sexta-feira, fevereiro 26, 2021

“ESSE TROÇO DE MATAR”

 

Por Fabrício Felamingo


Na semana em que o Brasil atinge um quarto de milhão de mortos pela pandemia de COVID-19 no curto espaço de 365 dias, nos chama atenção o fato de que, já no ano que vem, o Brasil comemorará o segundo centenário de sua independência sem que possamos estimar quantos terão morrido nos próximos 12 meses. Sim, a vacina se tornou realidade científica em tempo recorde e se faz realidade no Brasil, em que pese a forte objeção do Governo Federal. No entanto, o ritmo de vacinação é lento e, em pouco menos de 2 meses de vacinação, apenas cerca de 7 milhões de doses, das 450 milhões que seriam necessárias aos brasileiros (duas doses para cada um) foram administradas. Ou seja, ainda muitas vidas serão levadas, e a banalidade dessas mortes se acentua sabendo-se que seriam evitadas com uma maior rapidez da vacinação.

Ainda assim muitos a cada dia menos se preocupam com isso. A banalidade impera, estão “cansados” das notícias “velhas” das mortes e dos infectados. Notícia agora é um deputado federal ser preso por fazer apologia do AI-5, por exemplo. O que nos leva a pensar que há hoje no Brasil talvez o período de maior “desgoverno” da história recente, desde 1985 (incluídos governos Sarney e Collor nessa conta). Podemos dividir em poucos períodos os 199 anos de nossa história independente, sendo não mais do que 5 pequenos trechos no período republicano. E estamos apenas no segundo período mais longo de estabilidade com transição de poder, uma vez que, após os 67 anos dos períodos da Monarquia (1º e 2º reinados, intercalados pelo período da Regência), tivemos apenas 41 anos até o Estado Getulista de 1930. Logo após, um hiato democrático de apenas 19 anos (1945 a 1964) até nova incursão ditatorial, desta vez dos militares. Somente em 1985 há a volta da democracia, ou seja, apenas 36 anos desde então. Nesse período desde 1985, nos parece que o atual governo se esforça em lustrar a biografia dos presidentes anteriores. Afinal, nada parece ser pior do que hoje.

Portanto, não são indevidas as preocupações com os flertes do atual governo e seus apoiadores com a ditadura. O AI-5 defendido pelo Deputado Federal Daniel Silveira já foi defendido pelo atual presidente. E é bom lembrar que a ditadura foi parte cruel, mas não isolada, de uma orquestração que começou devagar e com apoio significativo de parte da sociedade (os editoriais de grandes jornais neste século XXI, como Folha de S. Paulo e O Globo, a se desculparem pelo apoio então dado em 1964 à “Revolução”, mostram o quanto não foi, aquele momento histórico, um golpe sem apoio generalizado na sociedade civil).

Há portanto que relembrarmos sempre o que foi aquele período para se evitar qualquer mínima chance de apoio à ditadura. Em 1974, menos de 9 anos após o apoio editorial da imprensa ao golpe, e antes de ser “empossado presidente”, Geisel disse literalmente ao seu futuro ministro do Exército Dale Coutinho que “esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.

“Esse troço de matar” é a expressão que, ao mesmo tempo em que prova a ciência inequívoca de Geisel (e portanto de todo os mais altos graduados nas esferas de poder de então) às torturas e mortes ocorridas nos porões da ditadura, demonstra o apoio que as mesmas esferas conferiam a tais métodos. 1964 não começou com um AI-5. 1964 não começou com “esse troço de matar”. O jornalista Elio Gaspari é o responsável por ter trazido à luz, em 2003, essa frase proferida por Ernesto Geisel. Em seu livro “A Ditadura Derrotada”, terceiro de cinco livros sobre o período (e, todos eles, leituras indispensáveis àqueles que querem entender o período), Gaspari reproduz as frases aqui citadas com a vantagem de tê-las ouvido gravadas, eis que Geisel efetuava registros de telefonemas, conversas e reuniões. A prova das frases existe, portanto.

Na conversa gravada, Dale Coutinho argumentava que o Brasil estava “melhor”, era local procurado pelos investidores e que “o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando começamos a matar. Começamos a matar.”. A morte banalizada.

Esse troço de matar atual que é a COVID-19 recebe do atual governo a mesma preocupação que as torturas e mortes do porão da ditadura receberam de Geisel. Ciente do que ocorre, o governo pouco faz para evitar o pior. Chancela as mortes e com elas convive bem (“todos vamos morrer mesmo um dia”, repete sempre o atual Presidente). E mais, ainda nos deixa com a nítida impressão de que acha que bom mesmo era no período da ditadura.

É de matar. Literalmente.



quinta-feira, fevereiro 18, 2021

Um livro e um tema fundamental: O NEGRO



Carlos Roberto Husek

Professor da PUC de São Paulo

Coordenador da ODIP - Oficina de Direito internacional Público e Privado

 

Abdias Nascimento (1914/2011), antropólogo, poeta, dramaturgo, artista plástico, intelectual e ativista pan-americano, buscou desenvolver no Brasil a questão do negro, na sua inserção na sociedade brasileira e desmistificou algo que continua arraigado entre nós, que é a chamada “democracia racial”. Não o fez, por dimensão intelectual e de cientista social, por vindita pessoal, grupal, social ou familiar, mas por rigoroso estudo de alguém – se é que é possível dizer – que no momento da produção científica não tem cor ou raça. Difícil a aceitação disso, para todos nós, que de alguma forma, estamos presos às nossas idiossincrasias, à nossa criação, ao nosso passado, à transmissão avassaladora da cultura que nos é transmitida, nos posicionando, de antemão, diante da vida com um olhar específico, quase sempre carregado de preconceito e de obstáculos à inteligência (visão das coisas), que obscurece o mais preparado dos mortais. Observe-se as últimas manifestações de políticos, ministros, ex-generais do exército, que não parecem atinar com o mínimo de compreensão e percepção da realidade e tendo em vista a posição que ocupam no cenário nacional, ou que ocuparam, arrastam nas suas ideias uma multidão de fanáticos, que, efetivamente não pensam para alimentar a mídia – falada, escrita, televisiva - e, principalmente, pelas redes sociais suas próprias demandas, algumas que se escondem nos confins do inconsciente.

Abdias do Nascimento, negro, não partiu dessa condição, mas analisou com objetividade a sociedade brasileira, e destrinchou e expôs a verdade de forma crua, em vários de seus escritos, dentre eles o elogiado “O genocídio do negro brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado”[1] , que logo de início parte da desmistificação, de forma contundente, do ensino oficial e da transmissão oral e escrita sobre a propalada “democracia racial”:

“O que logo sobressai na consideração do tema clássico deste ensaio é o fato de que, à base de especulações intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas ciências históricas, erigiu-se no Brasil o conceito da ´democracia racial`; segundo esta, tal expressão supostamente refletiria determinada relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas. A existência dessa pretendida igualdade racial constitui mesmo, nas palavras do professor Thales de Azevedo, ´o maior motivo de orgulho nacional`(...) e ´a mais sensível nota do ideário moral no Brasil, cultivada com insistência e com intransigência`. Na mesma direção laudatória, o Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, afirma que “A maior contribuição que nós temos dado ao mundo é precisamente esta nossa democracia racial`.[2]  

De saída, verifica-se que Abdias parte de uma afirmação por todos tida como certa e a destrói com lógica, quase aritmética, ao longo dos capítulos que se seguem (quinze capítulos, 229 páginas), desmascarando esta inverdade, com apoio e assinatura de vários intelectuais, brancos e negros, do Brasil e do exterior.

Por que insistimos nesta temática, nos últimos escritos da ODIP? Porque é constrangedor vivermos completamente cegos, em relação à realidade social, que a chamada “quota”, por si, já emblemática, não conseguiu até o momento desnudar.

Não somos o país da “democracia racial”, e quiçá, não sejamos o país da “democracia plena”, esta garantida nas leis e na Constituição – é um começo -, mas de pouca prática, á medida que os governantes dela abusam com interpretações estapafúrdias da Carta Magna, somente com o intuito de manutenção do poder. Este não é um mal só nosso, O mundo atual passa por uma síndrome de abstinência do diálogo e do exercício da tolerância com o outro, que sem dúvida é a base da democracia e do “Estado Democrático de Direito”, mas este é um assunto para um próximo estudo, embora umbilicalmente ligado ao tema deste artigo. Continuando, o fato é que nossa insistência tem preocupação interna e internacional. Interna, porque as manifestações dominantes são desastrosas e nos impõem, aos brancos e mesmo aos negros, uma visão muito distorcida do real, elevando a ficção em verdade. Internacional, porque tentamos passar para o mundo, somente com base no sistema jurídico, que alcançamos o prazer da convivência social.

Enquanto, não passarmos a limpo essa história racial, não vamos progredir e não vamos ser livres. A escola primária patrocinada pelo Estado, onde o número de pretos, pardos e mulatos é maior, apesar da boa vontade de seus professores mostra-se manietada, porquanto os alunos que dela saem não conseguem disputar o mercado de trabalho, e sequer sobreviver.

O ensino médio já faz ampla separação, entre brancos e negros, porque este ensino é quotizado, de certa forma, para aqueles, e a as faculdades, terminam em erigir muros altíssimos para o alcance dos descendentes de africanos, em quaisquer de suas modalidades.

Podemos nos esconder, enquanto intelectuais, atrás de falsas ideias, porém do que nos servem, na contribuição que devemos dar para um país melhor?

Diz Abdias Nascimento, em parte de suas conclusões: “Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência mutável, polivalente, que o torna único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se necessário travar a luta característica de todo e qualquer combate antirracista e antigenocida. Porque sua unicidade está só na superfície; seu objetivo último é a obliteração dos negros como entidade física e cultural. Tudo em conformidade com a observação de Florestan Fernandes: ´Uma situação como esta envolve mais do que desigualdade social e pobreza insidiosa. Pressupõe que os indivíduos afetados não estão incluídos como grupo racial na ordem social existente como se não fossem seres humanos nem cidadãos normais (grifos nossos)’”

Aviso aos que se debruçarem sobre estas poucas linhas (preconceituosos de plantão), que não sou negro nem mulato, meu pai era tcheco e minha mãe, descendente de italianos, todos brancos e alguns de olhos azuis e cabelos loiros, mas sou, sem dúvida, um cidadão brasileiro, professor, preocupado em fazer valer o que está Constituição da República, em especial, nos seus artigos 1º., 3º. e 4º., em resumo: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, dentre outros.

Não são palavras. Está na Constituição Federal!



[1] Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado, com textos de Florestan Fernandes e Elisa Larkin Nascimento, Editora Perspectiva. 4ª. edição.

[2] Ibidem, p. 47/48.

 

quinta-feira, fevereiro 11, 2021

A sociedade civil global e sua natureza

 


Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Coordenador e Professor no curso de pós-graduação

 latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e

Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional

Público e Privado). Professor de Direito Empresarial na

 ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).

 

A doutrina traz dois conceitos sobre a sociedade internacional, sendo feita uma distinção entre alguns doutrinadores entre sociedade internacional e sociedade civil global. Dessa forma, as opiniões dividem-se entre Pierre-Marie Dupuy e Marie-Claude Smouts que afirmam que tal entidade realmente existe e faz parte do cenário internacional, havendo uma grande dificuldade de indentificá-la como sujeito em função da dificuldade em conceituá-la. Smouts, por outro lado, apesar de também concordar com a impossibilidade de sua definição, utiliza tal fato como fundamento para provar que a sociedade não existe, tratando-se apenas de uma ideologia, uma ficção gerada desde tempos antigos e conclui no sentido de tentar dar um significado como uma forma de participação política motivada pela vontade de democratizar os mecanismos internacionais de tomada de decisão.

Nota-se que havendo esta dicotomia gerada ao redor da figura do Estado, a sociedade internacional funciona como uma quebra do vínculo que existe com este, mas sem desconsiderá-lo, tendo em vista a sua junção jurídica de imposição normativa em concomitância com seu poder de polícia exercido em determinado território. A sociedade internacional seria, portanto, algo mais amplo que transcende as fronteiras do Estado sem desconsiderá-lo por completo, uma vez que este também faz parte daquela.

Em suma, tal contrariedade advém da evolução de conceitos, vez que o Estado sempre foi utilizado como uma forma de personificação do indivíduo no ambiente internacional, já que ele não era considerado sujeito de direitos ativos ou passivos, conceito este que vem sendo atualizado, ainda de maneira modesta, apesar do indivíduo não poder firmar tratados internacionais, por exemplo, mas pelo fato de que hoje o indivíduo, na sua própria condição de pessoa humana e sem ser representado por qualquer Estado ou organização pode pedir seus direitos ou sofrer consequências jurídicas diretamente, como ocorre na Corte Interamericana de Direitos Humanos e no Tribunal Penal Internacional. Não obstante, que tal fragilidade ainda exista, o indivíduo já demonstra que é capaz de articular-se internacionalmente.

Na visão de Paul Wapner, a sociedade civil global é tudo que se encontra entre as esferas pública e individual, ou seja, o que há abaixo do Estado e acima do indivíduo e a diferencia da sociedade internacional pela independência de seus atores para com os Estados e por sua composição, que é formada pelos agentes da sociedade civil interna que se auto proclamaram sociedade civil global.

Dessa forma, a sociedade civil global constitui-se de entes autônomos em busca de um espaço capaz de expressar seus ideais de maneira a contrapor a força dos Estados. Marcel Merle infere sobre a necessidade de se estabelecer um estatuto jurídico para a sociedade global, visando à organização de sua atuação.

A dificuldade de definir a natureza jurídica da sociedade civil global decorre justamente do fato desta possuir uma natureza jurídica nacional, apesar de desenvolver uma atividade transnacional. Os Estados, de modo geral, não querem delegar a sua soberania neste sentido.

Apesar de muito se destacar as ONGs que sem sombra de dúvida desenvolvem um trabalho enorme internacionalmente, através da identificação de problemas e questões que devem ser tratadas, visando a assistência internacional e ajuda mútua, a sociedade internacional não é formada apenas por elas, mas sim pelos demais atores internacionais, como Estados, Organizações Internacionais, as coletividades, a Santa Sé, as empresas transnacionais e o homem. Importante, ressaltar ainda que muitas empresas transnacionais desenvolvem trabalhos assistencialistas através de ONGs.

Como visto, é fato que a sociedade civil global advém de uma movimentação da sociedade civil interna através do homem, por meio de instituições, seja ela uma empresa transnacional ou ONG.

O paradoxo existente entre a atuação da sociedade civil global e o Estado, é constatado pelo fato de que a primeira almeja atuar e desenvolver projeto de utilidade pública, que em primeira instância seria de competência do Estado, que em função de sua incompetência e ineficiência não consegue atingir os resultados desejados. Apesar dessa visão, já que o Estado é constituído por afinidades entre seus súditos, justamente para a representação dos interesses da sociedade interna, a sociedade civil global vem sendo admitida por estes por ser impulsionada pelo cidadão e entes privados em escala local ou global.

Existem alguns exemplos de sua atuação que podemos citar, tais como o reconhecimento transnacional através da União Europeia e da parceria desenvolvida nos trabalhos realizados pela ONU. Os dois casos citados referem-se à atuação conjunta entre organizações internacionais, que são atores internacionais formados pela união entre Estados, de acordo com um tratado, com a sociedade civil, seja por ONGs ou empresas transnacionais diretamente.

A ONU, por exemplo, possui uma lista de ONGs cadastradas que a ajudam na identificação de problemas mundiais, na elaboração de estudos para solucioná-los e na movimentação da sociedade internacional para implementar projetos. Obviamente, a sua solução é muito difícil, tendo em vista a sua complexidade, entretanto é importante destacar que pelo menos existem iniciativas desta natureza visando a melhoria das relações internacionais.     

 

Bibliografia:

SMOUTS, "Le concept de société civile internationale: identification et genèse".Colóquio do Centro de Direito Internacional da Universidade de Paris X, França, 2 e 3 de março de 2001.;

CHARTOUNI-DUBARRY, F.; AL RACHID, L. Droit et mondialisation. Politique étrangère, 4/99, p. 941-946. Environmental activism and world civic politics. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 1996.

ROSENAU, J. Governance in the Twenty-First Century. Global Governance 1, 13, 1995.

SCHEURER, C. The waning of the sovereign State: towards a new paradigm of international law? European Journal of International Law, v. 4, n. 4, p. 447, 1993. No colóquio do Centro de Direito Internacional da Universidade de Paris X, França, 2 e 3 de março de 2001. "L'émergence de la société civile internationale. Vers la privatisation du droit international?”


sexta-feira, fevereiro 05, 2021

A RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DO GOVERNANTE

 


Por Fabrício Felamingo

 

Nos nossos últimos artigos temos falado da relação entre o Direito Internacional e o chamado “bom governo”, no sentido de que há uma correlação direta entre o grau de inserção internacional de uma nação e seu nível de democracia. Os extremos ajudam a entender. A ninguém ocorre defender que a Coreia do Norte seja um país democrático ou sem abuso de poder autoritário, com os indefectíveis abusos contra os direitos e garantias fundamentais de seu povo. E seu grau de inserção internacional é, pode-se dizer, nulo. Não apenas não tem relações diplomáticas com a generalidade das nações como, com aquelas com quem ainda tem algum grau de contato, sempre o faz na base de encontros secretos. Uma exceção foi a tentativa de aproximação com os EUA feita durante o governo Trump, inclusive com encontro pessoal dos líderes de ambos os países, em que resta a dúvida sobre quem estaria mais “usando” o outro, se o chefe de Estado norte-americano (buscando capitalizar através de um caminho inusual para a “paz” entre as Coreias) ou o ditador norte-coreano (tentando dar algum polimento ou verniz internacional à carcaça ditatorial). Fato é que essa pouca (ou nenhuma) inserção internacional norte-coreana de forma alguma faz bem à democracia (inexistente) naquele país.

Uma faceta dessa inserção internacional é a possibilidade de o Estado ser internacionalmente responsabilizado por descumprimento de compromissos assumidos na esfera internacional. O século XX foi de grande evolução nesse tema, com a tentativa de pavimentar formas de responsabilização que não passassem pelas guerras, ou seja, uma institucionalização não apenas das normas na esfera internacional (os tratados e acordos ratificados em especial) mas também de um sistema de monitoramento e controle do cumprimento de tais normas, com eventual possibilidade de aplicação de sanções aos eventuais descumpridores.

Porém, falamos aqui da responsabilização do Estado na esfera internacional, uma vez que não há formas de responsabilização de pessoas físicas, governantes inclusos, de maneira geral. O Direito Internacional se ocupa de responsabilizar se for o caso os seus chamados sujeitos de direito, e estes são, por excelência, os Estados (e também as Organizações Internacionais e outras coletividades, mas não entraremos nesse detalhe aqui). Os seres humanos são sim sujeitos de Direito Internacional (num entendimento que foi se construindo especialmente na segunda metade do século passado), mas especialmente considerados como sujeitos de “direitos” e não tanto de “deveres”, ou seja, o Direito Internacional regula muito mais os Estados para que estes confiram e garantam direitos aos seres humanos (os tratados de direitos humanos são o exemplo máximo disso, mas as normas da OIT, para ficar apenas em uma organização internacional, também o são).

Há, porém, algumas exceções, sejam as históricas (das quais o Tribunal de Nuremberg é o exemplo mais acabado) ou as institucionalizadas, das quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) é o exemplo único atualmente. O TPI cuida apenas e tão somente de julgar pessoas, e nunca Estados, responsabilizando-as pelo eventual cometimento de crimes tipificados em seu Estatuto. Nada mais do que isso (como se pouco fosse), com o poder de encarcerar os condenados. É nesse contexto que se tem falado muito sobre a possibilidade ou não de o atual Presidente brasileiro ser formalmente denunciado e julgado por crime de genocídio, cometido na forma de sua (não) condução do País na luta contra a COVID-19, o mal que assola o mundo desde o final de 2019. As opiniões divergem mas é inegável que o critério técnico está atendido: o Brasil ratificou a Convenção de Roma de 1998 (e portanto fazemos parte do TPI) e a Constituição Federal, em seu artigo 5º, parágrafo 4º, assegura o reconhecimento e submissão à jurisdição de tribunal penal internacional ao qual o Brasil tenha manifestado adesão. Ao TPI, portanto, caberia a análise e julgamento do mandatário brasileiro: se há ou não crime, compete ao TPI julgar, baseado na tipificação do crime de genocídio previamente existente (e aceita pelo Estado brasileiro) no artigo 6º daquele estatuto, ou mesmo de crimes contra a humanidade (artigo 7º). Seria vexatório ao Brasil um Presidente ser ali julgado, mas ao mesmo tempo seria exemplar para os governantes e futuros governantes que algo assim fosse ao menos examinado pelo TPI, uma verdadeira lição de que genocídios e crimes contra a humanidade não se fazem apenas com baionetas e soldados mas também com o mero uso da voz e autoridade. Mal à democracia pelo mundo com certeza não faria.