segunda-feira, dezembro 27, 2021

Pedro Paulo Manus



 Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.


Existem professores que esbanjam sua sabedoria, com gestos teatrais, e magistrados que se escondem atrás da toga, e, no olhar e na boca em arco, e nas sobrancelhas em curvas descendentes e centralizadas, que acompanham as linhas da testa, olham para os mortais, jurisdicionados e mesmos colegas, de um elevado imaginário, representado pelos títulos e pelos anos de magistratura.

Uns e outros estão longe do ser humano, porque não se sentem pertencentes à espécie, e cada vez que galgam uma posição na vida, distanciam-se mais e mais, iluminados por suas medalhas, por suas condecorações, por seus títulos. Ostentam falas e meneios de poder e quem deles se aproxima deve guardar respeitável distância. 

O mundo vive disso: aparências, galardões, respeitabilidade pela faixa conquistada, pela toga exposta, pela cadeira de espaldar maior, pelo cargo, pelos acólitos de que são servidos, entretanto, provavelmente, também têm suas dores físicas e morais, que não são visíveis, e que se escondem no infindável e escuro poço do inconsciente.
Manus não era nada disso, embora, tivesse medalhas, títulos e cargos. Participou de diversas reuniões, como juiz, desembargador, ministro, diretor da faculdade de Direito, vice-reitor, com simplicidade e bom humor. 

Quase sempre os eventuais apologistas destacam tais características, a que a alguns pode parecer algo menor, afinal não se trataria de alguém cujas obras podem ser tidas como indiscutíveis, de um luminar, sentado na sua cadeira a julgar os alunos incautos. Assim, efetivamente, não o era para os padrões do dia a dia; um ser de outro mundo com seguidores acocorados prontos para receber a benção ou o castigo. Era simples e na sua simplicidade irradiava aos mais desafortunados uma palavra, e a esperança de possível sucesso – a vida acadêmica, com ele, tem incontáveis exemplos no gesto amigo aos que dele se aproximavam - (o que a grande maioria não se atentava), sem ofender e sem se altercar. Por vezes, com um sorriso significativo, lançava uma fina ironia, vestida de humor, mas que continha uma análise, um olhar crítico. 

Tendo em vista essas características, muitos as classificavam, de forma precipitada, como uma espécie de descompromisso, próprio daquele que não se envolvia de fato, em determinada situação. Ledo engano. Lá estava um espadachim com sua estocada certeira para quem quisesse ver e ouvir, porque não há dúvida que algum ferimento, e profundo ferimento, causava para o infeliz que, ladino observasse e sentisse que fora objeto da troça, e para aqueles – poucos – que na mesma situação tivessem igual percepção. 

Não era maldade, que isto não possuía nem ao menor grau, era inteligência sarcástica, apropriada para o momento. Manus foi grande, como soem ser os símplices, “que deles é o reino dos céus”.

Neste mundo de desconfianças, fingimentos e disfarces, Pedro Paulo Teixeira Manus fará muita falta.

quinta-feira, dezembro 23, 2021

Expectativa

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


A experiência pode ser representada como faróis de um carro voltados para trás. Parece de nada servir, porque a humanidade passa pelos mesmos problemas a cada ano e em cada ano os supera, em eterna repetição. (relembrando Pedro Nava)[1]

Natal, e logo depois o Ano Novo. Marcações do tempo, que passa como atos de uma peça de teatro particular, na vida de cada um e na vida de cada país. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, e vamos passando com nossas agruras, com nossos problemas, com nossos fracassos, com as nossas eventuais vitórias. O que aprendemos? Talvez, somente a eterna repetição, não nos mesmos moldes mas, efetivamente, parecidos. A História, e as histórias, dizem, é cíclica, dá voltas e faz girar a roda dos acontecimentos, fazendo com que se reproduzam, embora mudem os personagens, reencarnações similares dos antigos que pensávamos mortos e ultrapassados.

Ouvimos os mesmos diálogos, os mesmos discursos, os mesmos gestos, com uma ou outra pequena modificação, talvez a roupa, o cabelo, a falta de bigodes e de chapéus e de fardas, com medalhas e decorações, e cavalos e bandeiras, e tanques de guerra em desfile pelas ruas.

Abrem-se as cortinas do palco e sobre o tablado há uma movimentação já conhecida; esquadrinhado em riscos transparentes, pode-se ver com certa antecipação o que sobre ele se desenrolará. Inacreditável como somos previsíveis!

2022 vem como vieram os anteriores e a esperança que se renova, renova-se sempre todo ano: quem sabe, não se apresentará no cenário uma novel figura, de diferente colorido, de palavras mágicas, de ideias concretas, de brilho nos olhos!

Esperemos.

Esperemos que o Ministro da Educação se preocupe com a alfabetização e a cultura das gerações em suas várias faixas, sem fazer mesuras ao Presidente de plantão, sacrificando ideais culturais maiores e de progresso civilizatório.

Esperemos que o Ministro da Saúde busque a saúde da população mais pobre e o estabelecimento de vacinas preventivas e a preservação da vida, antes de tudo.

Esperemos que o Ministro das Relações Exteriores possa orientar o governo central no estabelecimento de pontes, de diálogos, de negociações, com todos os países do mundo e evitar fazer a divisão entre esquerda e direita, amigos e inimigos, e outras cisões, na esteira luminosa do Barão do Rio Branco.

Esperemos que o Ministro da Economia não sacrifique os ditames, regras e princípios de sua área, em prol de interesses específicos de manutenção do poder, cooperando para compra de pessoas que pertençam ao grupo de apoio para futuras eleições presidenciais.

Esperemos que as instituições nacionais e internacionais funcionem em bases mínimas voltadas para a coletividade e que as diferenças raciais, religiosas, filosóficas e ideológicas sejam, efetivamente, diminuídas.

Quem, afinal, escreveu essa peça interminável de ruins e canastrões atores? Ou é um “moto contínuo”, automático, que nos faz rodopiar e rodopiar, sem que o raciocínio, privilégio do animal humano, aclare os fatos e faça a espiral dos fenômenos sociais traçar uma curva um pouco maior e, finalmente, andar, prosperar, afastar-se da mesmice, consagrando a evolução?

Será que, ainda, faremos um papel de espectadores passivos, girando pela eternidade a roda dos absurdos?

Um Feliz Ano a todos!



[1] Nava, Pedro da Silva. Médico, escritor, contista e poeta, escreveu, dentre outros livros um de Memórias em cinco volumes, de onde a ideia foi lembrada. 

terça-feira, dezembro 07, 2021

Sobre o livro “Razão Africana” - uma análise comparativa

 


Carlos Roberto Husek

Prof. de Direito Internacional da PUC/SP

Um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


No livro “A Razão Africana – breve história do pensamento africano contemporâneo”, Editora Todavia, de Muryatan S. Barbosa (historiador sueco), há um primeiro capítulo sobre “A personalidade africana” (p.13 a 68), em cuja primeira parte, até a p.28,  descreve coisas interessantes, cuja sinopse de suas principais ideias damos agora, com alguma referência comparativa com o Brasil. Nossa pretensão é a de estimular o leitor da nossa Oficina para pensar no tema. Aceitamos, de bom grado, futuras contribuições.

No mundo contemporâneo as gerações tendem sempre a se ver como modernas e únicas...(...) Quando essa impressão comum se transfere para o mundo das ideias, o que se vê é a proliferação de ´novas` teorias e interpretações. É a busca pelo ´novo` a qualquer custo que força originalidades e omite heranças intelectuais. Como se esse ´novo` não carregasse, consciente ou inconscientemente, sua própria carga do passado...(...) O pensamento africano contemporâneo nasce como uma resposta das elites intelectuais da África e da diáspora africana ao desafio europeu expresso pelo colonialismo – mas não somente isso. É também uma resposta à grande transformação do mundo provocada pela consolidação da Revolução Industrial, que, criou novos modos de produção, organização social, formas de pensamento e estilo de vida. É comum colocarmos a Conferência de Berlim (1884-85) que dividiu a África entre potências europeias, como o marco do nascimento de uma nova era na história da África, a Era Colonial, quando esse desafio se apresenta para todo o continente africano...(...) Todavia, vale lembrar que, em certas regiões da África, o processo de roedura do continente – a espoliação de bens, a divisão geo-política por parte das nações europeias – já havia se iniciado décadas antes...(...) Por todo continente, desde o primeiro quarto do século XIX, a presença crescente de europeus levava vários soberanos africanos a buscar formas de se defender por meio de uma renovação e modernização interna....(...) Em decorrência dessa progressiva influência dos europeus nas regiões litorâneas africanas, aumentou consideravelmente à época o número de africanos ocidentalizados – formados nas letras europeias e com educação cristã...(...) O mesmo ocorreu em outras regiões costeiras. Já no século XV, filhos das elites do Reino do Congo iam estudar em Portugal. Desde o século XVIII, africanos livres do cativeiro conseguiam se formar intelectualmente na Europa, em geral, com a assistência dos abolicionistas...(...) Em tal contexto, em meados do século XIX, é possível observar dois fenômenos relevantes na formação do pensamento africano. O primeiro deles é a importância cada vez maior da diáspora africana. Em particular aquela estabelecida nos Estados Unidos.  O segundo é a consolidação do missionarismo cristão, da Europa e das Américas, para a África...(...)

Neste espaço, diz o autor consagraram-se alguns afro-estudinidenses, dentre eles Edward Wilmont Blyden.

“...sua trajetória: embora fosse caribenho de origem (Ilhas Virgens), Blyden passou a maior parte de sua vida na África, vivendo na Libéria, em Serra Leoa e em Lagos (Nigéria). Foi para lá voluntariamente, tendo sua passagem paga pela Sociedade Americana de Colonização...(...) tornou-se missionário, professor, político, escritor, jornalista e diplomata...(...) Em geral, ele é tido tanto como um dos ´pais` do pan-africanismo e um dos pioneiros do nacionalismo africano.

A partir daí o autor desenvolveu o pensamento e a atuação de Blyden, como divulgador da existência de uma personalidade africana, de um autogoverno e de uma unidade para a África, bem como de uma volta às origens de todos aqueles que fizerem a diáspora africana, espalhando-se pelo mundo, principalmente fixando-se nos Estados Unidos da América.

Embora não tenhamos a mesma concepção de que houvesse uma necessidade de volta às origens, entendemos que há sim, uma unidade africana, apesar dos diversos povos, países e grupos raciais lá existente,    pelo  menos uma unidade da África negra, não pelo seu conteúdo racial, mas sim, pelo conteúdo histórico, uma vez que a África negra forneceu, independentemente dos seus Estados, os escravos para a Europa, e para as Américas. As línguas, as crenças diversas, e filosofias próprias de cada grupo, e a gênese racial diferenciada, não foram fatores de seleção, porquanto todos ultrapassaram as fronteiras de sua terras para servirem aos brancos colonizadores. 

É certo ainda que em várias cidades os negros se juntaram em comunidades e mantém práticas religiosas e costumes da velha África, ainda que não a conheçam, ante a natural multiplicação de gerações nascidas em outros países. No entanto, pode ser que pelo sangue ou pelas células tenha havido a transmissão de uma consciência dos tempos antigos, que permitiu a reprodução de uma singular visão da vida, como, deve acontecer com todos os indivíduos de outros povos; japoneses, italianos, tchecos, espanhóis, portugueses, que resolvem migrar para outras terras. É só constatar como se repetem hábitos, costumes, alimentação e uma particular forma de ver os acontecimentos.

Assim, não só com os descendentes de africanos que se encontram em nosso país, mas também com todos aqueles que buscam escapar de suas origens, por vontade própria ou por necessidade. Ocorre que com aqueles que vieram da África, em especial da subsaariana, o que ficou incrustado é o passado escravo e de sofrimento, em relação ao qual, as leis de inclusão e de quota, ainda pouco fazem, porque é preciso mudar o ensino, mudar a mentalidade, mudar a essência para a verdadeira integração.

Blyden foi um intelectual que construiu argumentos para um nacionalismo africano, um renascimento de cultura e de propósitos, que pudesse contrariar o poder colonial. Poder que abriu caminhos marítimos regados de sangue e de tristeza; banhados pelo banjo das músicas e dos cantos que certamente eram entoados pelos escravos, enquanto+ remavam para terras distantes, apartados dos seus, do seu sol – que era único -, de suas matas, de suas aldeias, de suas cidades, dos seus entes queridos. Não reconhecer que, de algum modo isto ficou embutido, arraigado no inconsciente de cada descendente, é fechar a compreensão para as descobertas da Psicanálise. Temos, dentro de nós, os nossos antepassados com suas alegrias e agruras, sagas e desvelos, o que não impede a integração em qualquer sociedade – ao contrário enriquece-a – bastando que essa incorporação social deva ser efetiva, verdadeira assimilação. Se tal aconteceu com diversas nacionalidades que vieram viver no Brasil, não parece que, o mesmo se deu com os africanos, que tiveram história mais aflitiva, para dizer o mínimo, e não conseguiram a verdadeira integração.      

Não há necessidade de desfazer a diáspora, porquanto após tantos séculos, outra diáspora ocorreria e os descendentes de escravos, não são mais escravos e sim brasileiros e tomaram pelo nascimento a nacionalidade de outros países, como a dos Estados Unidos da América. Afinal, qual de nós é autóctone desta terra, exceção feita aos índios? Devemos todos estarmos – como em grande parte já acontece - absorvidos e incorporado; amarelos, brancos, negros. O passado deve ficar como sinalização do que não mais pode acontecer, ainda que de modo indireto ou de forma velada. Esta é o único modo de reconstruir o Brasil.