, que escreveu o consagrado
“Quarto de Despejo”); Machado de Assis (cronista, contista, poeta,
romancista, um dos mais consagrados escritores no Brasil e no mundo); Lélia
Gonzales (Doutora em Antropologia Social e uma das fundadoras do Movimento
Negro Unificado); Luiz Gama (abolicionista do século XIX, fundador de
jornal e do Partido Republicano Paulista); Antônio Bento de Souza Castro
(advogado, promotor público, juiz de direito, líder abolicionista, organizou o
movimento dos Caifases, enviando missionários para incentivar a fuga de
escravizados em fazendas de São Paulo); Nei Lopes (advogado, compositor,
escritor, pesquisador; escreveu A enciclopédia brasileira da diáspora africana
e o Dicionário escolar afro-brasileiro, entre outros escritos); Abdias
Nascimento (militante no combate à discriminação racial, participou da
Frente Negra Brasileira, como movimento político negro, fundou o Teatro
Experimental do Negro, foi deputado federal e senador); Milton Santos (professor,
advogado, pensador, escritor, geógrafo – talvez sua expressão maior -foi preso
e exilado por participar de movimentos de esquerda na época da ditadura
militar; um dos maiores nomes da renovação geográfica brasileira), dentre
outros.
É necessário sair desse
século de obscurantismo racial e escravocrata, na economia, na segurança, no
ensino, na intelectualidade, na direção das empresas e dos governos, na
literatura, na filosofia, e nos mais diversos campos sociais. Temos a riqueza da
mistura de raças, que ainda não se fez de efetiva mistura. Necessitamos agir, e
agir não com violência física – que não leva a nada, e só alimenta o ódio (vide
EUA) – mas com a violência do espírito para modificarmos de vez a construção
básica de nossa verdadeira nacionalidade: alimento, emprego, estudo, para todos
e, por certo, para os mais pobres – em sua grande maioria negros– ou entraremos
século afora, daqui para o século XXII, ainda, intrinsecamente, escravocratas.