terça-feira, dezembro 26, 2023

Navegar é preciso, (sonhar é essencial), viver não é preciso

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Vamos a uma pequena história de coragem, aceitação, raça, persistência, de superação das agruras do tempo e do espaço, de amor, entrelaçada com os poemas que contabilizam a alma, individual e coletiva:

Dom Henrique cismou, queria porque queria, conquistar o Cabo Bojador, lugar inóspito, perigoso, por causa de uma grande restinga de pedra que dele sai ao mar mais de 4 ou cinco léguas, onde se perderam navios e vidas. Era inabitável, lá para os idos de 1400. Dom Henrique enviou 15 expedições e todas fracassaram; por último confiou a um dos seus mais fiéis escudeiros, em 1434, Gil Eanes, a missão de vencer o Bojador, e este retornou derrotado, mas Dom Henrique não desistiu e exigiu que Gil tentasse novamente – com perdas de vidas, de dinheiro, de equipamentos – e, depois de muita luta e de rotas diversificadas, foi conquistado. Daí nasceu o lema “navegar é preciso, viver não é preciso”[1]

Pergunto-me: Por que se luta tanto, às vezes por nada? Acho que não importa a causa, luta-se e pronto!

No poema Mensagem de Fernando Pessoa, há referência ao Bojador e à vida:

 

X – Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

...................................................

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor (grifos nossos)

Deus do mar, o perigo, e o abismo deu,

Mas nele é que estabeleceu o céu.

 

E na composição de Caetano Veloso:

 

“O barco!

Meu coração não aguenta

Tanta tormenta, alegria

Meu coração não contenta

O dia, o marco, meu coração

O porto, não!...

 

Navegar é preciso

Viver não é preciso (2x) (grifos nossos)

 

O barco!

Noite no teu, tão bonito

Sorriso solto perdido

Horizonte, madrugada

O riso, o arco da madrugada

O porto, nada!...

 

Navegar é preciso

Viver não é preciso (2x) (grifos nossos)

 

O barco!

O automóvel brilhante

O trilho solto, o barulho

Do meu dente em tua veia

O sangue, o charco, barulho lento

O porto, silêncio!...

 

Navegar é preciso

Viver não é preciso (6x) (grifos nossos)

 

Mais uma vez Pessoa em Tabacaria:

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” (grifos nossos)



[1] Bueno, Eduardo. A viagem do descobrimento. L&PM POCKET Editores, 2023, p. 87/88.

sexta-feira, dezembro 15, 2023

Ainda Maduro, ainda Essequibo, e outros

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A seriedade passa ao largo dos problemas modernos na vida privada e na vida pública. Dão-se loas somente ao capital, não como forma de melhorar a vida das comunidades e das pessoas, mas como alimentar a ganância do poder e do dinheiro, que em si é poder na vida particular, e quando vem casado com alguma espécie de força institucional, é poder na vida pública.

O que Maduro quer com Essequibo, reivindicar histórica e antropologicamente a propriedade do território que pertencia à Venezuela?

Não cremos, por vários motivos, deles, o principal: é que Maduro não tem formação intelectual para tanto e, durante o seu governo, adquirido pela morte de Hugo Chaves e pelas instruções enviadas pelo falecido, em espírito, ao seu pupilo, nunca se preocupou com este território, como objetivo governamental e parte intrínseca do povo venezuelano.

Então, qual é a proposta de Maduro?

Para a mídia é reassumir o que pertence à Venezuela; para o público interno é insuflar o orgulho nacional desgastado pelos imperialistas dominadores da América Latina; para ele, em especial, é manter-se no poder, de um país falido e arrasado por uma administração voltada para os próprios interesses hegemônicos de poder, com esquecimento do povo, e tomar posse – isto, sim - e mais objetivamente, da riqueza petrolífera e mineral que foi detectada no solo daquela região.

Ainda que por via transversa – por política de poder equivocada - se pudesse alcançar uma justiça histórica para o povo venezuelano, ainda assim, não tem muito sentido essa bravata de conquista territorial, que não mais se justificaria nos tempos jurídicos modernos. Claro, se não fosse a sede de conquista da Rússia sobre a Ucrânia, de Israel sobre o território palestino (independentemente do legítimo direito de defesa pelo ataque sofrido), da China sobre Formosa, e outros tantos territórios em disputa. Todavia, o princípio e a norma internacional não permitem que assim seja.

Não há força cogente aos órgãos internacionais, para impor aos Estados recalcitrantes, penas duras?

Entretanto, este não é o escopo do ordenamento jurídico internacional, que foi criado sobre uma perspectiva democrática, de diálogo e de respeito.

Em termos de Direito Internacional – difícil firmar a essência desse Direito para os leigos (que são quase todos os que fazem a política internacional) – temos um ordenamento jurídico posto a partir de 1945, com fundamento nos seguintes princípios: a) soberania dos Estados; b) não-intervenção de um Estado sobre os assuntos internos de outro Estado; c) prevalência dos direitos humanos; d) respeito aos acordos internacionais (pacta sunt servanda), que é sempre deixado de lado quando os interesses políticos, econômicos e de domínio envolvem alguns entes da comunidade internacional, e outros, que vão na mesma linha de uma sociedade internacional cooperativa e fraterna.

Claro está, que o atual sistema jurídico internacional tem falhas, mas quais sistemas jurídicos – mesmo nos Direitos internos – não têm falhas?

É que – e isso se explica à exaustão nas academias – a ordem jurídica interna é hierárquica, sancionadora, dominada pelo Estado, em relação à sociedade interna, com um corpo de leis, em sua essência rígido, enquanto a sociedade ou comunidade internacional é igualitária, horizontal, não-sancionadora, não-hierárquica, de cooperação, de soberania dos Estados, grandes ou pequenos (sob quaisquer pontos de vista: econômico, militar ou tecnológico).

Ocorre que as falhas apontadas pelos estudiosos – menos estudiosos e mais cegos – é a inexistência de um ordenamento nos moldes dos ordenamentos internos, daí chegarem à conclusão canhestra de que não é uma ordem. Uma das consequências desse pensamento é o de que o Direito Internacional é apenas política internacional, é apenas fato. Ora, se assim se apresenta - e podemos considerar em homenagem ao diálogo, ao estudo e à busca da verdade - não temos solução para o viver em paz, a não ser a solução das grandes potências, dos armamentos, do domínio, do orgulho nacionalista, da necessidade de conquista, que, fatalmente, nos porá, em algum momento, em meio a uma terceira guerra mundial.

Alguns, ironicamente, podem dizer que as guerras aí estão e a ONU e as organizações internacionais nada fazem. Em parte correta a acepção, e em parte míope, porque tais guerras são localizadas e representam focos de resistência a um sistema de direito que, embora não perfeito, se baseia em princípios que são bons para todos os povos, necessitando, é certo, de aprimoramentos essenciais para funcionar, de forma plena, nos séculos vindouros, como maior e efetiva promoção dos seres humanos e de suas organizações, reconhecendo-lhes direitos internacionais e responsabilidades internacionais, independentes dos Estados.

Chegou a hora de reconhecermos que os Estados são importantes sujeitos de Direito Internacional, mas não os únicos, e que essa realidade criativa e técnica (Estado como pessoa de Direito Internacional Público) é dominada por cabeças humanas, nem sempre voltadas para o bem. Enquanto isso não acontece, é fácil declarar a guerra, a invasão, o morticínio, a escravidão, jogando tudo sobre os ombros do Estado: aí diríamos: “o povo russo, o povo chinês, o povo judeu, o povo palestino”, como se tais povos se corporificassem no Estado, encarnando todas as virtudes e todos os vícios e defeitos dos que dirigem e lideram o Estado.

O povo russo tem uma tradição, dotes artísticos, revelou na literatura e na arte em geral, alguns gênios; o povo judeu tem sua história e suas ambições sociais, religiosas e filosóficas e, também, seus escritores e artistas; o povo chinês tem sua organização científica e tecnológica avançada em diversos campos; o povo palestino tem sua ambição de organização social e de Estado independente e de viver em paz. O que esses povos têm a haver com seus ambiciosos dominadores? Talvez a responsabilidade desses povos esteja em que em algum momento elevaram ao poder não os melhores indivíduos, mas os piores. Todavia, isso não os responsabiliza pelos atos de seus mandatários, porquanto não há uma relação intrínseca de vinculação jurídica afiançável, entre os povos e os dominadores, porque mesmo nos Estados democráticos, com eleições periódicas e livres, deve se levar em conta a educação, a economia, a cidadania, plenamente vivida e outros caracteres, que tornariam um povo senhor absoluto da sociedade em que vive.

Respeitar o Estado e a sociedade que lhe é subjacente é uma das tarefas do Direito Internacional. Fazer crer que os princípios e regras de Direito podem ser a salvação para as pessoas individualmente consideradas, para as pessoas consideradas em seus grupos, para os próprios grupos, para as coletividade, para as organizações e instituições criadas nas sociedade internas, para os Estados, mesmo considerando a fragmentação atual dos poderes dentro da sociedade uma sociedade pluralista, é o caminho do Direito Internacional –enquanto Direito, repleto de obstáculos, psicológicos, sociológicos e econômicos– não mais um Direito dos Estados, mas um Direito dos atores e sujeitos internacionais, com o reconhecimento de que o Estado é apenas um desses sujeitos.

É a única luz que temos no Direito e no Direito Internacional, a compreensão dessa simbiose, entre Estados, indivíduos, organizações estatais e não-estatais, e o cumprimento dos objetivos de segurança e paz internacionais. Não há saída, ou só restará o “salve-se quem puder”.

quinta-feira, dezembro 07, 2023

A Venezuela não decepciona

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

O caso não é simples, historicamente, mas temos a convicção de que o governo da Venezuela não age de acordo com os ditames internacionais:

1.     Essequibo é um território em disputa desde o final do séc. XIX.

2.     A Venezuela alega que o território lhe foi tirado em 1899, por uma sentença arbitral.

3.     A sentença arbitral é produto de um diálogo, e na verdade Mediação dos EUA, da Venezuela e do Reino Unido, que concordaram em respeitar o resultado da arbitragem internacional.

4.     A Guiana alcançou a independência do Reino Unido, desde 1966.

5.     O idioma falado, na parte reivindicada, é o inglês.

6.     Em 2015 houve declaração de ter sido encontrado petróleo na costa da Guiana, além da área possuir reservas de diamantes, ouro e bauxita.

 

O que se pode esperar de Maduro, o homem que na morte de Hugo Chaves – outro ditador - falou para o povo que tinha recebido o espírito do morto e este dissera como devia governar a Venezuela?

O que se pode esperar de um homem que fecha o Congresso, persegue os juízes da Suprema Corte e só pensa no poder?

O que se pode esperar de um ditador que compra armamentos da Rússia e se vangloria de seu domínio?

O que se pode esperar de alguém que à frente de um país da América Latina contraria os princípios e regras internacionais e deu razão a Putin na invasão da Ucrânia?

O Presidente Lula criticou a possibilidade de um conflito. É pouco, é muito pouco. Devíamos dizer que não apoiamos a invasão da Guiana pela Venezuela, e não só proteger o nosso território, como declarar, nosso inconformismo e dizer em alto e bom som, que Maduro não tem o nosso apoio, e se possível, ir em todas as frentes, política, diplomática, econômica, social, contrariando este absurdo geográfico-político de expansão do poder.

O histórico não justifica, pois a Espanha, por exemplo, poderia reivindicar o território da Venezuela, que antes era dela e Portugal reivindicar o território do Brasil, em igual argumentação, e todos os países colonialistas reivindicaram suas respectivas colônias. Todos os países do mundo estariam na berlinda das reivindicações históricas e sociológicas pelos ditadores de plantão.

O plebiscito feito na Venezuela, com o voto de apoio ao sonho de domínio do ditador, não tem nenhuma validade jurídica internacional. Os governos ditatoriais quando fracassam internamente, empunham a bandeira do nacionalismo e do orgulho, para sobreviver, isto aconteceu com Hitler na Alemanha, na Argentina com os generais da ocasião, dentre outros.

 É “uma bola de neve”: a Rússia invade a Ucrania, país soberano (não importam os motivos); Israel arrasa a faixa de Gaza, em um contra-ataque ao Hamas, (que não representa a Palestina) em represália à invasão territorial feita pela organização terrorista (que deve ser combatida), e em comando das ordens de um Primeiro-Ministro da direita radical. Claro que Israel tem o direito de se defender, mas teria o direito de atacar e matar? E a Palestina continua sem ser um país! Esta delimitação territorial, com respeito à soberania Palestina, seria a única solução possível para a paz, e para afastar a hegemonia do grupo terrorista, (o mundo internacional reconhece isto, porém, não tem força para impor a solução pacificadora, porque a ONU, dominada por interesses vários, se mantém apática). Interesses políticos e econômicos falam mais alto. E, embora todos os países civilizados, se posicionem contrários à Rússia, Putin apoia a guerra Israel X Hamas, em consonância com o princípio da defesa do Estado invadido! A soberania vale em um caso e não vale em outro?!

A China continental já faz movimentos para uma futura anexação da Ilha de Formosa. Os governantes querem cada vez mais poder!

É a primeira ameaça bélica na América do Sul, desde 1991, e a simples declaração do Brasil, de que “a América do Sul não precisa de confusão”, desconhece a integridade de um país soberano!

Não “é preciso que o bom senso prevaleça do lado da Venezuela e da Guiana” (outra declaração do governo brasileiro). É necessário e urgente que o bom senso e o respeito às regras internacionais prevaleçam do lado da Venezuela e não da Guiana, na iminência de ser invadida.

É claro que a posição do governo brasileiro deve ser política e diplomática, mas não podemos admitir a quebra dos princípios internacionais.

Vamos aqui fazer um referendo e declarar que o Paraguai e o Uruguai são nossos?

O Direito Internacional está posto contra a parede, ou temos Cortes Internacionais – Corte Internacional de Justiça, Tribunal Penal Internacional – ou temos a arbitragem e mediação internacionais e as instâncias diplomática, bem como a atuação da ONU e de vários organismos internacionais, firme na concretização dos princípios e regras internacionais, ou não temos nada, e o mundo será do mais forte.

segunda-feira, novembro 20, 2023

A Comemoração da Consciência Negra

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP - Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A comemoração da consciência negra, para negros e brancos, para a sociedade em geral, merece alguns destaques, não pela negritude em si e, por certo, não o seria também pela branquitude, em contrariedade. Os destaques são pela inteligência, pela humanidade, pelo caminhar social de vultos – pouco importando a cor da pele, em princípio – que sulcam estradas, constroem pontes, erguem edifícios, e por vezes desaparecem na poeira do tempo. Todavia é importante, sob essa perspectiva, evidenciar o negro.

O que vemos é o sofrimento de grande parte dessa população, senão o sofrimento do dia a dia, em vista das condições precárias de alimentação, vestimenta, estudo, profissão, vida digna, mas também a desdita dos que ousam alcançar algum lugar na sociedade, posto que além dos problemas intelectuais e administrativos, em face dos que não enxergam a igualdade humana, como seria inteligentemente razoável, devem superar mais obstáculos para divulgação do pensamento e da palavra.

Podíamos enfileirar os nomes da nossa história, em todos os campos da atividade humana, desde Machado de Assis, passando por Cruz e Sousa, Aleijadinho, Carolina Maria de Jesus, Cartola, Chica da Silva, Chiquinha Gonzaga, José do Patrocínio, Lima Barreto, Mário de Andrade, Abdias Nascimento, Milton Santos, Nilo Peçanha, Ruth de Souza, Edson Arantes do Nascimento (Pelé), e milhares de outros, que foram em suas atividades se construindo e construindo o Brasil, e fazem parte da nossa alma. Vamos nos fixar em homenagem a todos e a nós, em um dos nomes aqui mencionados: Abdias Nascimento.

Nasceu em Franca, em 1914, interior de São Paulo, foi poeta, escritor, teatrólogo, artista plástico, intelectual, deputado federal, senador, doutor “honoris causa” pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pela Universidade Federal da Bahia, ganhou prêmio da UNESCO, na categoria Direitos Humanos e Cultura da Paz e pelo Shomburg Center for Research in Black Culture, recebeu as honras do mérito Cultural e a Ordem do Rio Branco, no grau de oficial, e após o seu falecimento, em 2013, o Senado criou a Comenda Senador Abdias Nascimento (em um tempo em que a desconsideração social continua grande, a criação de uma Comenda fica no triste patamar dos emblemas e símbolos, sem efetividade social concreta: quais foram os nomes que receberam a Comenda, e o que fizeram? Cadê a divulgação e respectiva valorização?). Criar medalhas, comendas, fazer discursos, homenagens, erguer bustos, e não transformar a sociedade, por meio da educação e de exemplos é nada. Vale a mesmice de uma frase, que diz tudo: “chover no molhado”.

Quisera que Abdias Nascimento e outros, já mencionados, frutificassem!

Dentre os seus escritos destacamos “O Genocídio do Negro Brasileiro – processo de um racismo mascarado” (Editora Perspectiva), em que trata da Escravidão e o Mito do Senhor Benevolente, a Exploração Sexual da Mulher Africana, o Mito do Africano Livre, o Branqueamento da Raça, a Discriminação e outros assuntos.

Neste livro de 218 páginas, em primoroso e corajoso estudo, Abdias Nascimento denuncia a realidade: “Os menos enganados pelos vários mitos tecidos em torno à escravidão no Brasil foram os africanos, que conheciam na própria pele as influências ´mitigadoras` da Igreja Católica e as ´benevolências` do português. Desde o início da escravidão, os africanos confrontaram a instituição, negando fatalmente a versão oficial de sua docilidade ao regime, assim como sua hipotética aptidão natural para o trabalho forçado. Eles recorreram a várias formas de protesto e recusa daquela condição que lhes fora imposta, entre as quais se incluíam o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta. O afrodescendente escravizado praticou, ainda, a forma não violenta ou pacifista de manifestar sua inconformidade com o sistema. Foi o mais triste e trágico tipo de rejeição – o banzo. O africano era afetado por uma patética paralisação da vontade de viver, uma perda definitiva de toda e qualquer esperança. Faltavam-lhe as energias, e assim ele, silencioso no seu desespero crescente, ia morrendo aos poucos, se acabando lentamente.[1]

O que mudou nos dias de hoje? Temos nos guetos de várias cidades brasileiras, o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta – e outras formas modernas – o sequestro, os grupos armados, as milícias, o tráfego de armas e drogas, o domínio dos morros, novo poder, e a oposição ao Estado e o banzo no abandono do vício, nas “ruas dos drogados”, sujos caminhantes, com cobertores sobre a cabeça, o fumo entre os dentes, as picadas no braço, a aspiração do pó, preenchendo os pulmões e o cérebro a falta de perspectiva e o abandono marginal: a tristeza infinita que não conhece e não se reconhece, a si mesma, inconsciente, e que vive por viver, somente dela saindo para reagir violentamente, contra as regras estabelecidas. Morre cedo, pelo suicídio indireto, assassinado, ou por mero abandono. E o Estado, este gigante incompetente, produz apenas estatísticas. Não há horizonte possível. O Estado não percebe ou não quer perceber o cerne do problema histórico e social, que o sistema de cotas busca fragilmente melhorar.

O Estado só enxerga os bandidos, não vê os beneficiários do sistema econômico e social implantado, direta ou indiretamente, por aqueles que nasceram só para usufruir do mundo, ultrapassar obstáculos acadêmicos e exercer nicho do poder social, como tantos amigos, e como nós que aqui escrevemos.

Mudar alguma coisa significaria abrir mão de muitas benesses e pensar no próximo. Para o indivíduo, fazer isso é quase impossível, para a coletividade, dependeria de uma consciência coletiva pouco provável, mas o Estado poderia buscar o bem comum, com suas normas e atos administrativos. Não poderia?

Onde estão os líderes e administradores? Sentados em suas cadeiras a traçar com a ajuda de escritores (intelectuais missivistas a serviço do nada), suas perorações de mudança e seus ditos históricos.

Direita e esquerda por vezes parecem irmãos siameses, unidos pelo umbigo.

Embora branco estou, hoje, com um pouquinho de “banzo”!



[1] Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado. Perspectiva, 4ª. Edição, p. 70/71.

segunda-feira, setembro 11, 2023

Um Estado não corrupto

 

imagem oabsp

Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A corrupção do Estado e do agente do Estado, na corrupção total dos relacionamentos (esta expressão é nossa), é, segundo Fernando Calderón Manuel Castells, “um traço sistêmico da América Latina do século XXI”[1]. Em sua análise serve-se de dados da Transparência Internacional para explicar que países como Chile, Costa Rica e Uruguai apresentam nível baixo de corrupção, o que significaria que nos demais o nível de corrupção é maior. Interessante a avaliação que segue a esses dados, ao observar: O Chile teve a ditadura de Pinochet, que estabeleceu um Estado semipredador e que se apropriou de benefícios e recursos públicos, em benefício do ditador e de seus seguidores mas, como reação, a partir de 1990 teve restabelecida a Democracia e instaurada a institucionalidade na magistratura e o profissionalismo na administração pública.

O segredo da possível estabilidade pareceu estar na manutenção do mercado – este não poderia ser abandonado - centrado na exportação  e no prestígio aos direitos humanos, - que com Pinochet não existiam – aumento salarial acordado com os sindicatos e a criação de uma rede de segurança em educação – mais livros e professores, e não o contrário, a inserção tecnológica e digital, de textos sem conteúdo educacional válido, repleto de erros históricos, geográficos e filosóficos (como vimos, recentemente acontecer, sabe-se lá de onde foram tirados!), bem como política de saúde e de aposentadoria.[2]

Poderíamos ir por caminho similar, sem radicalismos ideológicos, mas consagrando – aí sim, de forma extremada – a Democracia, as eleições, a cultura, a diversidade de ideias, o ensino para a vida civil (entendemos que a vida militar, necessária e imprescindível para a defesa da nação, está dentro do propósito maior da sociedade civil), a ciência, o incentivo à pesquisa em todos os campos, a literatura e a todas as formas de arte e de esporte.

É inacreditável – permita-nos a dúvida do momento -  a chamada dança dos ministérios nos governos que se formam! Os ministros de um presidente devem auxiliá-lo nas áreas técnicas em que o chefe de executivo não tem obrigação de conhecer – basta ser ele o líder do governo -, como na educação, na economia, no trabalho, no esporte, na saúde, na indústria e comércio, nas relações exteriores e outras, e não serem, como hoje são, moedas de trocas para prestigiar partidos políticos e pessoas, que velada ou abertamente, possam ameaçar a votação de um projeto para o bem público, se não tiverem partes do poder (o Presidente da República, seja ele quem for, não pode ser refém de interesses menores). Onde se encontra a República nessa forma de agir? Onde está a preocupação com o povo, nisso?

Claro que o diálogo com todos os partidos e com todos os políticos é fundamental à medida do que efetivamente representam para a sociedade. É o que realmente acontece, na atualidade?

A corrupção é um caminho natural em tais questões: corrupção ampla, que leva em conta os nichos do poder, da influência, do mando predatório. E quem disse que o civil é errado pelos caminhos que toma na condução da coisa pública, e o que possui a legalidade do uso das armas e dos uniformes não erram, nos mesmos caminhos? A questão toda se insere na educação para a vida social? Todos podem serem corrompidos, se não tomarem cuidado com as próprias ações.

Tais considerações não importam em afastamento de nossa crença particular de que as instituições estão corretas e que aqueles que as ocupam são, em geral, dignos de as ocuparem. O Brasil é maior do que todos, e só haverá possibilidade de progresso enquanto acreditarmos na ordem jurídica posta, como ora posta, com os princípios inseridos na Lei Maior de 1988.

A falsa questão dos direitos humanos versus combate aos “bandidos e vagabundos” nos leva, no mínimo, a erros de percepção administrativa ou a corrupção política. Não se termina com a “bandidagem” matando; mata-se um grupo de bandidos e outros se criam na mesma proporção, e às vezes com mais força. Direitos humanos são de todas as pessoas e não de classes específicas; devem ser a espinha dorsal da sociedade, a base de seu Direito, a argamassa do seu edifício, a coluna de sua sustentação (aliás está na Constituição Federal). Boa parte dos chamados “bandidos” e drogados ou passadores de drogas, foram criados em condições injustas, sem oportunidade, sem ensino, sem família, sem emprego, sem comida. Há os que, apesar de terem tudo, se desviam do caminho, mas certamente não são a maioria do contingente dos marginalizados.

Por que não reconhecer que a nossa sociedade é essencialmente injusta e antidemocrática? Talvez, para manutenção do poder: os privilegiados, não querem dialogar nunca, só querem reprimir os que ameaçam, de algum modo seus refúgios. Os “bandidos” no fundo pensam de igual modo, querem seus retiros, seus remansos, suas edículas, seus nichos de domínio e para isso buscam assaltar, matar, obter coisas: transformam-se em comunidades paralelas, com os seus próprios poderes, Executivo (o líder manda), Legislativo (as regras criadas pelo grupo devem ser obedecidas, sob pena de morte) e Judiciário (o julgamento é por um tribunal “ad hoc”, com juízes formados pela ordem jurídica da facção). Estados paralelos, dentro do Estado oficial, tudo por causa da corrupção intrínseca de agentes estatais, que cegos não enxergam o mal que fazem.

Os “bandidos” são criados por nós, que depois sofremos e gritamos porque nos encontramos nas mãos deles!

Que tal começarmos a agir de acordo com a Constituição Federal, com as leis infraconstitucionais e, quando estivermos em algum lugar do poder, na família, na empresa, no Estado, praticarmos o bem; não há necessidade de que seja o bem de Cristo, ou do bem de Buda, ou de qualquer outro avatar iluminado, mas simplesmente o do bom senso: a liberdade de falar e de ouvir, de argumentar e de raciocinar, de viver individual e coletivamente. A simplicidade de respirar, olhar, viver!

A corrupção do Estado é a corrupção dos nossos valores; a corrupção de todos nós. Menos livros, menos professores, mais armas, mais dinheiro, mais medalhas, mais panegíricos aos que nos dominam e menos raciocínio e humildade; em assim sendo, dúvidas não existirão: continuaremos a ser apenas o país do futuro.

Quando virá?



[1] Castells, Fernando Calderón Manuel. A nova América latina, Zahar, 1ª. Edição, p.297.

[2] Ibidem, p. 298/299.

sexta-feira, setembro 01, 2023

Normas internacionais: “hard law” ou “soft law”


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

As normas de Direito Internacional, como todo e qualquer norma, tem a sua proposição – o que é de direito – e estabelece as consequências. Sua estrutura, portanto, geralmente advinda dos tratados internacionais, não é diferente da estrutura das normas internas dos diversos Estados.

Entretanto, põe-se em dúvida a sua real efetividade, uma vez que ela não advém de um Poder legislativo ou equivalente, que imponha aos seus jurisdicionados uma determinada conduta.

Lembremos que, de certa forma, a vida jurídica internacional busca seus modelos básicos no
Direito Interno dos Estados, e até propicia esferas de julgamento de casos conflituosos, por Cortes específicas, com regras sobre “quórum”, apresentação de provas, argumentação de defesa e de ataque e alguma espécie de penalidade para os infratores.

Lembremos, ainda, que não só os Estados entram em conflitos, tendo em vista a interpretação de princípios e normas, e a atuação dos organismos internacionais, bem como, na vida atual, o próprio ser humano se vê envolvido em questões internacionais e pode vir a ser julgado pelo cometimento de atos ilícitos na esfera mundial, independentemente dos Estados.

Por outro lado, os princípios internacionais e o costume são tidos “lato sensu” como normas, que devem ser obedecidas, embora nem sempre se tem certo, a consequência de eventual infringência.

Assim, temos uma variedade de normas internacionais, das mais diversas origens, que buscam harmonizar e mesmo uniformizar as relações internacionais.

A grande maioria das normas internacionais são produzidas pelos próprios Estados, em tratados internacionais multilaterais e bilaterais, que eles mesmos se propõem a cumprir; isto é, são ao mesmo tempo os legisladores e aqueles para os quais as normas são dirigidas, quando não os julgadores do descumprimento. Em suma: na sociedade internacional, o poder de impor normas, de cumpri-las e julgá-las, é diversificado e fragmentado, inexistindo poderes eleitos e com organicidade, perfeitamente delimitada.

Entretanto, as normas existem, são tidas como tais e em geral são acatadas. Se entendermos que a sociedade, seja ela qual for, interna ou internacional, se mantém íntegra por instrumentos de contenção, de repressão e de premiação das boas práticas, as normas internacionais cumprem o seu papel e formam um sistema jurídico, porque sobreleva no horizonte internacional um “ius cogens” composto de normas tidas como fundamentais, como as que são de direitos humanos, ainda que não provindas de tratados.

A pergunta que fica para a pesquisa acadêmica é se tais normas prevalecem por serem “hard law” e/ou por serem “soft law”?

Aqui há uma provocação, porque muitos estudiosos não dão ao Direito Internacional a natureza de Direito e não veem no sistema internacional, um sistema jurídico.

Opiniões à parte – todas respeitáveis – entendemos que são normas e que o sistema jurídico existe: algumas rigidamente postas, com consequências estabelecidas pela eventual indisciplina; outras, revelam-se mais atuantes pela expectativa do cumprimento por todos, e caso este não ocorra, o efeito será de prejuízo econômico, social ou político, o que às vezes é mais temido, do que uma decisão judiciária, do que uma condenação.

Por tais motivos, concluímos que o mundo internacional vive basicamente desse desiderato, dessas expectativas, do que de considerações técnico-jurídicas, muito agosto dos ordenamentos jurídicos internos.

O que releva dizer que as normas internacionais são intrinsecamente de “soft law”. Adaptáveis, às situações, interpretativas, de textura aberta, maleáveis, inquebrantáveis – ou, o que se deseja assim – porque se dobram às intempéries dos ventos políticos, mas não se rompem em definitivo; as revoluções, com total quebra do sistema, não são alimentadas e queridas: discute-se; existem celeumas e críticas, mas o Direito Internacional mantém-se hígido; a sua força está na sua aparente fraqueza.

Entender que o Direito, como sistema, somente funciona pela hierarquia das normas e por regras de imputação (Kelsen) até chegar à Constituição Federal e/ou, mais adiante, à chamada “norma hipotética fundamental”, é empobrecê-lo.

O sistema internacional funciona pelo convencimento, pela cooperação, pela idealização do conviver social, em paz, em todas as áreas, no Direito considerado público (que envolve Estados) e no considerado Direito privado (que envolve particulares), tendo em vista o compromisso dos Estados e relativizar as suas soberanias, e criar regras de aceitação do direito estrangeiro.

Não há necessidade de punição e medo, mais do que aceitação. Se aquelas funcionam para o Direito interno, não é certo que funcionem de igual forma, para o Direito Internacional.

Na área internacional somos, basicamente, “soft law”.

terça-feira, agosto 08, 2023

A inculta cultura digital - ou “Eu, o Robô”

 


                           “A educação é um ato de amor, por isso, um ato

                                    de coragem. Não pode temer o debate.”

                                                                                                  Paulo Freire

 

 

Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Livros para a Educação de São Paulo, não são mais necessários?

O material digital – tão importante para o mundo moderno – passaria a ser em São Paulo, em um primeiro momento, o único para a formação dos alunos, pela Secretaria da Educação e para o atual governador do Estado, uma vez dispensados os livros fornecidos pelo Ministério da Educação e Cultura.

É inacreditável. Encaminharemos para o sucateamento do ensino e da cultura, com o único objetivo de ter o domínio de um pensamento único e de uma visão ideológica do mundo, visto que, mesmo admitidos os livros, eles serão escolhidos e inseridos no mundo digital.

A UNESCO da Organização das Nações Unidas, voltada para a Ciência e Educação, recomenda o uso da tecnologia como complemento a outras estratégias de ensino, nas salas de aula, e não como meio único e principal, o que aliás se tem lógico, justo, equilibrado e sensato, para a divulgação do ensino e da cultura. Afinal, a sociedade é múltipla, diversa, composta de raças, religiões e culturas diferentes.

A escolha de texto, autores, livros, pelas Escolas e pelos professores, e a possibilidade de ampla pesquisa pelos alunos, é a única forma democrática, consciente e legítima de transmissão da realidade social e de difusão da história, da poesia, do romance, da geografia, do pensamento, da compreensão analítica dos textos; necessária reflexão sobre o que está escrito, e, portanto, a concretização do efetivo progresso, além da garantia da liberdade de ensino, de cátedra e de aprendizado.

O computador, a internet, o celular, as aulas, com “power point” são recursos, assim como o papel, a caneta, o lápis, tudo, enfim, que o professor pode utilizar, como instrumental para a maior compreensão do que é transmitido.

Por outro lado, ainda que se admita o material digital – nunca como único – é necessário garantir a sua diversificação de fontes e de pensamentos, e o atingimento de todas as camadas da população, porquanto, se assim não ocorrer, será o domínio de um único entendimento sobre o mundo viável, sobre a administração e sobre a sociedade, para uma elite eventual. Deve-se perguntar, portanto, se o material digital que pode vir a ser imposto, sem consulta a professores, atingirá todos os estabelecimentos de ensino e todos os alunos indistintamente, independentemente da classe social. E o que fará parte do conteúdo desse material? Haverá abertura total para o mundo, ou haverá um direcionamento?

Em plena Era Moderna, séc. XXI, caminhamos cada vez mais no exercício do poder de poucos, sobre a grande maioria. Não haverá efetivo progresso, não existirá efetivo espírito público; somente o pensamento egoísta, raquítico e cego na manutenção das benesses socioeconômicas de grupos privilegiados.

A tecnologia e a formação digital são fundamentais, desde que o estudante possa avaliar, de forma criteriosa, os textos que serão inseridos no meio digital, sem obrigatoriedade e determinismo de uma só via filosófica, diga-se, nem da direita nem da esquerda.

Do modo, pelo qual está sendo resolvida a questão nessa área; uma guinada radicalizada para o mundo digital, afastando-se, pura e simplesmente, os livros e os pensadores, para desenhar apenas um caminho de divulgação, acabará por implicar em direcionamento filosófico-político, de efetivo retrocesso social.

Noticia a imprensa, que o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, recomendou o uso da tecnologia como complemento, e com base nesse programa o MEC comprou livros didáticos para todas as escolas públicas do País, não sem antes a devida avaliação.

O que move, efetivamente, a administração do Estado? Infelizmente a desconfiança dos motivos, nos deixa cismados, tendo em vista as diversas manifestações e atos administrativos, em todos os setores, contra os direitos humanos, a favor das armas, das escolas militares, das elites, e outros, que se revelam divorciados do povo.

O material digital divorciado dos livros é um Alzheimer educacional, um transtorno neurodegenerativo digital, progressivo, que deve e pode ser evitado.

terça-feira, julho 25, 2023

A Escola, a cultura e a realidade

 


Por Carlos por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Não se pode exigir da extrema juventude a exata ponderação das coisas; não há impor a reflexão ao entusiasmo.[1]

 

Com razão Machado de Assis, embora os tempos atuais demandem um pouco de reflexão e de direcionamento do entusiasmo.

De que juventude falamos? A juventude vem, de ordinário, considerada em termos de idade, entre 11 e 18 anos –para os mais antigos– estendendo-se até os 21 ou 22 anos –para os atuais– e, considerando o progresso da Medicina, até mais, atingindo os 30 ou trinta e poucos, já que se prolonga cada vez mais a vetusta idade, que hoje ultrapassa os 70 anos –idade média esta–, com a tendência de chegar aos limites dos 80 ou 80 e poucos, para só depois considerar-se a velhice como um marco, a partir daí.

Na verdade, se antes tínhamos a formação escolar como necessária etapa para a base do entusiasmo que não dispensava a reflexão, nos tempos de hoje, que voam céleres, do bebê ao velho –as décadas passam acopladas em anos cada vez mais diminutos– não se pode esperar do “jovem” muita reflexão; não há tempo, ou ele faz já, ou não faz nunca. E, aí, se perde a possibilidade da meditação e do aprimoramento.

É necessário alcançar, o mais depressa possível, o estrelato, a gerência, a diretoria, o aplauso, a riqueza, o espaço. Não se há de admitir o aprendizado, que demande tempo, nem muito menos o eventual fracasso no caminho: todos se entendem suficientemente maduros, para saber o que é melhor; e se assim não ocorrer, a desistência e a partida para outros objetivos, outras possibilidades é o que se descortina.

Lembro de uns versinhos, cujo autor, salvo engano, é anônimo: “O tempo Não me dá tempo/ de bem o tempo fruir/ e nesta falta de tempo/ nem vejo o tempo fugir.”

O que podemos esperar de nosso sistema de ensino, se não observamos o legítimo entusiasmo e a necessária reflexão, edificados no patamar da cultura e na transmissão de velhas lições?

Talvez estejamos produzindo folhas soltas, sem parágrafos coordenados, sem capítulos, sem conexão entre começo, meio e fim. Não depende das novas gerações, mas da divulgação e coordenação pelo Estado, da cultura –amplamente considerada–, que hoje, no Brasil, se encontra apartada das reais necessidades sociais.

Vale a notoriedade, o visual, o dizer sem dizer, o agir sem agir. Na sociedade da comunicação em rede: milhares de amigos, todos aplaudindo e batendo palmas, sem a efetiva aproximação e empatia, sem o olhar no olhar, sem o necessário abraço.

É o mundo do consumo. De um consumo de retalhos, de cores (caras, bocas), das aparências, da psicologia em algumas linhas, do apelo a veneração momentânea e, também, ao ódio desenfreado, à inveja, às demonstrações de brilho (nas roupas, nos lábios, nos olhos, nos carros), de “selfs” e de apelos fáceis. A profundidade das coisas e dos fatos, perdem-se em um abismo de intenções superficiais.

Milton Santos, analisa:

Também o consumo muda de figura ao longo do tempo. Falava-se, antes, de autonomia da produção, buscava também manipular a opinião pela via da publicidade. Nesse caso, o fato gerador do consumo seria a produção. Mas, atualmente, as empresas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos...(...) Tudo isso se deve, em grande parte, ao fato de que o fim do século XX erigiu como um dado central do seu funcionamento o despotismo da informação...(...) Como as atividades hegemônicas são, hoje, todas elas, fundadas nessa técnica, o discurso aparece como algo capital na produção da existência de todos. Essa imprescindibilidade de um discurso que antecede tudo – a começar pela própria técnica, a produção, o consumo e o poder – abre porta à ideologia.[2]

Educar na sociedade de consumo, pelo consumo e para o consumo, mal dirigidos pelo entusiasmo sem qualquer reflexão, dessa nossa juventude, dos 11 aos 70 anos, é tarefa para a qual o Estado não está preparado, e talvez, nem queira fazê-lo, dependendo dos seus objetivos ideológicos. Dividir para governar.

O engano e a magia das palavras soltas e dos gestos imitativos; espelhos sem fundo; sombras na caverna.

Todos buscam alcançar a notoriedade, em especial desfilando pelo Instagram. E o que se vê nas redes sociais? Uma infinidade de gestos e olhares e de palavras de ordem, sem lastro, e milhares de seguidores. A extensão comunicativa e a limitação do conteúdo, só expresso no intuito de agradar ou de contar os próprios momentos de alegria, de enfado, de tristeza. Espelho. Contentamos em ver, e quem sabe, seguir o mesmo caminho da comunicação plana e sem maiores comprometimentos. O mundo do faz de conta, com infinidade de “amigos”.

O Estado mudando a forma de exercer o poder, ou perdendo gradativamente suas garras sociais. Tem-se que se fragmentou diante dos diversos poderes privados, e só se mantém como ente de direito público interno, pelas regras institucionais.

O verdadeiro poder está na comunicação individualizada de pessoas, organizações, empresas que determinam os rumos a serem seguidos. O espelho não funciona para o Estado, que não se enxerga e não vê ou não quer ver os fatos e as possibilidades.

É fato que o mundo de cada um, gira em torno do próprio eu, pelo eu e para o eu: a um grande “self”, que globaliza o indivíduo, independente da busca, mais midiatizada do que concreta, de uma globalização efetiva.

Nosso entusiasmo direcionado na busca da realização pessoal, conflita com as razões do Estado, que deveriam pautar-se pelo comum. É uma luta surda; um braço de ferro, em que o perdedor –seja ele quem for– faz sucumbir a própria razão do jogo, ou se quiserem, a razão de viver.



[1] Assis, Machado. A nova geração in Machado de Assis e as primeiras incertezas, de Wilton José Marques. Editora Alameda, 2022, p.16.

[2] Santos, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Editora Record, 2021, os. 59 e 63.

segunda-feira, julho 17, 2023

“Non ducor, duco” – “Não sou conduzido, conduzo”

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Centro econômico e político, palco dos acontecimentos mais importantes que impactaram a história do Brasil, berço dos bandeirantes, berço de vários pensadores e condutores nas ciências, nas artes e na política, não pode se vergar a desideratos cegos de educação rígida, que serve para uma parte dos cidadãos – dependentes das funções que vão exercer - e não para todos. Ainda que assim não fosse, seria necessário não um engajamento incondicional e irrestrito a ordens, mas uma reflexão, uma inteligência sobre o que é proposto e a sua essência e finalidade. Não se educa para a guerra e para as armas, educa-se para o progresso, para a convivência, para o descobrimento das ideias, para a cidadania.

Educar é educar para a vida, que significa conhecimento, raciocínio, diversidade, aceitação das diferentes opiniões, introdução e discussão dos principais conceitos filosóficos, consciência para a cidadania, para real finalidade do Estado e da República (que não é certamente o domínio e a perpetuação no poder de uns) para a Democracia, para o exercício do voto e a possibilidade de revezamento no poder, para a liberdade com os limites da convivência comum, para a dialética, para o diálogo e o respeito à Justiça e aos argumentos, a não para a obediência cega.

Educar não pode ser o acato a ordens, sem qualquer raciocínio, sem quaisquer questionamentos (marcha, continência, determinações, disciplina militarista); não, para crianças que ainda vão escolher o caminho a seguir na vida adulta; uns podem vir a ser militares, outros, políticos, outros, artistas, outros, poetas, outros, professores. Não se pode querer um militar que questione as ordens de seus superiores, mas também não se pode ter um civil (professor, artista, escritor, político) que obedeça deslumbrado, alucinado, cego, a comandos de eventuais regimes antidemocráticos. A nação não se constrói em valores e em progresso, não evolui, não compete internacionalmente, não se administra internamente, não promove a vida plena, não diminui as diferenças entre pobres e ricos, se não transmite de forma plena todas as possibilidades do viver em sociedade. Queremos adultos conscientes, não marionetes, que se dobram a ordens, pura e simplesmente, em nome de uma determinação pessoal, radical e ditatorial de qualquer governante que queira impor seu domínio exclusivo. Queremos DEMOCRACIA! Governo impessoal, civilização, cultura, igualdade! Governo do povo! Do povo que toma decisões; do povo que conduz e que não é conduzido!

Sobre a Democracia, muito se disse e pouco se compreende. No Dicionário do Pensamento social do Século XX, alguma análise é proposta:

...a ideia de o povo inteiro tomar uma decisão (não uma decisão determinada, como se comanda o gado) implica a noção – resumida no slogan ´um homem, um voto` - de cada indivíduo ter voz igual. Sem isso, haveria uma decisão apenas de parte do povo, em vez de todo ele. Mas a conexão é tão estreita que a igualdade às vezes se torna crucial para o próprio sentido de democracia...(...) ´democracia` significa, a grosso modo, `uma sociedade na qual existe igualdade`...(...), e em concepções tais como ´democracia social` e ´democracia econômica`, em que a ideia de um sistema caracterizado por igualdade social e/ou econômica é crucial...(...). O significado de ´democracia` está razoavelmente claro, mas esse fato tende a ser obscurecido devido à diversidade de sistemas que foram chamados de democracias...(...) Na verdade, para alguns parece que ´democracia` é meramente uma ´palavra de aclamação´ (como hurra! ou viva!), esvaziada de qualquer conteúdo descritivo, nada significando além de ´viva esse sistema político` (ou viva este líder!). Uma confusão desse tipo pode ser evitada, porém, estando-se atento às distinções entre o significado admitido de ´democracia` - governo do povo – e julgamentos discordantes a respeito do que é necessário para que tal governo exista, e, daí, quais sistemas políticos de fato a exemplificam.[1] A democracia é difícil de ser compreendida e conquistada; o caminho mais fácil é esquecê-la para aclamar ordens, pura e simplesmente, sem raciocínio crítico, raciocínio esse que, necessariamente, contempla ideias opostas. Mesmo os regimes de mando serão cada vez mais frágeis, à medida que impedem o raciocínio e buscam apenas a obediência cega e a aclamação obcecada por mitos e símbolos que envolvem e embotam o pensamento. Isto, serve para todos os radicais, de esquerda ou de direita, que ao fim e ao cabo, se encontram em igual patamar (Rússia, Venezuela, Coreia do Norte, Síria e outros). Por que devemos nos engajar politicamente a um dos regimes, que no seu nascedouro teve como inspiração uma ideia muito particular, comunista ou nazista, reacionária, emblemática de uma personalidade, de um conquistador, de filosofia popularmente atraente, e depois abandonada, só para favorecer o poder e a sua perpetuação?

Nada é muito claro, quando se trata do ser humano e do ser humano vivendo em sociedade. Há virtudes e defeitos. Nenhum regime é perfeito, mas preferimos a Democracia.

Uma bela comparação histórica, se faz entre Atenas e Esparta: Atenas propôs ao longo de sua existência, diversas reformas até chegar à Democracia; Esparta era intensamente conservadora e tradicional, ligada a um sistema arcaico. Atenas viveu domínio político cultural, com florescimento das artes, da ciência, do pensamento filosófico, da construção urbana, com o cultivo da razão e a valorização da participação popular; Esparta apostava na educação militar rígida, educando as crianças, desde os sete anos, para serem guerreiras, cultivava a boa forma e o exercício militar, o domínio das armas e da luta, valorizava a obediência irrestrita.

Preferível Atenas a Esparta.

 

 

 

 



[1]  Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Editado por Willian Outhawaite & Tom Bottomore. Jorge Zahar Editor, p.179/180, 1996.