Carlos Roberto HusekProfessor de Direito Internacional da PUC/SPUm dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito
Internacional Público e Privado
De há muito que venho entendendo que a Justiça na vida
internacional, como sistema de julgamento de conflitos (Corte Internacional de
Justiça), e ou apuração e julgamento de ações contrárias aos princípios e
regras internacionais (Tribunal Penal Internacional), a exemplos, tende a
trilhar caminhos parecidos com a maioria dos sistemas jurídicos internos dos
Estados (corpo de julgadores independentes, como parte de um órgão que compõe a
administração).
No caso do Brasil, que apontamos como um parâmetro, temos os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, cada qual com uma função principal
definida: Executivo administra e executa as leis; Legislativo cria as leis; e,
Judiciário julga os casos, de conformidade com as leis.
Além de funções, ditas secundárias, quando o Executivo faz a
regra, (decretos, portarias, etc), atuando como se Legislativo fosse, e julga
seus servidores, em processos administrativos, atuando como se Judiciário
fosse; quando o Legislativo julga ( crimes de responsabilidade do Presidente da
República e de Ministros), a exemplo do Judiciário, e quando administra a sua
própria organização, fazendo cumprir as normas, como se fosse o Executivo; O
Judiciário, por sua vez, cria as suas regras, estatutos, como se fosse um
Legislativo e administra e executa as normas entre seus servidores e juízes,
como se fosse um Executivo.
Tudo isso, diga-se, à grosso modo, porquanto no mundo de hoje
todas essas atividades ficaram mais complexas e há dilatação, um entumecimento
do Executivo, passando o Poder Legislativo a ser, quase um mero coadjuvante,
daquele que governa.
O Judiciário, nos países que preservam o Estado Democrático
de Direito, ainda conserva sua função original e não se deixa levar pelas
necessidades do Legislativo ou do Executivo, buscando julgar com isenção,
quando acionado.
De certo modo, a análise acima fica na concepção formal das
ordens jurídicas, internas e internacional, entretanto, perpassa, tanto nos
diversos Direitos internos, como no Direito Internacional, a ideia de justiça,
como algo que deve ser concretizado nas sociedades internas e na comunidade
internacional, e para a qual todos os órgãos cooperam, independentemente de
serem compostos de juízes ou não.
E afora essas considerações, entendemos e reafirmamos, que a
ideia de justiça (valor) não fica dentro dos palácios de justiça, e sim,
permeia toda a sociedade internacional e suas instituições, motivo pelo qual se
diz que tal ou qual ação de um estado ou de um líder é injusta.
Hedley Bull no capítulo IV (Ordem Versus Justiça na Política
Internacional), de seu livro “A Sociedade Anárquica”, faz algumas reflexões
sobre a ideia de justiça (que é justo). “Em primeiro lugar, há a distinção
entre o que tem sido chamado de justiça ´geral`, entendida como conduta
virtuosa ou correta, e justiça ´particular`, compreendida como um tipo especial
de conduta correta, entre outras possíveis. O termo ´justiça` é empregado, às
vezes, com sentimento de ´moralidade` ou ´virtude`, como se a ação justa fosse
simplesmente ação moralmente correta...(...) Na política mundial as exigências
de justiça assumem muitas vezes essa forma. São demandas para a remoção de
privilégios ou de discriminação, para igualdade na distribuição ou aplicação de
direitos entre os fortes e os fracos, os grandes e os pequenos, os ricos e os
pobres, os pretos e os brancos, os vitoriosos e os vencidos, as potências
nucleares e as não-nucleares. É importante distinguir entre ´justiça`, neste
sentido especial de igualdade de direitos e privilégios, e ´justiça` no sentido
em que usamos o termo, com a acepção de ´moralidade`. Uma segunda distinção
importante precisa ser feita entre a justiça ´substantiva` e a justiça
´formal`. A justiça substantiva é baseada no reconhecimento de regras
atribuindo certos direitos e deveres específicos (políticos, sociais e
econômicos) enquanto a justiça formal se baseia na aplicação dessas regras
igualmente a pessoas em igual situação, independentemente do conteúdo
substantivo de tais regras. A exigência de ´igualdade perante a lei`, segundo a
qual as regras devem ser aplicadas de igual forma à mesma classe de pessoas
reflete neste sentido a noção de ´justiça formal`...(...) Uma terceira distinção é feita entre justiça
aritmética`, no sentido de reconhecer iguais direitos e deveres, e a ´justiça
proporcional`, em que direitos e deveres podem não ser iguais, mas são
distribuídos de acordo com os objetivos em vista...(...) Como escreveu Aristóteles,
´há injustiça quando os iguais são tratados desigualmente e também quando os
desiguais são tratados com igualdade`. O princípio enunciado por Marx ´de cada
um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade` incorpora
uma preferência pela justiça ´proporcional`, em contraste com a
aritmética...(...) Na política mundial certos deveres e direitos fundamentais,
tais como o direito dos estados à independência e soberania e o dever de não
interferir reciprocamente nos assuntos internos, considerados como de igual
aplicação a todos os estados, são exemplos da ´justiça aritmética`, enquanto a
doutrina de que , numa guerra ou represália, o emprego da força deve ser
proporcional à ofensa ilustra a ideia de ´justiça proporcional`...(...) Uma
quarta distinção, associada de perto à anterior, é a existente entre justiça
´comutativa´ ou recíproca e a justiça ´distributiva`, que busca o bem comum e o
interesse da sociedade no seu conjunto. A justiça ´comutativa` consiste no
reconhecimento de direitos e deveres mediante um processo de intercâmbio ou
barganha, pelo qual indivíduos ou grupos admitem os direitos de outros de forma
recíproca...(...) Em contraste a justiça ´distributiva` é alcançada não por um
processo de barganha entre os membros individuais da sociedade em questão, mas
pela decisão do conjunto da sociedade, à luz da consideração do seu bem ou
interesse comum...(...) Atualmente, a política mundial é sobretudo um processo
de conflito e cooperação entre estados que só têm a percepção rudimentar do bem
comum com relação ao mundo em seu conjunto e é, portanto, o domínio
principalmente de justiça ´comutativa´, e não de justiça ´distributiva`...(...)
Todos os Estados sustentam que têm certos direitos e deveres que não são
meramente legais, mas também morais. Afirmam que a sua política é justa porque
é moralmente correta (´justiça geral`) e assim exigem igualdade de tratamento
nas relações com outros estados (´justiça particular`). Pretendem ter o direito
moral à soberania ou independência (´justiça substantiva`), que deve ser
aplicado ou administrado igualmente em relação a todos os estados (´justiça
formal`). Afirma ter o direito a igualdade de tratamento entre eles e os outros
no acesso às oportunidades comerciais ou votação em assembleias internacionais
(´justiça aritmética`), ao mesmo tempo em que insistem em que a sua
contribuição financeira às organizações compostas de estados seja determinada
em proporção ao produto nacional (´justiça proporcional`). Reconhecem os
direitos de todos os tipos atribuídos aos demais estados, em troca de igual
reconhecimento (´justiça comutativa`), mas podem também discordar, pelo menos
retoricamente, com base na concepção do bem comum de uma comunidade regional ou
mundial (´justiça distributiva`).[1]
Há alguma espécie de justiça, no confronto entre a Rússia e a
Ucrânia? O que prevalece, a justiça geral, a particular, a substantiva, a
formal, a aritmética, a proporcional, a comutativa e/ou a distributiva?
Temos que a Rússia não tem fundamento em nenhuma dessas
espécies de justiça. Aposta no poder, como um direito, e nas suas aflições
estratégicas e geopolíticas como um fundamento da ação militar. Enfim, não
acredita no sistema, no direito e na justiça, salvo quando baseadas em suas
próprias razões.
Em que deve se fiar a sociedade internacional? Apesar de
algumas eventuais falhas históricas na concepção de um sistema pós-segunda
grande guerra, vamos reiniciar, tudo de novo pela força, e pela imposição de
valores particulares?
Muitos são os Estados soberanos do mundo, frágeis
tecnológica, econômica e militarmente, que ficam na espera de um sistema justo.
A justiça como valor vai funcionar?
[1].
Bull, Hedley. A sociedade anárquica. Imprensa Oficial do Estado, Editora
Universidade Brasília. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,
Tradução Sérgio Bath, 2002, p.92 a 97.