segunda-feira, maio 18, 2015

A nau dos desgraçados

    



    Reeditamos em pleno século XXI (hoje com base em outras causas e finalidades) antigas práticas de jogar a bordo de embarcações os portadores de doenças incuráveis e que pudessem representar algum perigo para a comunidade e os loucos, sem possível tratamento.

    Segundo noticias, mais de 25 mil pessoas foram lançadas ao mar, em barcos precários, para fugir às perseguições políticas, étnicas e religiosas! Comerciantes do crime - traficantes de pessoas - facilitaram  a fuga de desesperados, de suas pátrias de origem, com promessas vazias ( em troca do pagamento de cerca de US$ 2.000 seriam conduzidos aos campos da Tailândia, para atravessar a fronteira rumo à Malásia) mas os abandonaram em meio de águas internacionais, uma vez que os países desejados não aceitaram tais migrantes e eles não têm como retornar aos seus países de origem.

    Há necessidade do sistema jurídico internacional (composto de organizações internacionais, convenções sobre direitos humanos, princípios e costumes internacionais) reagir de forma exemplar para combater dois problemas específicos: um, os Estados, que governados por desajustados, atuam de forma não condizente, sacrificando o próprio povo em cumprimento a um desiderato de domínio absoluto das próprias razões (razões dos governantes), que se arvoram como porta-vozes da vontade do Estado e, dois,  a ineficácia dos mecanismos de defesa dos direitos humanos, que embora escudados em vasta rede de tratados internacionais e contando com organismos voltados à consecução dos seus ideais, não consegue obter a afirmação de tais direitos.

    A vida internacional ainda reafirma, na sua realidade mais crua, as atividades dos Estados, que atuam, se unem e se perpetuam com o objetivo de satisfação de seus interesses econômicos e políticos; mas, se assim é a realidade da vida social no contexto da comunidade internacional, aos poucos aparece, aqui e acolá, a preocupação com o ser humano. Não há incorreção do sistema quando prestigia a soberania dos Estados, porque afirma um princípio de sempre, caro ao Direito Internacional, embora tal soberania tenha sofrido nos últimos tempos uma queda acentuada na sua concepção clássica. Desse modo, o prestígio de tal soberania, no entanto, deve levar em conta alguns aspectos, como: a concepção amenizada do sentido das fronteiras estatais, a economia dos Estados como vasos comunicantes, necessidade de relacionamento entre os Estados, independentemente das respectivas ideologias e formas de governo e as portas abertas de organismos internacionais para reclamações de seres humanos contra os países em que nasceram, em virtude de desmandos e desrespeitos a regras internacionais de proteção. Esta é a soberania como atualmente deve ser vista e exercida. A soberania do Estado deve ser exercida de forma a compor um mundo que não sobreviverá (em tempos de mudança das mínimas condições ambientais de manutenção da vida na Terra) sem a cooperação dos Estados. Cooperação é a palavra. Cooperação para quê? Não, para manter o domínio econômico, militar, político, dos  Estados  mais fortes sobre os mais frágeis. Não, para reavivar guerras religiosas. Não, para alimentar sonhos de domínio de governantes inescrupulosos. Não para sobrelevar interesses econômicos (caixa dos Governos para manutenção do poder) em detrimento do bem estar da população local. Cooperação para buscar um caminho de natural convivência, em que se respeitem a soberania e os interesses dos Estados e os direitos do ser humano. Na verdade, não há, ou não deveria haver divórcio entre tais direitos e os interesses políticos dos Estados, porque o Estado nada mais é do que uma ficção criada pelo próprio ser humano para a sua sobrevivência. 

    Nunca é demais recordar, um Estado é composto de povo, território e poder, bem como da capacidade de relacionar-se no mundo internacional. Desses elementos, sem dúvida, o principal, como base sobre o qual os demais se edificam é o povo: território sem povo, não é nada; poder sem povo, é poder nenhum; relacionamento internacional sem povo, é um relacionamento sem lastro. O povo, se organizado, se consistente, se possuidor de alguns laços de união (psicológica, social, jurídica) conquista o território, organiza o poder e se faz relacionar, em nome desse poder, com os demais Estados do mundo. A importância do povo (expressão equívoca e que melhor necessita ser estudada) está em ser a soma qualificada dos indivíduos. Direitos individuais, garantias individuais, direitos e garantias sociais, direitos humanos, direitos fundamentais, refletem expressões que notabilizam o ser humano como detentor de direitos em face de qualquer Estado, qualquer governo, qualquer ideologia. O Direito Internacional moderno não é mais - e não pode ser - o Direito dos Estados, mas o direito do ser humano, na sua coletividade, nas suas representações, nas organizações que cria, por si ou por outras organizações maiores. Sem embargo, de falar o óbvio - tão óbvio, que parece sem importância - as criações do Direito não terão muito sentido se não voltadas, direta ou indiretamente para os seres humanos. O Direito estatal é assim. O Direito Internacional assim é. Em um mundo sem fronteiras - reconheçamos, de início, que a importância que as fronteiras têm é meramente demarcatória para algumas finalidades político-jurídicas - o Direito Internacional necessita pensar melhor a finalidade de suas principais instituições.
    
    A nau dos desgraçados é a desgraça do mundo e o fracasso das instituições. A ONU, os organismos internacionais e os Estados soberanos necessitam dar respostas urgentes para essa situação, enquadrando os Estados descumpridores das regras internacionais ( a força do Direito, se necessária pelo exercício da força internacional desse mesmo Direito) e a proteção urgentíssima de seres humanos jogados ao mar, como subprodutos da humanidade.

    Deixar morrer de fome, sede e doenças, pessoas que não conseguem pisar em terra firme, por desmandos do poder dos Estados nacionais e pela interpretação errônea da soberania estatal, como garantia de uma política interna de governo, é simplesmente virar as costas para o que já foi construído, em termos de avanço social e jurídico pelo mundo. 
Enfim, os direitos humanos não podem ser a base apenas dos discursos e da elaboração de regras internacionais bem intencionadas: mas, o verdadeiro escopo do Direito moderno, estatal ou internacional. Lembremos, que a própria ONU foi criada, para que não mais "O povo das Nações Unidas" sofressem os horrores de uma futura da guerra. A expressão "povo" e não "Estado" no Preâmbulo da Carta, é significativa e impõe um novo rumo ao Direito Internacional.

    Será que todas as Declarações e Convenções negociadas, assinadas e ratificadas pelos Estados, a exemplo de:  "Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Declaração Universal dos Direitos Humanos; Convenção e Repressão do Crime de Genocídio; Convenção sobre Asilo Territorial; Convenção sobre Asilo Diplomático; Pacto internacional dos Direitos civis e Políticos; Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento; Convenção sobre o Direito da Criança; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional; Estatuto dos Refugiados; Convenção para Prevenir e Punir Atos de terrorismo. Configurado em Delitos contra as Pessoas e a Extorsão Conexa; Convenção sobre a Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas  e outras, não meros papéis que devem ser jogados ao lixo oceânico e afundados com os corpos que vagam sem rumo em águas internacionais? Se o sistema internacional de Direito não tiver mecanismos para resolver este problema ...então!...precisaremos repensar o Direito Internacional.  


CARLOS ROBERTO HUSEK .

domingo, maio 17, 2015

O direito à deriva


A notícia de que a Indonésia rebocou para o alto-mar embarcações com refugiados, retirando-os de seu mar territorial e abandonando-os, é daquelas que provam que nunca vimos de tudo nesta vida. Milhares de pessoas têm tentado ingressar em países europeus ou asiáticos, fugindo de perseguições brutais (por motivos nacionais ou religiosos) e situações de pobreza extremada. Nos últimos dias a imagem dos barcos de traficantes de pessoas tem sido a tônica, sempre mostrando embarcações abarrotadas de pessoas à míngua. As privações pelas quais passam, especialmente a falta de água e comida, são tenebrosas.

Os países tentam evitar o ingresso dessa população empobrecida, à qual costuma-se denominar como formada por “migrantes” ou “imigrantes”, levando a uma conotação algo pejorativa (ainda que essas palavras, por si mesmas, não tenham tal atributo). Não se costuma usar “imigrante” para, por exemplo, denominar um alto executivo estrangeiro recém chegado para trabalhar numa sucursal de sua empresa. Tampouco para um chef de cozinha que resolva mudar definitivamente para outro país, onde abre um restaurante de sucesso (este último com certeza será chamado de “radicado” no país que escolheu viver, isto é, resolveu fincar raízes noutro país). O fato dessa população ser objeto de tráfico de pessoas apenas colabora para essa impressão negativa.

Noves fora essa questão semântica, que acaba por turvar um pouco nosso discernimento, há a questão da proteção dos direitos humanos, outro tema que dá margem a interpretações distorcidas na busca de invalidar a ideia de que os indivíduos têm direitos humanos apenas por serem humanos. Não cabe aqui apresentar uma resposta a esta questão. Tomado como princípio que sim, os indivíduos todos têm direitos apenas por serem humanos, e que fronteiras nacionais são importantíssimas mas não mais que os direitos básicos dos seres humanos, está demonstrada que a entrada dessa população deve ser autorizada, por um simples critério de humanidade. A criação da ONU e outras tantas organizações internacionais serve também para isso: auxiliar a gerenciar (e financiar na medida do possível) estas situações, ainda que a situação econômica mundial não seja a mais próspera. Uma vez acolhida a população, à qual o direito corretamente denomina como refugiados, não imigrantes, até porque deles não há exatamente uma escolha para onde ir, mas um lugar de onde fugir, o Estado acolhedor pode solicitar às demais nações, diretamente ou via organizações internacionais, um trabalho de coordenação para a melhor proteção e eventual distribuição dessa população por outras nações.

São vários os tratados e protocolos internacionais a regular a situação dos refugiados, buscando sempre uma forma de acolhimento e proteção básica. Naturalmente, não se trata de permitir o ingresso desordenado de pessoas a quaisquer países, mas de balancear o direito dos Estados a controlar suas fronteiras com a proteção mínima que deve ser dada a quem está em situação de extrema pobreza ou perseguição. Isso tudo, claro, sem levar-se em conta o motivo que gerou a perseguição (muitas vezes guerras civis direta ou indiretamente financiadas pelas nações mais ricas).

No entanto, ao rebocar as embarcações para o alto-mar, a Indonésia “resolve” o problema de receber essas pessoas, dando as costas não apenas a elas mas também às outras nações. Naturalmente não se pode obrigar um país a acolher quem quer que seja, mas abandonar seres humanos à própria sorte, literalmente à deriva, além de inacreditável definitivamente não pode ser aceito como a solução mais adequada.

Publicado originalmente no Estadão Noite de 15 de maio de 2015.

quarta-feira, março 04, 2015

A deportação de Battisti


O Poder Judiciário brasileiro reconhece que um estrangeiro cometeu crimes em outro país e, na impossibilidade legal de extraditá-lo, determina que deva ser deportado. Extradição é a entrega do estrangeiro ao país onde o crime foi cometido, mediante solicitação deste mesmo país. Deportação, por outro lado, é a retirada compulsória de estrangeiro de nosso território, pela irregularidade de seu ingresso ou permanência. Por exemplo, entrada sem visto. Naturalmente, o estrangeiro criminoso não solicitou visto ao fugir para o Brasil, mas veio valendo-se de documentos e nome falso. Assim, em teoria, a deportação é cabível.

Não, não estamos falando do caso Cesare Battisti, mas do inglês Ronald Biggs. Biggs participou de roubo ao trem pagador, foi condenado e preso mas posteriormente conseguiu fugir para o Brasil, usando nome falso para ingresso. Na época, a decisão do Judiciário foi pela não concessão da extradição (não havia tratado de extradição entre Brasil e Inglaterra, o que na prática impediu a extradição; esse tratado foi firmado após um fugitivo nosso ser descoberto gozando boa vida em Londres: “PC” Farias, ex-tesoureiro da campanha de Collor à presidência, mas essa é outra história).

A questão que permanece é o que fazer com o estrangeiro que, mesmo tendo efetivamente cometido crimes lá fora, não possa ser extraditado. Biggs e Battisti, por motivos distintos (mas igualmente dentro da nossa legislação) não foram extraditados. À época do caso Biggs, a Justiça observou isso e entendeu que ele não deveria permanecer no Brasil, devendo ser deportado para outro país que aceitasse recebê-lo e se comprometesse a não extraditá-lo para a Inglaterra. Caso contrário, acabaria ocorrendo verdadeira extradição sem consentimento do Brasil, algo que, além de diplomaticamente problemático, nossa legislação também prevê e impede.

A recente decisão da Justiça Federal de determinar a deportação de Cesare Battisti segue a mesma linha. A extradição de Battisti não foi aceita pelo Brasil. Aqui, independente de concordar ou não com a decisão de Lula, temos que observar que o então presidente agiu de forma legítima, dentro dos limites da competência dada pela Constituição ao ocupante do cargo. O STF verificou a possibilidade jurídica da extradição e Lula, usando de sua atribuição constitucional, optou por não extraditar.

Se o Brasil entende por qualquer motivo que um estrangeiro não deve ser extraditado, parece lógico que dê a ele uma mínima proteção, seja permitindo a permanência pacífica em seu território, seja ajustando sua deportação a outro país que se comprometa a mantê-lo em seu território, não o entregando ao Estado a quem originalmente o Brasil decidiu por não extraditar. Difícil, no caso, é encontrar país que aceite o estrangeiro nessas condições. No caso de Battisti, a decisão judicial cita México e França, países por onde passou antes de chegar ao Brasil. Nada, no entanto, os obriga neste momento a recebê-lo de volta.

Não basta a decisão judicial, deve haver condições para sua implementação. A cereja no bolo é que, se Battisti novamente conseguir permanecer no Brasil, as emoções na Itália serão reavivadas e a possibilidade de Henrique Pizzolato, condenado no caso mensalão, ser extraditado para o Brasil diminuem ainda mais. Lá, a decisão agora caminha para o estágio político, o mesmo estágio que, no Brasil, acabou por garantir a não extradição de Battisti.


(Em tempo: Biggs acabou ficando no Brasil praticamente a vida toda, voltando para a Inglaterra já mais idoso, quando quis.)

Publicado originalmente no Estadão Noite de 03.mar.2015

terça-feira, janeiro 20, 2015

À Espera do Direito

    

 crédito da imagem: site uol

Apenas por amor ao debate, vamos contrariar um pouco o articulista e todos que estão consternados com a morte do brasileiro na Indonésia. Antes, nunca é demais estabelecer um parâmetro de pensamento a que nos filiamos: somos contra a pena de morte.

    Todavia, o que aconteceu na Indonésia foi a afirmação de um sistema jurídico e de uma política soberana. Cabia ao governo brasileiro fazer o que fez, pedir clemência (uma, duas, três vezes) e quantas necessárias, mas só. Não é possível transformar em uma questão de Estado, e portanto, internacional, chamando o embaixador brasileiro com possível rompimento das relações diplomáticas, o fato da Indonésia resolver cumprir as suas próprias leis. Em termos internacionais, a Indonésia apenas fez cumprir o seu sistema jurídico (legalidade). Quantas e quantas vezes o Brasil, na sua história, não determinou a morte de opositores ao governo, sem respaldo legal? Entretanto, também aqui não é possível confundir. O brasileiro Archer não se opôs ao governo da Indonésia, nem representava qualquer facção política ou ideológica, não era um ativista político nem tinha preocupações humanitárias, Não. Entrou com 13 quilos de cocaína, em uma prancha, no território de um país soberano que combate as drogas. O máximo que poderíamos fazer é uma crítica ao sistema do país soberano, mas não entender que a execução de suas próprias leis internas, por eles aprovadas legalmente, com apoio da população e com promessas de cumprimento por parte do governo eleito, ofenda o Brasil. O chamamento do embaixador brasileiro para esclarecimentos é possível; o eventual rompimento diplomático por este fato, não. 

    Lembramos que nos EUA alguns estados norte-americanos contém pena de morte, bem como outros países, e não nos ocorre um protesto contra tal situação e o abalo de relações diplomáticas ( a menos que haja um brasileiro envolvido!?).

    Devemos lutar, como princípio, contra a existência de morte legalizadas pelo Estado, na área internacional, na vida internacional, o que não implica em rompimentos diplomáticos com os países que a praticam, salvo se este (o rompimento) for efetivamente uma política de Estado, constitucionalizada, que nos impeça de ter relações com quaisquer países que acolham a pena de morte (não importa a importância ideológica,  econômica, militar e política) do país e não importando se existem brasileiros envolvidos ou não. Como se vê, vai ficar difícil, no mundo atual, mantermos uma relação diplomática pragmática e que vise, de forma específica, os interesses maiores do Estado e de seu povo.
É uma pena que existam países que mantenham a pena de morte como forma de combater o crime (isto acho eu, que sou humanista, mas há muita gente boa que entende de forma contrária), mas há necessidade de separar o que é política de Estado, nos termos da Constituição, e crítica indevida com consequências funestas para o relacionamento internacional, de um para outro Estado, de forma fisiológica. É assim que temos agido na área internacional, nos últimos tempos. A Indonésia é um país soberano que está cumprindo o seu sistema interno, ponto. E mais, o brasileiro que carregou drogas para aquele país, não estava certo ( ou estava?). Lamentamos que tenha havido a execução, entretanto o governo brasileiro deve, como fez, fazer os apelos internacionais necessários para proteger um seu nacional, mas não pode entender que a Indonésia, ao cumprir as suas leis, ofenda o Brasil ou abale as suas relações internacionais com o nosso país, mesmo porque, bem ou mal ( talvez, de modo errado, em nossa opinião) ela, Indonésia, está combatendo a propagação de drogas, que levam no entender de seus legisladores, os jovens a marginalização, o país à bancarrota, à destruição das famílias e da própria sociedade. 

    Também não vale justificar um eventual rompimento das relações diplomáticas, dizendo que o sistema da Indonésia é contraditório, porque existe muita corrupção dentro do Estado, e as drogas circulam até como moeda de compra para determinados efeitos (entrevista em jornal de um amigo de Archer). Ora, este é um problema interno, deles, e não nos cabe afirmar a justiça ou a injustiça da condenação pela contradições internas de um determinado sistema jurídico, para os efeitos de uma determinação política maior, salvo se ocorrer em uma análise clara, objetiva e específica com uma manifestação do Estado, sem tornar isso o fulcro de uma escaramuça internacional.

    Podemos impor nossa vontade à soberania da Indonésia? Somos claros e objetivos em relação aos cubanos e seu sistema jurídico, ao Irã, ao da Argentina, ao da Venezuela, enfim, aos que consideramos amigos, embora, em muitos deles, para não dizer na totalidade dos mencionados Estados, os valores maiores da liberdade e da dignidade humana, presentes na Constituição brasileira, (direitos fundamentais) são diariamente desrespeitados (não sei se presentes nas leis fundamentais de tais Estados)? É de se perguntar; se um infausto acontecimento, igual da Indonésia, acontecesse nestes países com um brasileiro, também chamaríamos o embaixador  brasileiro e tenderíamos a romper nossas relações diplomáticas?

    Enfim, é necessário raciocinar: se o Brasil vier a romper relações diplomáticas com a Indonésia, estará agindo corretamente? Todavia, tal questão só cabe aqui, nesta discussão acadêmica, porque o Brasil, por enquanto, não tomou tal atitude.
Muitos poderão afirmar que o Brasil é soberano para romper relações diplomáticas, e terão razão (embora, entenda que a motivação está equivocada). De igual modo, digo, a Indonésia é soberana para fazer cumprir suas leis (embora, não concorde com o sistema jurídico daquele país).

    Regredimos...Vivemos num mundo de paixões tribais. As conquistas da civilização (ou o que consideramos civilização), sistema jurídico, soberania, fronteiras, combate ao crime - que deve ser internacional - dignidade da pessoa humana, liberdade de imprensa - caso Charlie (pela violência física, praticada dentro do Estado francês, contra manifestação cultural, esta, permitida pelo sistema jurídico francês: não discuto razões religiosas)- razões sociais como fundamento de atuação do Estado, estão sendo engolidas pelo fanatismo, pela irmandade ideológica e religiosa e outras, irracionais manifestações, de indivíduos, de grupos de indivíduos e, por vezes, do próprio Estado. Acredito que o Direito, aprimorado pelas aquisições históricas, pelos embates contra força, baseado nas razões maiores dos seres humanos, é o único caminho. Não há como esquecer uma frase antiga e sempre bem posta: o direito de um vai até onde começa o direito de outro.


Carlos Roberto Husek 

sábado, janeiro 17, 2015

À espera de um milagre


crédito da imagem: wikipédia

Como se costuma dizer, nada é certo nesta vida, exceto a morte e os impostos. À morte ao menos temos o benefício da dúvida de quando ocorrerá, o que nos permite fingir que somos eternos e com isso levar a vida. Isso não vale mais para o brasileiro Marco Archer Moreira, que neste domingo à tarde morrerá executado a tiros na Indonésia pelo crime de tráfico de drogas, aguardando por este momento preso há uma década. O governo brasileiro solicitou algumas vezes ao longo desse tempo que a Indonésia o mantivesse preso mas não o executasse, sem sucesso contudo. A última tentativa infrutífera ocorreu hoje, com nova tentativa da presidente Dilma Rousseff em ligação com o presidente indonésio Joko Widodo.


Uma conduta qualquer pode ou não ser crime, a depender de circunstâncias as mais variadas. A evolução (seja no sentido de desenvolvimento, seja no mero sentido de passagem do tempo) da sociedade pode levar uma conduta considerada crime em determinada época deixar de ser depois (no Brasil, o adultério é um exemplo, embora o clássico que sempre é citado seja o álcool nos Estados Unidos de Al Capone) ou o contrário, algo que antes era aceito deixar de ser (como a escravidão). Condições territoriais também influenciam, já que cada país determina, em seu território, quais condutas serão ou não tipificadas, vale dizer, consideradas criminosas (exemplos disso são a prática de jogos de azar, aborto, prostituição). Condições religiosas e culturais igualmente influenciam a legislação de cada Estado e todas essas circunstâncias influenciam igualmente qual penalidade será aplicada a quem comete tais condutas (multa, prestação de serviços, restrição de direitos, restrição de liberdade, pena de morte).


O Estado brasileiro age corretamente ao esforçar-se em tentar evitar a execução de seu nacional pela Indonésia. É obrigação do Estado a proteção de seus nacionais, embora naturalmente essa proteção em território estrangeiro fique muitas vezes reduzida a tratativas diplomáticas e políticas. A tentativa é a de evitar a aplicação de pena de execução que o Brasil não admite. Não se trata de alegar inocência ou mesmo tentar que seja libertado, mas apenas que não seja morto, como não seria se o crime fosse cometido no Brasil.


Como se sabe, a esmagadora maioria dos países no mundo não condena atualmente criminosos à morte, sendo que a maior parte não tem mais essa pena prevista em lei e, alguns poucos que ainda a tem, evitam aplicá-la. Quando se trata de país que a prevê e ainda a aplica, ainda assim há subterfúgios políticos, como a solicitação de indulto ao Chefe de Estado, para evitar sua aplicação. A pena de morte na realidade acaba por pairar em muitos casos mais como ameaça do que como realidade, exceto, evidentemente, àqueles condenados que, após anos ou décadas de espera, são mortos. Há uma relação direta entre o estágio democrático de um país e a previsão ou não de pena de morte em sua legislação, sendo os EUA e o Japão os pontos fora dessa curva, ao lado de países como Coreia do Norte, Irã, Somália, Paquistão e alguns outros que condenam criminosos à morte. O índice de crimes não diminui com a pena de morte ou os países citados seriam oásis sem criminalidade alguma. Apenas o desejo difuso de vingança é atendido.


Se condutas tidas como criminosas e suas penas são modificadas ao sabor do momento da sociedade, nada traz novamente à vida alguém executado, mesmo que no futuro a conduta que o fez ser condenado não seja mais considerada crime ou a pena não seja mais aquela outrora estabelecida, ou ainda o presidente de plantão seja mais clemente. Resta a indignação e a tristeza, com a morte anunciada e com mortes como a da brasileira Haíssa Vargas Motta, jovem de 22 anos igualmente morta a tiros de fuzil, porém pela polícia no Rio de Janeiro, ceifada da vida pelo Estado sem anúncio, sem aviso, com certeza absoluta sem o esperar.
(publicado originalmente no Estadão Noite de 16/jan/15)


Nota: O brasileiro Marco Archer Moreira foi executado hoje, 17 de janeiro, às 15h31, Hor. Brasília

sexta-feira, janeiro 09, 2015

A (in)tolerância de cada dia - aspectos sobre o atentado em Paris


crédito da imagem: revista época

O atentado brutal ocorrido em Paris nos leva a uma natural consternação, assim como algumas constatações, mas poderia servir igualmente a uma reflexão em relação a (in)tolerância nossa de cada dia.


A primeira constatação, desde os primeiros instantes entendida por todos, é a do ataque à liberdade de expressão e de imprensa, uma vez que a violência foi feita contra cartunistas e jornalistas em seu local de trabalho como suposta represália à críticas contidas em charges publicadas pelo periódico Charlie Hebdo.


Um segundo aspecto é que a tática utilizada desta vez não foi a da intimidação pelo terror à esmo, cometido contra inocentes desconhecidos em aviões, torres de escritórios ou estações de metrô, mas contra alvos determinados, disseminando portanto não apenas o terror generalizado mas a mensagem de que alguma "justiça" ou mesmo vingança divina estava sendo realizada.


Os que atacam, talvez vinculados diretamente ao Estado Islâmico ou apenas lobos solitários de uma causa que entendem sagrada, o fazem imbuídos da certeza da defesa de valores que teriam sido violados nas representações artísticas do jornal.


A mensagem que conseguem transmitir, paradoxalmente, é justamente a oposta, a da mais profunda intolerância. E não apenas contra a liberdade de expressão, direito que fazem questão de não reconhecer, mas também contra a liberdade religiosa, a qual inclui também a liberdade de não crer em nada ou crer na inexistência de algo maior.


De toda forma, o atentado brutal, o maior em meio século na França, tem proporções muito menores que outros cometidos na década passada, na medida em que a silenciosa colaboração e cooperação estratégica entre os países têm dificultado que grupos extremistas possam levar a cabo ações mais espetaculares. Esta constatação empírica mostra que, se não há como serem evitados na totalidade atentados terroristas, há como os Estados organizarem-se de forma mais profícua em termos de troca de informações e melhorar a segurança e vigilância geral.


A ação terrorista agora claramente é dirigida ao "inimigo" mais à mão, alvo mais fácil de atingir como uma redação, tornando-a relevante não pela grandiosidade mas pelo seu suposto sucesso. Se de alguma forma jornais e cartunistas deixarem de publicar trabalhos semelhantes aos do Charlie Hebdo, o sucesso da ação criminosa estará alcançado.


Há, porém, uma reflexão doméstica igualmente possível de ser feita. Não há intolerância semelhante no Brasil (os bem mais que doze torcedores de futebol mortos ao longo dos anos por aqui talvez discordem, lá do além, juntamente com aqueles criminosos julgados e condenados à morte "em confronto" com a polícia, e paro nestes exemplos) mas igualmente não se vê uma defesa intransigente das liberdades por aqui e ultimamente boa parcela da população flerta inclusive com ideias que representam a diminuição ou cerceamento de tais liberdades.


Isso talvez ocorra pelo desconhecimento da importância desses e outros direitos e garantias fundamentais à pessoa humana, mas claramente existe um sentimento de intolerância que vem se aprofundando. Ainda que sem paralelo com a brutalidade da ação em Paris, qualquer grau de intolerância é perniciosa e o exemplo extremo de ontem apenas demonstra isso com inegável nitidez.


A resposta talvez não seja apenas mais liberdade de expressão ou liberdade religiosa, mas sim mais tolerância e, especialmente, mais entendimento do porquê dessas liberdades. A defesa intransigente dos direitos humanos, dos quais fazem parte tanto a liberdade de expressão e de imprensa quanto a liberdade religiosa, deveria pautar as manifestações de solidariedade que se apresentam não apenas em Paris mas em vários países, inclusive no Brasil.


(publicado originalmente no Estadão Noite - 08/01/2015)