sexta-feira, maio 16, 2014

O pedido de Dirceu à OEA


crédito da imagem: O Globo

A notícia de que José Dirceu encaminhou à OEA um pedido para que seja analisada a suposta violação de seus direitos no julgamento do mensalão nos faz refletir sobre o que isso realmente pode significar do ponto de vista prático.A Organização dos Estados Americanos, sediada em Washington (EUA), possui um sistema de monitoramento e controle da aplicação dos diversos acordos internacionais firmados para a proteção dos direitos humanos. Isso significa que, uma vez que um país das Américas viole um desses acordos, a OEA pode se manifestar e eventualmente até determinar que esse Estado tome alguma medida para cessar ou reparar a violação.

Naturalmente, isso se dá com aqueles Estados que, além de serem partes da OEA, aceitem expressamente os acordos internacionais firmados e ainda concordem com o julgamento de casos de eventuais violações perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil enquadra-se em todas estas situações e pode ser, como já foi algumas vezes, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

No entanto, o acesso a esse tribunal internacional é restrito e, basicamente, uma reclamação feita por qualquer pessoa (José Dirceu inclusive) não pode ser diretamente enviada a ela, mas sim a um órgão, a Comissão Interamericana, que analisa previamente os casos e somente envia à Corte para julgamento aqueles que entende serem de real violação dos direitos humanos. A reclamação de Dirceu foi enviada a essa Comissão alegando atentado ao chamado “duplo grau de jurisdição”, isto é, direito de recorrer de uma decisão judicial a um tribunal ou corte superior. Este direito está expresso na Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, datado de 1969, acordo ao qual o Brasil expressamente manifestou concordância juntamente com vários outros tratados internacionais desde a redemocratização do País.

Em geral o procedimento na Comissão dura de alguns meses a alguns anos, dependendo de como as tratativas se dão. É que a Comissão primeiramente solicita informações ao Estado sobre a suposta violação, depois tenta uma conciliação entre as partes, efetua algumas recomendações ao Estado e, somente após isso, caso não fique satisfeita com as providências tomadas pelo Estado, encaminha o caso, finalmente, à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Já a etapa de julgamento na Corte, que já foi durou em média 40 meses na década de 1990, tem levado em torno de 20 meses nos últimos anos.. Durante esse tempo, pouco ou nada muda na situação do cumprimento da pena de Dirceu no Brasil.

Caso seja realmente analisado pela Corte da OEA, a decisão pode seguir por dois caminhos possíveis. Em 2009 a Venezuela foi condenada justamente pela falta de direito ao recurso judicial. Este caso é emblemático e pode sim ser usado como precedente para entender que no caso do mensalão houve violação ao direito de duplo grau de jurisdição. Por outro lado, o caso do mensalão foi julgado pela instância competente, ainda que a mais alta, impossibilitando por isso mesmo o recurso. A inexistência de tribunal superior ao STF seria, neste caso, justificativa suficiente para a não violação do que está determinado na Convenção. Vale observar que na Convenção Europeia de Direitos Humanos, acordo homólogo à nossa Convenção, há expressamente a ressalva de que a garantia ao duplo grau de jurisdição não se aplica quando o julgamento é feito diretamente pelo mais alto tribunal do país. Parece ser uma solução razoável, mas há que se cuidar para evitar um retrocesso nos direitos e garantias judiciais tão arduamente conquistados pelos cidadãos em países americanos nos quais a democracia e a independência dos poderes nem sempre é constante.

É importante observar que, seja qual for a decisão da Corte, esta não será uma revisão do que foi decidido pelo STF. A Corte no máximo pode determinar que Dirceu teria direito a um recurso da decisão, solicitando que o Brasil garantisse isso, mas não determinaria que a decisão do STF no julgamento foi incorreta ou deveria ser outra. Eventual novo julgamento nesta hipótese seria inclusive feito pelo próprio STF.

Talvez a melhor coisa que se possa extrair disso tudo seja sobre a atual fórmula do foro privilegiado de autoridades, motivo pelo qual afinal o caso foi parar diretamente no STF. Seria salutar um exercício de readequação dos casos em que deveria existir o “direito” de autoridades serem diretamente julgadas pelo mais alto tribunal do país. Afinal, se Dirceu e demais condenados fossem inocentados, igualmente ninguém poderia recorrer dessa decisão.

(publicado originalmente no Estadão Noite de 15 de maio de 2014.)