quarta-feira, março 24, 2021

As ONGs no cenário global

 




Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Coordenador e Professor no curso de pós-graduação

 latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e

Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional

Público e Privado). Professor de Direito Empresarial na

 ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).



Em função do grau de globalização atingido pelo mundo, com uma interdependência cada vez maior entre os Estados, verifica-se a necessidade de uma maior harmonização das regras internacionais, em conjunto com um alinhamento com regras internas dos países, objetivos comuns, transparência mútua e cooperação em prol de algo maior e mais importante que seus interesses próprios, ou seja, o interesse global baseado na questão ambiental, social e econômica.

 

Com base nestes preceitos, o conceito de Governança Global continua a evoluir, justamente em função das inter-relações existentes entre os países, organismos internacionais, organizações não governamentais, empresas e o ser humano com o intuito da criação de mecanismos de ajuda mútua, a integração de tratados internacionais específicos, relacionados às questões ambientais, energéticas, tecnológicas, comerciais, econômicas, sanitárias, humanitárias, dentre outras, e ainda reforça fóruns de discussão amplos sobre estas questões como a ONU (Organização das Nações Unidas), a OMC (Organização Mundial do Comércio), OIT (Organização Internacional do Trabalho) e CCI (Câmara de Comércio Internacional), Fórum Econômico Mundial, dentre outros. Na Idade Moderna, a dependência entre os Estados se acentuou, fazendo com que a ideia de universalidade entre estes ficasse cada vez mais forte.

 

Não foi por acaso que, ao final do século XIX, os Estados se uniram para formar um foro estatal de solução de controvérsias através da criação da Corte Permanente de Justiça Internacional em Haia na Holanda, atualmente conhecida como Corte Internacional de Justiça, e também, como foi o caso, em 1920, da criação da Sociedade das Nações, organização internacional entre Estados que pretendia, além de proporcionar a paz e a cooperação entre os Estados, harmonizar as regras internacionais, além de ser um foro de discussão para diversos assuntos mundiais.

 

Infelizmente, o conceito essencial de ajuda mútua e cooperação ainda não estava maduro na sociedade internacional daquela época, visto que com o desenrolar da Segunda Grande Guerra Mundial, a Sociedade das Nações foi desfeita, ficando, entretanto, a esperança de que as ideias básicas ali pretendidas pudessem florescer novamente em um ambiente mais propício, que de fato ocorreu, após a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente em 1945 com a criação da ONU.

 

Após a Segunda Guerra Mundial, o restabelecimento do diálogo entre os Estados através da ONU, que apesar de ser um foro universal, divide espaço com outros específicos e conforme o assunto discorrido, como o Banco Mundial, criado para o financiamento da economia mundial destruída pela guerra, o FMI (Fundo Monetário Internacional), cujo próprio nome menciona, consiste na formação de um fundo a ser disponibilizado aos Estados participantes para proteção e fomento da economia interna, dentre outros. Verifica-se, portanto, que os Estados perceberam a importância do diálogo, da cooperação e da ajuda mútua advindas do fortalecimento das organizações internacionais, uma vez que em função do aumento da interdependência, algo que aparentemente parecia um assunto interno, afetava outros Estados, causando prejuízos.

 

Além disso, os Estados e a Sociedade Civil Global, que podemos entender como o conjunto de entes internacionais formadas não pelos Estados, mas sim pela sociedade civil organizadas, formada pelo ser humano, seja por meio de organizações mercantis como multinacionais ou associações civis sem fins lucrativos (as organizações não governamentais – ONGs), também perceberem a necessidade de se movimentarem na confecção de uma estrutura jurídica nacional e internacional no sentido de suportar mudanças ou ações necessárias onde os Estados não conseguiam agir por ineficiência, falta de vontade política ou falta de senso de prioridade ou urgência, criando assim, uma movimentação para aprofundar discussões na sociedade, de maneira a influenciar desde políticas públicas a ações privadas.

 

A atuação das Organizações Não Governamentais (ONGs) fortalece o comprometimento e a observância das normas internacionais por meio dos conceitos commitment and compliance (compromtimento e conformidade), vez que além de exercerem atividades complementares aos Estados, como vimos no capítulo anterior, também exercem atividade fiscalizadora contra os Estados e protetora à sociedade. 

 

Portanto, seu papel retrata uma tendência mundial, que consiste na parceria entre as autoridades públicas e as ONG’s, atuando, inclusive, como legitimadoras da ação pública, de forma que existe um grande reconhecimento funcional ao receberem um tratamento consultivo no âmbito da Organização das Nações Unidas.  Importante ressaltar que a Resolução n. 1996/31 do Conselho Econômico e Social da ONU – ECOSOC, promoveu o estatuto consultivo das ONG’s, visando a defesa dos interesses da coletividade e informando que a sua atuação não é de interesse meramente público, mas também privado. Diante desta afirmativa é notório o caráter imparcial de atuação das ONGs, deixando claro que elas não pretendem a defesa de interesses próprios, mas de uma coletividade. 

 

Com base neste reconhecimento dados pela ONU, algumas ONGs cadastradas nesta organização internacional podem: (i) comparecer às reuniões; (ii) submeter relatórios e trabalhos previamente às sessões e reuniões do organismo internacional; (iii) fazer declarações oral nas reuniões do órgão; (iv) fazer reuniões com delegações de países que fazem parte das Nações Unidas, ou até mesmo com funcionários da ONU com o objetivo de tratar de assuntos relacionadas ao seu propósito; (v) organizar eventos durante as atividades da ONU e, acima de tudo, (vi) participar ativamente de debates relacionados ao temas de afinidade específica que são tratados no âmbito da ONU.




quinta-feira, março 18, 2021

Triste América

 



Carlos Roberto Husek
Professor da PUC de São Paulo e co-coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


Foi descoberta, descortinada em suas matas e montanhas, planícies e pedras preciosas, larguras de praias e a imensidão de uma costa que corta o Atlântico e o Pacífico. Dividida em duas metades, uma pertencente à Espanha e outra a Portugal, sofreu as agruras e as grandezas desses povos, que deram o melhor e o pior de suas culturas e domínios. Nela, antes de tirarem o véu que a cobria, grandes agrupamentos humanos formaram-se, cidades pujantes floresceram (Incas e Maias) e aborígenes, nativos da terra, que vieram da bruma do tempo e se espalharam de norte a sul, de leste a oeste. Rica na fauna e na flora, e no seu subsolo, e na sua plataforma marítima, alteia-se ao longo de sua privilegiada geografia, repleta de falésias, de promontórios, de ilhas, de rios e florestas, de infinitas espécies de aves e de animais, elevando-se para incorporar, talvez, o Paraíso bíblico, que pôs o primeiro casal sobre a face da Terra.

“Talhada para as grandezas,
P´ra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
- Estatuário de colossos – Cansado doutros esboços
´Disse um dia Jeová:
´Vai Colombo, abre a cortina
´Da minha eterna oficina...
´Tira a América de lá´”1

Todavia, algo deu errado a partir desse descobrimento, porquanto apesar da fartura e da preconizada bem-aventurança, a ganância dos países europeus não se conformou em tirar os panos, e estabelecer um novo caminho para a humanidade; não, os olhos brilharam com o tremeluzir das riquezas, e se entendeu que era preciso explorá-la, abrir picadas nas matas, escavar a terra na sua profundidade, afastar o autóctone, dizimando-os e criando administrações locais para o empreendimento de extração. Das riquezas, perfurando o ventre novo com as antigas armas dos exploradores e dominadores, e estabelecendo a regra primeira da extorsão e do proveito próprio, sem retorno. Tirar tudo da terra, o que a terra dá, secá-la até onde for possível, porque um tesouro estacionado na metade do globo aberto a ganância e à concupiscência. Exploração da terra e do ser humano que já a habitava.

Eduardo Galeano especifica: “Segundo a voz de quem manda, os países do sul do mundo devem acreditar na liberdade de comércio (embora não exista), em honrar a dívida (embora seja desonrosa), em atrair investimentos (embora sejam indignos) e em entrar no mundo (embora pela porta de serviços).”2 E na continuidade de sua análise denuncia: “Agora é a vez da soja transgênica, dos falsos bosques da celulose e do novo cardápio dos automóveis, que já não comem apenas petróleo ou gás, mas também milho e cana-de-açúcar de imensas plantações. Dar de comer aos carros é mais importante do que dar de comer às pessoas. E outra vez voltam as glórias efêmeras, que ao som de suas trombetas nos anunciam grandes desgraças.”3

E do insuspeito George W. Bush, transcreve a seguinte pergunta aos seus companheiros de política: “´Vocês já imaginaram um país incapaz de cultivar alimentos suficientes para prover sua população? Seria uma nação exposta a pressões internacionais. Seria uma nação vulnerável. Por isso,
quando falamos de agricultura, estamos falando de uma questão de segurança nacional.´ Foi a única vez em que não mentiu.”4

Afora, o Canadá, México e Estados Unidos, em melhores condições, e outros territórios e ilhas, que se situam nas Américas, o que temos é uma quantidade de países que não conseguiram, em termos gerais, até os dias de hoje, crescer de maneira sustentável, sempre envoltos em revoluções internas, governos despóticos ou enganosamente democráticos, populações miseráveis e esfomeadas, fanáticos que sustentam ditadores e/ou governantes presunçosamente antiautoritários e liberais, ou socialistas rosados, que só admitem o que é bom para os seus próprios interesses. O povo? É apenas um componente do Estado (território, povo e poder). É só observar a história e o desenvolvimento dos Estados desta parte do mundo, uns e outros, com menores ou maiores problemas, mas quase sempre sem a participação de um povo, esclarecido, alimentado, educado e produtivo.

Aliás, este é o ponto. Povo não esclarecido, não alimentado, não educado e não produtivo serve como massa de manobra para os dominadores, donos do poder e pela elite (econômica e política), que para preservar seus interesses particulares, até sai às ruas, como no Brasil, proclamando que querem a intervenção militar, que querem fechar o Congresso e a Justiça (fenômeno comum em muitos países subdesenvolvidos). Qual o objetivo de tais manifestações? Teatro. Fazer parecer aos olhos do mundo que o povo está insatisfeito com o rumo das coisas. E realmente está, mas com o domínio irracional, com a injustiça de sempre, com a inexistente distribuição de renda, com a fome, com a falta de trabalho, com o desamparo na saúde e com a insegurança. De qualquer modo, os que assim se manifestam não tem sido a expressão legítima do povo. Não há indivíduo evoluído, que a sós ou em grupo, que queira fundamentadamente a ditadura. Temos ainda na América, como um todo, a doença da subalternidade. Comemos o que os nichos do poder entendem suficientes, estudamos o que oficialmente é transmitido, sem possibilidade de discussão, trabalhamos no que nos permitem. Não se pode clamar, discutir, criticar. Elogiar, tecer loas, sim.

Onde está a democracia? Nas instituições formalizadas, é certo, e a partir daí na verdadeira limpeza do ranço demagógico e dominador; entretanto nem as instituições já conquistadas estão livres dos ataques e da manipulação constantes pelos meios modernos de comunicação, inserindo o ódio, a desconfiança, a aleivosia, a incitação ao crime.

O pior é que mesmos os que buscam, em um primeiro momento, acertar as coisas para o bem de todos, acabam na esfera do engano, porque se arvoram como os únicos capacitados para tanto e caem sucumbidos pela construção da imagem de deuses e salvadores, de líderes únicos, por intermédio da qual podem favorecer amigos apaniguados. Não é assim que aconteceu e acontece com a Venezuela, a Bolívia, o Equador, o Paraguai, a Argentina, a Colômbia, o Peru e outros?

O diagnóstico é relativamente simples: economia e instituições democráticas frágeis, corrupção, sede de poder, polarização de interesses, fanatismo, paralisação do crescimento, educação marginalizada.

Aprender a compartilhar ideias, a analisar com sensatez e receber argumentos opositores com sabedoria e disposição para o diálogo, bem como a disposição para abrir o jogo das circunstâncias, com os limites do domínio pessoal ou de grupos, é lição de toda uma vida ou de séculos de história, mas que necessita ser trilhada. Quando, afinal, vamos dar um passo neste caminho?

“Marchar!... Mas como a Alemanha
Na tirania feudal,
Levantando uma montanha
Em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos de ossos,
Nem gládios a cavar fossos
São degraus do progredir...
Lá brada César morrendo:
´No pugilato tremendo
`Quem sempre vence é o porvir!´´”

O que se questiona é: Afinal, o que está por vir?

Disse Pítaco: “Obedece a lei, tu que a promulgaste”. Afirmou Dionísio: “O poder absoluto gera injustiça”.

Pobre e sofrida América Latina, que Castro Alves sonhou grande!


1 Alves, Castro. O Livro e a América
2 Galeano, Eduardo. As veias abertas da América Latina, Tradução de Sérgio Faraco,L&PM POCKET, 2010, p. 5.
3 Ibidem, p. 6.
4 Ibidem, p.7.


terça-feira, março 09, 2021

Alucinações fazem a história

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP e co-coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


Existem alguns líderes no mundo, como o da Venezuela, o da Coreia, o da Rússia, o dos Estados Unidos (Trump), este último não eleito, que são casos psicanalíticos, não esquecendo no passado recente, Hitler, o mais emblemático de todos.

Não se tem necessário diagnóstico médico especializado, porquanto as falas, os gestos, as atitudes são semelhantes, sempre cercados de uma multidão de adoradores que gritam, batem palmas para as expressões mais absurdas e para as imagens construídas nos discursos, inusitadas, por vezes primárias, grandiosas, pretensiosas, soberbas e outras que conquistam o ouvinte e aliciam simpatizantes.

São casos, penso, que merecem profunda reflexão, realista e séria, da personalidade que se analisa e da sociedade contemporânea: ânsia de poder, corrupção estrutural, domínio de tudo e de todos, falso conceito próprio positivo, mania de grandeza ou simples proteção dos apaziguados e manutenção de uma rede de interesses informada e comandada por alucinados escurecidos pela razão.

A sociedade seria, em si, doente, produzindo filhos doentes que alcançam o poder? Tal pergunta se faz natural à medida que se observa que aos desmandos de tais líderes, a sociedade não reage e os apoia até o abismo final, a exemplo da Alemanha nazista.

O indivíduo, quando em meio a um grupo transforma-se e, por vezes, conduz-se em obediência, cego e surdo à sua consciência, como gado, parte de um rebanho. Em sendo este o caso, caberia, por certo, alguma desculpa para este estado de coisas. Uma consequência esperada do espírito humano dominado e convencido por uma realidade grupal.

Entretanto, se a massa age correspondendo aos ditames de um desajustado, o que dizer daqueles que exercem uma parcela do poder na mesma sociedade, obtida por caminhos diversos; eleição, divisão de competências funcionais, constitucional e administrativa, e que agem sem pensar, autonomamente, preservando o líder, atapetando o seu caminho, não importando as consequências? Todos estariam sendo dirigidos pela mesma força motriz do domínio e do encantamento, sem qualquer sobra de equilíbrio e de bom senso? Aqui, talvez, a explicação é mais simples e direta; não se trata de uma questão mental, mas de resguardo dos próprios benefícios e privilégios.

A complexidade do tema necessita de estudo mais alentado, situado numa área de confluência entre a Psicanálise, a Psicologia, o Direito, a Sociologia e a Política. A única e simplória certeza que temos é que, de forma geral, os nomes mencionados no início deste artigo, têm iguais caracteres. Afora a liderança e o poder, que alguns podem naturalmente exercer, o que se tem plenamente aceito, há os que fazem questão que todos fiquem de joelhos, e é a estes que nos referimos ao invocar a Psicanálise. A doutrina aponta peculiaridades do indivíduo psicótico, a saber:

. desorganizações súbitas e sérias do ser psíquico;

. perturbação das faculdades relacionais;

. perda de contato com a realidade;

. neurose narcísica;

. psicose delirante;

. psicose crônica;

. falta de senso crítico para a desordem no próprio pensamento;

. pensamento dissociativo; um recolhimento a si mesmo;

. certa paranoia, caracterizada por um delírio sistemático;

. delírio de grandeza;

. predominância da própria interpretação das coisas; e,

. confusão alucinativa.[1]

Há, ainda, a chamada “psicose branca”, que não tem manifestação clínica identificável, o que talvez possa explique uma cegueira coletiva, uma certa – não sei se a expressão tem consistência – esquizofrenia de massa.

Enfim, dias modernos, em que o passado parece não ter sido coberto pela pátina do tempo. A história poderia tornar-se repetitiva, com infinitas representações em palcos diversos. Ficar na plateia como mero assistentes, sem raciocinar sobre a vida e os acontecimentos, não é por certo a melhor solução.



[1] Mijolla, de Alain. (Direção Geral) Dicionário Internacional da Psicanálise. Tradução Álvaro Cabral, Imago.


quinta-feira, março 04, 2021

Responsabilidade Internacional dos Estados e a Pandemia

 


Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Coordenador e Professor no curso de pós-graduação

 latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e

Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional

Público e Privado). Professor de Direito Empresarial na

 ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).

 

Há um ano atrás o mundo já via a pandemia do COVID19 com olhos atentos, apesar de haver lockdown apenas na China, local onde a disseminação do vírus teve sua origem. Apesar disso, a Itália já vinha sofrendo muito com a doença, inclusive com muitas mortes principalmente de idosos. Notícias de outros países também apareciam dando conta de que a pandemia havia de fato se instalado e que restrições sanitárias que o mundo não via há muitos anos seriam instaladas, além da China.     

Alguns dias se passaram e o lockdown foi decretado praticamente em toda a Europa com restrições de locomoção dentro do bloco para impedir com mais fervor a disseminação da doença e do vírus. No Brasil poucos casos haviam sido detectados e, apesar do receio de que as mesmas restrições ocorressem por aqui, nossas experiências mais recentes como a gripe aviária e H1N1, que também foram reflexos de crises sanitárias na China (sem considerar a dengue e outras doenças que são questões mais domésticas brasileira), davam conta naquele momento inicial, de que não sofreríamos os mesmos impactos em função da distância e, por pensarmos que o Brasil  não estava num grau de globalização para este tipo de assunto, até a decretação da pandemia pela OMS. Enfim, o Brasil sofreu com a pandemia em 2020 e continua a sofrer em 2021, assim como todos os outros.

Ao longo deste ano vimos conflitos entre EUA e China em torno deste tema com acusações contra a China de que teria sido o país responsável pela disseminação da pandemia por não haver regras rígidas de controle sanitário. Algumas teorias sugeriam inclusive que a China havia disseminado o vírus propositadamente, como uma forma de iniciar uma guerra viral econômica, para beneficiar o seu comércio internacional em função do impacto a gerar nas economias dos demais países e no mundo. Tais pontos colocados surgiram como uma forma de objetivar a responsabilidade internacional da China, perante o mundo, a ponto, quem sabe, de obrigar a China a indenizar financeiramente o mundo, ou viabilizar de maneira organizada global embargos econômicos contra a China, ou expulsá-las dos fóruns internacionais, ou julgar criminalmente os governantes chineses, ou até mesmo, todas estas sanções em conjunto, dentro da dinâmica que se conhece do sistema internacional. Em princípio, esta seria a lista das sanções internacionais contra a China, que se discutia durante a era Trump, pauta esta que foi acolhida pelo Governo Bolsonaro no Brasil.

Em função do tom adotado para a questão pelo Governo Brasileiro no campo internacional, internamente, mantendo-se a coerência, o negacionismo, ou seja, a negação quanto à existência da COVID19 como uma doença grave, tirou a ênfase do governo ao coordenar o assunto, a ponto de não criar uma estratégia sanitária robusta para evitar o contágio acelerado, como o isolamento, toques de recolher, uso de máscara, e outras regras de circulação sob a perspectiva não farmacológica. Do ponto de vista farmacológico, a estratégia errática também não foi diferente. O governo apostou em medicamentos não aprovados pela ANVISA, ou por outros órgãos mundiais, para o tratamento da doença e, acima de tudo, não se preocupou em investir em uma estratégia vacinal forte, como muitos outros países continentais do mundo estava fazendo, apesar de ter condições econômicas para um momento de crise como este.

Países relevantes como EUA e Inglaterra tinham esta mesma estratégia, mas se renderam à realidade da doença e alteram o curso de sua política sanitária, de modo a criar mecanismos mais robustos de defesa. Ao longo de 2020, negociaram vacinas com os laboratórios produtores para conseguir chegar na frente para a imunização de sua população. O Brasil não seguiu o mesmo caminho pela falta de foco, fazendo com que negociasse apenas com um laboratório, uma aposta de exclusividade, que hoje nos coloca no final da fila para uma imunização em escala global.

A doença evolui, novas cepas e, ainda mais poderosas surgem, fazendo que com o Brasil hoje seja o país mais infectado do mundo e sem uma política sanitárias bem definida a respeito, gerando uma preocupação para os demais países, pois coloca o nosso país como um problema e um risco sanitário a nível global. Enquanto outros países estão concentrados em medidas sanitárias para mitigar os efeitos da doença, bem como diminuir a sua transmissibilidade, o Brasil sem promover um senso de urgência, bem como um plano efetivo e robusto de combate sanitário.

Enfim, o Brasil se tornou a China do início da pandemia que tanto o Governo Federal Brasileiro criticou!!!! Beware of COVID!!!!!

Neste caso, cabe agora avaliar como fica a responsabilidade internacional do Estado Brasileiro em função da negligência, imprudência ou imperícia ao conduzir o combate à pandemia internamente. Partimos assim, das premissas inicias abaixo:

 

1)         O Brasil infringe a própria Constituição Federal Brasileira (CF) ao não promover o acesso às saúde da população nos termos do artigo 196 da CF “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”;


2)      No mesmo sentido descumpre a Declaração Universal do Direitos Humanos que em seu artigo 25 ensina que “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança o desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”;


3) Voltando à CF, em função da posição de destaque que o Brasil possui no cenário global, a carta magna, mais uma vez é contrariada, ao cair no esquecimento, os princípios dispostos em seu artigo 4º ao estabelecer que: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ... II - prevalência dos direitos humanos; ... V - igualdade entre os Estados; ... VI - defesa da paz; ... VII - solução pacífica dos conflitos; ... IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

Portanto, o Brasil se expõe negativamente quando o Governo nega a doença; afirma que resolverá assuntos com o EUA com o uso da pólvora; afronta a diplomacia internacional; não investe em vacina de maneira adequada, ou cria um ambiente de mitigação da trasmissibilidade da doença no âmbito de políticas públicas de saúde, incluindo planos de comunicação adequados; se fecha para a OMS e parceiros internacionais; não reorganiza a sua saúde pública de maneira eficiente para evitar falta de estrutura e insumos para a saúde e, ainda, ao não agir de maneira eficiente em prestar informações ou comunicar a população.

Diante deste cenário, olhando sob a ótica da sociedade internacional, o Brasil se expõe negativamente, proporcionando relação diplomáticas mais difíceis e conflituosas, além de se expor perante jurisdições de cortes internacionais, como a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo.

            Bom, se fomos competentes a nos igualar à China do início da pandemia sob a perspectiva sanitária, com certeza ainda não nos igualamos sob a perspectiva da economia.