Carlos Roberto Husek
Professor de Direito Internacional da PUC/SP e coordenador do
ODIP – Ofician de Direito Internacional Público e Privado
Na construção da sociedade brasileira, há velhos temas que de
tempos em tempos voltam a nos atormentar, por ser tarefa não cumprida; como a
integração dos negros, olvidando a enorme e histórica dívida que temos com a
África, por participar e incentivar o comércio do atlântico, em tempos idos,
que em termos de história, equivalem a ontem, e de cujo dia acordamos sem
qualquer solução.
O branco escravizou o negro, e quando este se deu por
libertado, por obra de concessão, passou a viver na periferia das grandes
cidades, empurrado para os guetos, para os morros, para as casas de madeira,
para os banhos de bacia de água tirada dos rios ou advindas da chuva, das
sobras das feiras, e dos pequenos atos contra a propriedade privada, que
continuaram e se multiplicar nas mãos do dominador.
A importância do tema não está no fato de que ressurgiu no
horizonte político e acadêmico a questão dos direitos humanos e dos
desfavorecidos, mas em algo mais concreto e sempre presente, a própria
constituição da sociedade brasileira, feita de negros, pardos, amarelos, brancos
e outros, cuja proporção de pretos é bem maior, em decorrência da miscigenação.
Em primeiro lugar, havemos de afastar o mito da democracia
racial - e já o fizemos no artigo anterior - porquanto esta, efetivamente,
nunca existiu. O que aconteceu é que conseguimos conviver uns com os outros,
dentro de padrões bem definidos, entre privilegiados e excluídos, sendo que
estes aceitaram a exclusão, sem discutir qualquer possibilidade de inclusão
social. Nos dias de hoje, tentamos pela “quota” social outorgar aos negros
algum caminho de inserção nas diversas áreas da atividade humana, mas ainda é
uma concessão, e não uma efetiva conquista ou uma efetiva inclusão, que só
aconteceria pelo ensino de qualidade ofertado pelo Estado e pela possibilidade
de pleno emprego. E não seria condescendência do Estado, e sim, política
pública necessária, esperada e administrativamente programada, em cumprimento
de um dever constitucional de integração, de compartilhamento, de promoção do
bem estar social.
A quem queremos enganar?
É possível construir uma nação que atue no mundo atual e na
América do Sul, com efetiva liderança e compreensão dos problemas
internacionais, com desconhecimento ou encobrimento de nossas origens e da
nossa exata composição social?
Quem somos?
As nossas cidades são centralizadas, administrativa e
economicamente, nas mãos de poucos – em geral brancos ou pretos esbranquiçados
– com o domínio da segurança pública, também nas mãos destes poucos, e as nossas instituições maiores, baseadas
nos poderes da república, também, sem a participação eficiente, eficaz e
estável de todos os componentes raciais, que continuam marginalizados.
Quem somos?
Simplesmente um poder europeu na América, cristalizado pelo
tempo?
Abdias Nascimento,
e dele nos servimos mais uma vez, escreveu
de forma clara sobre o papel do negro escravo para a história econômica do
Brasil: “ Sem escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido.
O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com flexão e a
quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a
própria espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a
riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca.
Tanto nas plantações de cana-de-açucar e café e na mineração, quanto das
cidades, o africano incorporava as mãos e os pés das classes dirigentes que não
se auto-degradavam em ocupações vis como aquelas do trabalho braçal. A
nobilitante ocupação das classes dirigentes – os latifundiários, os comerciantes,
os sacerdotes católicos – consistia no exercício da indolência, no cultivo da
ignorância, do preconceito, e na prática da mais licenciosa luxúria. Durante
séculos, por mais incrível que pareça, esse duro e ignóbil sistema escravocrata
desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro de ser uma instituição benigna, de
caráter humano. Ito graças ao colonialismo português que permanentemente adotou
formas de comportamento muito específicas para disfarçar sua fundamental
violência e crueldade. Um dos recursos utilizados nesse sentido foram a mentira
e a dissimulação. A consciência do mundo guarda bem viva a lembrança do
colonialista Portugal encobrindo a sua natureza racista e espoliadora através
de estratagemas como a designação de “Província de Ultramar” para Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau.”
Fatos e história, em relação aos quais deve ser levado em
conta a época e a divisão de poderes no mundo, as conquistas colonialistas, o
direito do Estado promover tais conquistas, o poderio militar e econômico e
outros fatores, que podem ser bem analisados para que não se incorra – vamos
dizer de forma eufemística – na mesma incorreção, ou de forma crua, nos mesmos
crimes. Mais do que isso, além da eventual reparação – é o que se tenta
modernamente fazer – a efetiva correção, reabrindo os caminhos no território
nacional para um progresso claro e inequívoco das relações sociais e das
relações de poder. E tudo, irá beneficiar a todos nós, independente da raça,
porquanto, o Brasil, sem dúvida, se tornará um país mais rico cultural e
civilizadamente.
Não é possível que em pleno século XXI ainda patinamos neste
assunto, envenenados pelo peso da história e das noções passadas de diferenças
raciais e de gênese. Ninguém nasce para escravo ou para senhor, para mandar ou
para obedecer, para ser rico ou para ser pobre, para o lazer ou para o labor;
nasce-se simplesmente, e a sociedade impõe-nos as suas regras e os seus
caminhos, que, diga-se, não são imutáveis.
É necessário ter força para crescer e sabedoria para agir,
porque o mundo social é passível de transformação. Na sabedoria do continente
negro, existem alguns ensinamentos, de alto conteúdo civilizatório: “nos
costumes imemoriais africanos, a mais completa expressão de energia vital
(porque o valor supremo da existência é a energia que conecta todos os seres do
universo) é a existência intensa e generosa: a vida plena (...) As filosofias
africanas comportam uma ética fundante. Elas não se baseiam em uma decisão
divina que proíbe certas ações e as transforma em ´pecados´. Na praxe africana,
o mal é o que prejudica os outros, o que ameaça a paz e a sobrevida do grupo
(...) No pensamento ancestral africano, o Ser Supremo, Criador do Universo,
permanece muito distante. Ele não se preocupa com a ordem moral, cujos
guardiões são os ancestrais, que modelam condutas e eventualmente enviam
punições aos descendentes que não os respeitam.”
Quem disse que a ordem do universo é aquela que aprendemos?
Quem somos, afinal, uma civilização do século XXI, eivada de conceitos
que nos foram impingidos nos livros escolares e na propaganda oficial?
É preciso, urgentemente, mudar, integrar, consolidar,
cooperar, incorporar, compreender, assimilar, compor, constituir, tornar o Brasil
uno e não, apenas aceitar os brasis que absorvermos como irreversíveis. Depois,
vamos ter com o funcionamento da economia, do poder e da distribuição de
justiça. Sem esta base de incontestável transformação social, o edifício
público tende a não resistir às intempéries dos acontecimentos.