quinta-feira, janeiro 28, 2021

Séculos obscuros de Servidão: uma reflexão

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo

E um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.


Séculos obscuros, eis o passado africano, uma cortina de fumaça é o presente e o futuro continua envolto em neblina; se os EUA nasceram para dominar a América e o mundo; se a Itália após a unificação passou a ter cor e personalidade, o que antes concentrava-se em Roma; se o continente europeu a partir do século dezenove passou a dominar a história com a composição de vários países que se reconheceram grandes – Espanha, Portugal, Inglaterra, França, Grécia (que tiveram passados de glória), Alemanha, que foi grande em certa medida, não pela guerra, mas pela organização, e outros que dignificaram o ser humano e passaram para o século XX como arautos da civilização e da eficiência, em países como Holanda, Suécia, Suíça; se a América central e do sul conheceram histórias e mais histórias, nos seus domínios colonizados e revelaram  países de língua espanhola, com suas riquezas culturais e diversidade étnica, se o Brasil, que bem ou mal, na expansão de suas terras teve e tem presença no mundo em vários aspectos, embora, ainda, fora do concerto político internacional como membro que deva ser respeitado e ouvido;  se a América do Norte tem um trio de países –ainda que se evidencie o domínio estadunidense– EUA, Canadá e México, que se posicionam nessa parte do mundo, de forma reconhecida; se a Ásia fala alto pelo Japão e pela China; se todo o globo terrestre, de algum modo, revelou-se pelas línguas de seus povos e de suas culturas, o mesmo não acontece com o continente africano, que teve sim sua história, principalmente nos povos que vivem no deserto e em torno dele, mas que nos povos da África subssariana, denominada negra, continua ainda sob espessas cortinas.  Afinal, o que é esta África, de povos parecidos pela cor da pele, de diferentes tribos e etnias, que ora se escondem, ora surgem, ora falam, quase turgidamente, em rumores, como águas de riacho, que se ouvissem apenas na alta madrugada, distantes, e envolvidas por montanhas e floresta. A África que só aparece nos noticiários por suas ossaturas enterradas nas camadas do passado, e que deram origem, dizem os antropólogos, à humanidade, mas que agora tem o ventre seco e murcho de onde saiu o bicho homem que povoou o mundo e não mais retornou às suas origens.

Essa mãe abandonada pelos filhos que produziu, se exaspera e se digladia, grita ainda pelo deserto, e aqueles que trouxe ao mundo, espalham-se pelos continentes, e buscam uma voz, uma representação e ainda são escravizados ou semicivilizados pelos padrões das cidades, ditas modernas. Século obscuros, eis o passado da África Negra, cortina de fumaça o presente, e envolto em neblina o futuro.

Por que se tornou escrava e esquecida? Por que desprezada? Por que seus filhos de pretos se tornaram indesejados? Afinal, não seríamos todos irmãos de um passado comum? Ou será que alguns vieram das estrelas, de mundos impensados, em navios de outras esferas e que aqui implantaram suas sementes, desprezando o animal que já existia e já vivia na Terra? Porque não há explicação lógica para os eventos presentes, salvo, talvez, uma fantástica interpretação das origens de astronautas vindo de outras galáxias e nestas paragens encontraram o povo que realmente o habitava, o africano. E o africano é uma denominação que mais obscurece o entendimento, porque sob tal denominação há uma variedade de povos e de nações.

Nos fixemos na África Negra, que nasceu sobre o signo do comércio e da exploração, de todas as mercadorias possíveis e imagináveis (especiarias, pedras, marfins, peles, óleos, animais) até a oferta de escravos. Dizem que um faraó da quinta dinastia tinha entre os seus comandantes, um, chamado “Baurzeded, que lhe trouxe das terras do sul, um anão (negrilho), o primeiro conhecido na história do Egito faraônico...(...) estamos nesse caso visivelmente em presença não de um comércio regular nem de um tráfico escravagista, mas de uma operação excepcional de rapto, cercada de todas as garantias para evitar a perda ou a fuga da preciosa mercadoria, objeto de curiosidade.

Na verdade, o tráfico de escravos veio por caminhos muito antigos escavando uma história que é difícil entender, com os mulçumanos, árabes, europeus, todos eles envolvidos com o comércio de escravos. Portugal envolveu-se como traficante, fez as terras da América do Sul banharem-se de sangue, quando as ações eram extremas e disseminou a obediência cega e a subserviência ajoelhada a medo. O que resultou? Uma sociedade extremamente injusta, desagregada, subdividida em camadas, em que no ápice da pirâmide alguns poucos dominam, os mesmos, de cepas antigas e/ou assemelhadas. Vieram dos reis e imperadores, dos barões e condes e baronesas e condessas, que enquanto os homens negros serviam ao patrão, as mulheres negras serviam de baba e ama de leite das crianças brancas, serviçais e damas de honra, e satisfaziam os apetites de seus amos, produzindo filhos proscritos, que geraram outros que não conheceram suas raízes, e que afeiçoaram a todos os serviços e a todos os mandos.

Não se olvide que quando o comércio foi instalado, os próprios negros, chefes e poderosos em suas terras comerciavam com portugueses, espanhóis e outros a entrega de sua gente em troca de produtos. Portanto, o signo da escravidão negra, revelou-se mais como um desenvolvimento comercial dos interessados, independentemente da cor da pele. Na verdade, a escravidão, recentemente, na história (séc XVI), tornou-se quase sinônimo de escravidão negra. Antes, já existiram escravos, não negros, na Grécia, em Roma, nos Balcãs, no sul da Rússia, no Oriente médio; alguns escravos tinham a pele branca e os olhos azuis. Tornou-se mais decisivamente negra de tempos para cá, o que faz inquirir sobre a causa.

É Laurentino Gomes quem esclarece, incluindo a etimologia da palavra: “Escravo, em português; esclave, em francês; schiavo, em italiano; slkave, em alemão; ou slave, em inglês, são todas palavras derivadas do Latim slavus, que, por sua vez, servia para designar os slavos, nome genérico dos habitantes da região dos Balcãs, Leste Europeu, sul da Rússia e margens do Mar Negro, grande fornecedora de mão de obra cativa para o Oriente Médio e o Mediterrâneo até o século XVIII. Ou seja, nesse caso, os escravos eram geralmente pessoas brancas, de cabelos loiros e olhos azuis. Entre 1468 e 1694, os tártaros da Crimeia capturaram cerca de 2 milhões de russos, ucranianos e poloneses. As importações de escravos brancos das regiões vizinhas ao Mar Negro pelos otomanos de Istambul foram de 2,5 milhões entre 1450 e 1700. No ataque a Viena, em 1863, os otomanos capturaram cerca de 8 mil escravos cristãos, todos igualmente brancos.”[1]

Todavia, em nossos dias, concentramos na escravidão negra porque esta, de certa forma, não terminou. Os outros povos aqui mencionados conseguiram a liberdade, formaram suas nações e Estados, os negros continuam divididos na África e disseminados de forma inferiorizada em diversos países do mundo, incluindo o Brasil.

Trata-se da cor, mas também do poder político e, principalmente, do poder econômico, bem como a falta de estudos, a lacuna intelectual dos pensadores atuais sobre a África negra e seus descendentes. Não há como, em pouquíssimas gerações – falamos do Brasil – de 1500/1600 para cá, o preto se ver alforriado para integrar-se na sociedade, como uma de suas cabeças condutoras, porque quase sempre encontra obstáculos, que não permitem sua evolução. A quota nos diversos setores é um passo, mas um passo irrisório, uma vez que a base social, a começar pelo ensino público, a saúde e a segurança, lhe é vedada no mínimo existencial, para o verdadeiro progresso.

Ainda assim algum progresso, com o andar de tartaruga, vislumbra-se na sociedade contemporânea. Tivemos no Brasil, alguns que se tornaram luzes para os de sua raça: André Pinto Rebouças (jornalista e engenheiro, líder abolicionista, que esteve à frente da construção de portos, ferrovias e obras ferroviárias); Sueli Carneiro (professora universitária, doutora em Educação, ativista do movimento social negro, fundadora do Instituto da mulher negra); Carolina Maria de Jesus (escritora, moradora em favela, que escreveu o consagrado “Quarto de Despejo”); Machado de Assis (cronista, contista, poeta, romancista, um dos mais consagrados escritores no Brasil e no mundo); Lélia Gonzales (Doutora em Antropologia Social e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado); Luiz Gama (abolicionista do século XIX, fundador de jornal e do Partido Republicano Paulista); Antônio Bento de Souza Castro (advogado, promotor público, juiz de direito, líder abolicionista, organizou o movimento dos Caifases, enviando missionários para incentivar a fuga de escravizados em fazendas de São Paulo); Nei Lopes (advogado, compositor, escritor, pesquisador; escreveu A enciclopédia brasileira da diáspora africana e o Dicionário escolar afro-brasileiro, entre outros escritos); Abdias Nascimento (militante no combate à discriminação racial, participou da Frente Negra Brasileira, como movimento político negro, fundou o Teatro Experimental do Negro, foi deputado federal e senador); Milton Santos (professor, advogado, pensador, escritor, geógrafo – talvez sua expressão maior -foi preso e exilado por participar de movimentos de esquerda na época da ditadura militar; um dos maiores nomes da renovação geográfica brasileira), dentre outros.

É necessário sair desse século de obscurantismo racial e escravocrata, na economia, na segurança, no ensino, na intelectualidade, na direção das empresas e dos governos, na literatura, na filosofia, e nos mais diversos campos sociais. Temos a riqueza da mistura de raças, que ainda não se fez de efetiva mistura. Necessitamos agir, e agir não com violência física – que não leva a nada, e só alimenta o ódio (vide EUA) – mas com a violência do espírito para modificarmos de vez a construção básica de nossa verdadeira nacionalidade: alimento, emprego, estudo, para todos e, por certo, para os mais pobres – em sua grande maioria negros– ou entraremos século afora, daqui para o século XXII, ainda, intrinsecamente, escravocratas.



[1] Gomes, Laurentino. ESCRAVIDÃO. Vol. I, Globo Livros, 1ª. ed. 2019, p, 66.




quarta-feira, janeiro 20, 2021

A Vacinação política

 


Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Coordenador e Professor no curso de pós-graduação latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional Público e Privado). Professor de Direito Empresarial na ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).

 

Enfim temos duas vacinas aprovadas pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) do Brasil depois de muito se discutir sobre porcentagem de eficácia, o que seria sem dúvida razoável e importante dentro do contexto técnico, mas infelizmente ao mesmo tempo em que discutimos também sobre a sua capacidade de transformar o mundo Marvel em realidade por meio de mutações no DNA dos seres humanos vacinados. Pois é, clara é a necessidade de que o ser humano precisa de educação, não somente a formal, para saber a diferença entre a realidade e o ridículo.

Por óbvio, uma campanha de vacinação deve existe com caráter informativo pelo Governo, em todas as suas esferas, e com senso de urgência, para que as pessoas possam se conscientizar de sua importância, tendo em vista a realidade posta e, por seu livre arbítrio e, pensando na comunidade como um todo, tomar a decisão de se vacinar em prol da coletividade. Ao contrário disso, o que testemunhamos foi o absurdo de fomentar que a vacinação seria o fim dos tempos e da raça humana, desconsiderando totalmente o fato de que a pandemia em si já havia chegado antes e poderia desempenhar este papel.

Saindo do campo da educação mencionada acima e ficando somente no campo da informação, a OMS (Organização Mundial da Saúde), organismo multilateral que faz parte da estrutura da ONU (Organização das Nações Unidas), há um bom tempo já vem se manifestando sobre a pandemia, informando sobre as formas de evitar a doença enquanto a vacina ou um tratamento não chegam, de maneira a proteger os seres humanos do contágio, cumprindo assim o seu papel de zelo e padronização das recomendações internacionais no âmbito sanitário internacional, vez que o risco do contágio é global.

Mesmo assim, ao desempenhar seu papel institucional permitido pelas várias soberanias que a formam no cenário da comunidade internacional, a tal harmonização é difícil em função do palanque político internacional, cuja lógica é, no mínimo confusa, quando avaliamos que o direito à vida não é somente um princípio do ONU, mas também uma garantia constitucional de várias soberanias mundiais democráticas, inclusive o Brasil.

Portanto, dentro deste contexto de pandemia e de defesa à vida, não imaginamos espaço para discussões rasas sobre a natureza de tal recomendação da OMS ser meramente uma recomendação técnica em que cada governante soberano pode simplesmente considerar ou não, sob a desculpa jurídica e hipócrita de ser mera soft law e não hard law internacional, por se basear em opinião técnica, médica, sanitária e científica que pode simplesmente ser inobservada por países soberanos, pelo simples fato de discordar por discordar, quando os fatos e impactos mundiais não permitem qualquer tipo de contestação e pelo fato de que as soberanias neste momento precisam coletivamente agir para encontrar uma saída ao encontro do direito à vida.

Enfatizo que a irresponsabilidade política não pode se esconder atrás de vieses constitucionais retóricos e hipócritas de direito à soberania, quando na verdade a população mundial que vem morrendo e o direito à vida é desconsiderado. Não cabe a qualquer Governo, em respeito ao direito à vida negar a pandemia, ao mesmo tempo que não cabe a qualquer Governo negar o direito à vacina, seja em relação ao planejamento intempestivo quanto ao início do plano de imunização, seja em relação ao fornecimento de insumos farmacêuticos ativos (IFA) capaz de salvar vidas.

Nesta linha de raciocínio, não seria razoável esperar que China e Índia utilizem este momento em que vivemos para tripudiar ou barganhar com o Governo ou a diplomacia Brasileira antes de fornecer tais insumos para a produção da vacina no Brasil, simplesmente para fazer um jogo internacional, jogo este que proporcionaria a morte de muitos brasileiros.

Quero acreditar que neste cenário internacional existe somente uma falta momentânea de insumos decorrente da demanda grande por algo que se tronou tão ou mais valioso que a água ou o oxigênio que respiramos e que precisa de um tempo razoável para que o fornecimento se normalize, proporcionando assim uma imunização global que salve vidas.

Num momento como este, a politização da vacinação não favorece a ninguém à resolução do problema da pandemia. Assim, deveríamos usar este momento de dificuldades humanitárias para uma maior aproximação diplomática internacional fortalecendo  princípio da cooperação internacional evitando por completo o isolacionismo.

 

 

 


sexta-feira, janeiro 15, 2021

DIREITO INTERNACIONAL E O BOM GOVERNO

 

Por Fabrício Felamingo

 

Data de 1942 a primeira edição do “Tratado de Direito Administrativo” de Themistocles Brandão Cavalcanti. A 5ª edição (outras se seguiram), que cito aqui, data de 1964. Chamo a atenção disso pois já há tantos anos fazia esse autor a distinção entre o Direito Internacional Administrativo e o Direito Administrativo Internacional. Nomenclaturas à parte, o mesmo ocorre em outras áreas (Direito Econômico Internacional ou Internacional Econômico, Direito Penal Internacional ou Internacional Penal, para citar dois exemplos).

A simples discussão dessa distinção já chama a atenção, já que é pouco difundida em nossa literatura a intersecção entre o Direito Internacional e o Direito Administrativo. Mas o próprio Brandão Cavalcanti já alertava que questões como direito dos estrangeiros, direito de imigração, anexação de territórios, regimes administrativos, empréstimos externos entre outras questões anotadas por ele, são resolvidas ou pelo direito interno ou por tratados e convenções, completando que “(a)s fronteiras entre as duas disciplinas são cada vez mais flutuantes, principalmente depois que se indicam nos sistemas constitucionais, princípios de ordem econômica que transcendem da estrutura política do Estado e tomam caráter mais regulamentar, no âmbito da economia e da administração”.

Em nosso último artigo, trouxemos a ideia de que há uma correlação direta entre a inserção internacional de uma nação e seu grau de democracia. Penso que podemos, atualmente, fazer a mesma correlação entre a inserção internacional de uma nação e seu grau de boa administração, no sentido de entendermos se há, nos dias atuais, como administrar um Estado e mantê-lo alheio, à parte, ao largo do que ocorre mundialmente. Haveria como garantir o bem maior aos súditos do Estado (o povo) sem se atentar ao fato de que hoje a economia e a administração mesmo do Estado são fluidas, transcendem fronteiras como já indicava décadas atrás Brandão Cavalcanti?

Na sua “Política”, Aristóteles apresentava a questão sobre o bom governo e o mau governo: “é mais conveniente sermos governados pelo melhor homem ou pelas melhores leis?”. A ideia de aguardar ou desejar a pessoa mais bem preparada para governar embute uma noção bem brasileira, a do salvador da pátria. Personificados (Getúlios, Jânios etc) ou não (militares, por exemplo), nos parece claro que uma pessoa que não seja “a” melhor, mas governe a partir “das” melhores leis tenha mais condições de prestar um bom serviço à nação do que “a melhor” pessoa mas que governe ao seu bel prazer. O respeito ao Estado e suas políticas (consubstanciadas especialmente nos princípios constitucionais e nos tratados e convenções internacionais, mas também nas leis emanadas do Legislativo e decisões do Judiciário) deve prevalecer em relação aos interesses do governante de plantão, independente de sua qualidade como administrador público. A este caberá adequar suas plataformas e seus entendimentos de como governar àquelas políticas. A inserção internacional auxilia nisso justamente ao prevenir eventuais casuísmos da política interna, eis que tratados internacionais nascem de discussões menos afetadas por pressão individual de interesses escusos deste ou daquele grupo de pessoas em cada Estado.

São essas algumas pequenas reflexões que fazemos aqui no intuito de auxiliar o debate, tão dominado e polarizado nestes dias atuais.


quinta-feira, janeiro 07, 2021

TRISTE 2020. FELIZ 2021?


 

Por Fabrício Felamingo

 

E lá se foi 2020. Neste nosso blog a agenda política e cotidiana tem se imposto muitas vezes sobre a análise internacional. O coronavírus tomou conta do noticiário durante o ano passado e se mostra resistente a ponto de se manter por ainda muito tempo na mídia (e entre nós). EUA e Brasil, tendo em vista as atitudes de seus respectivos (des)presidentes, igualmente eclipsam as atenções e geram mídia (contra e a favor). No geral, tanto a saúde pública quanto a democracia sofrem em ambos os países por conta dessas similitudes.

Das várias semelhanças, uma em especial podemos destacar aqui: há uma correlação direta entre a inserção internacional de uma nação e seu grau de democracia (e, em 2020, aparentemente também seu grau de sucesso em evitar mortes pelo novo vírus). Ambos os presidentes se isolaram e isolaram seus países na esfera internacional. O próprio mote de campanha de Trump (fazer a América “grande” novamente) já embutia uma mensagem claramente xenófoba, na medida em que se tratava de tornar os EUA “grande” deixando de lado ou diminuindo o relacionamento comercial com outros países. A deliberada saída dos EUA de tratados ou acordos internacionais, ou mesmo a simples ameaça de, já são suficientes para fragilizar o sucesso desses arranjos entre as nações, o mesmo valendo para organizações internacionais como ONU ou OMS, atacadas constantemente pela atual Casa Branca.

Por aqui, as tentativas de reproduzir (“i-mitar”?) tais atitudes nos levaram até mesmo a situações embaraçosas, tais como não obter votação minimamente aceitável para preenchimento do posto de Juiz do Tribunal Penal Internacional. Perder a votação seria do jogo, mas obter votação pífia somente mostra o quão isolado está o Brasil internacionalmente.

O ápice da má governança veio não na forma de clímax, mas de acúmulo diário: mais de 360 mil mortes lá e quase 200 mil aqui, na data em que escrevemos estas linhas. Mas ontem, 6 de janeiro de 2021, surgiu um ápice (adicional?) contra a democracia: o presidente dos EUA ousou convocar e instigar militantes para se insurgir contra o Congresso norte-americano, que naquele dia iria (como efetivamente fez, horas mais tarde após a confusão) ratificar a vitória de Joe Biden para a presidência dos EUA a partir de 20 de janeiro próximo. Além de todas as cenas lamentáveis, ao menos quatro pessoas perderam a vida nessa inconsequência fomentada por Trump. O receio é a reprodução (“i-mitação”?) de tais atos “presidenciais” por aqui, num futuro próximo.

Criar barreiras diplomáticas com outras nações, transformando em inimigos aqueles que apenas têm interesses antagônicos (sejam comerciais, sejam quais forem), somente isolam a nação. Não à toa se entende as relações entre Estados como um concerto entre iguais, ainda que territórios, populações e PIB possam ser totalmente discrepantes. Aos países cabe, na busca por seus interesses, não desprezar ou agir contra os interesses alheios. Não se trata simplesmente de querer ter um “prestígio” ou “respeito” internacional, como se tais atributos fossem supérfluos e desnecessários ao contínuo crescimento do país. Trata-se de, ao agir de forma agressivamente radical, alijar a nação das grandes decisões mundiais e, como consequência, retirar da população o acesso ao fruto de tais relações. É triste pensar na quantidade adicional de mortos, na quantidade adicional de pobres, no número de pessoas diretamente atingidas por bravatas emitidas e que poderiam, pura e simplesmente, terem sido não emitidas. As relações internacionais agradeceriam. As famílias em luto ou empobrecidas, muito mais.

 

Foto: vatican news