quarta-feira, junho 21, 2023

GOLPE, NÃO!

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Qualquer tentativa de golpe de Estado, venha de qualquer setor da sociedade e do poder, é uma vergonha.

Quem se arvora em saber o que é melhor para o país?

Juristas, forças armadas, juízes, políticos, parlamentares, donos de empresas, associações civis, particulares, professores, que se envolvam em atos golpistas, com desforço físico ou intelectual, para estabelecer o que entendem por Estado de Direito, são agentes cancerígenos que buscam disseminar metástases antidemocráticas em todas as instituições.

Fora da Constituição Federal (não das “quatro linhas” adrede argumentadas, de forma insidiosa), mas de todas as suas linhas, como, por exemplo, as traçadas pelos art. 1º. ao 4º. – Princípios Fundamentais -, as alinhavadas pelos art. 5º. ao 17º. – Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Direitos Sociais, Direitos Políticos –, as desenhadas pelo art.18º. ao 43º - Organização do Estado -, as pontuadas pelos arts. 44º. ao 135º. – Organização dos poderes -, as delineadas pelos arts. 136º. ao 144º. – Defesa do Estado e das Instituições Democráticas -, as projetadas pelos arts. 145º. ao 169º. – Tributação e Orçamento -, as esboçadas pelos arts. 170º. ao 181º. – Ordem Econômica e Financeira -, as constituídas pelos arts. 193º. ao 232º. – Ordem Social -, tudo será estratagema, desfalque, injúria constitucional, insurreição, motim, rebelião, revolta, que rasga a Constituição Federal, atinge o povo, fere o Brasil mortalmente, e não condiz com a sua essencial vocação democrática.

Juristas não podem interpretar inocentemente a Constituição Federal, a favor de golpistas.

Militares não podem esquecer as funções constituições e de Estado, a favor de golpistas.

Parlamentares não podem contrariar o voto que receberam democraticamente, para atuar contrariamente ao próprio parlamento, a favor de golpistas.

Magistrados não podem se desviar de seus desideratos constitucionais e da imparcialidade e da independência, a favor de golpistas.

Ministros de Estado, não podem, à guisa de serem escolhidos pelo Presidente eleito, praticarem atos a favor de golpistas.

Nada, absolutamente nada, justifica qualquer golpe, pouco importando a ideologia que venha atapetando o caminho dos que almejam a fissura institucional e a perpetuação no poder.

Liberdade sim, de falar, de agir, de fundar partidos, de professar convicções religiosas, de abraçar ideias filosóficas, de pensar no Estado, sem abolição de liberdades, sempre nos limites da Constituição Federal.

Não há nenhum dispositivo constitucional que ampare pretensões contrárias ao Estado Democrático de Direito, nem os que pretensamente entendem defendê-lo e justificá-lo, com hermenêutica canhestra que arrime a argumentação – com base na própria Lei Maior - que explique a defesa do país, pela incisão e cancelamento das garantias constitucionais.

A famigerada interpretação do art. 142 da Constituição Federal, feita pelos golpistas, não se sustenta pelo mínimo crivo de luz inteligente, porque foi realizada sob a indução da força e do poder, não do poder do povo, mas dos governantes de plantão.

Diz o art. 142. “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O objetivo maior é a defesa da Pátria, pela garantia dos poderes constituídos, a garantia da lei e da ordem, e das fronteiras. A quebra de tais poderes, da lei e da ordem, e dos limites físicos, econômicos e culturais, não é defesa da Pátria. A Pátria é constituída pelo território, pelo povo, pelo governo eleito, pela cidadania, pela busca do estudo, pela busca das oportunidades, da coerência de uma mesma visão política e social, baseada na Democracia, pela conservação da língua e dos costumes.

Nada, absolutamente nada, enseja a interpretação de que o Presidente da República se sirva das forças constituídas para anular os poderes constitucionais, e, muito menos se utilize, para tanto, de seu temporário poder para constituir novas forças e órgãos.

Os poderes exercidos no passado, os exercido no presente e a pretensa interpretação futurista de exercício inadequado posterior, não são suficientes para justificar um golpe revolucionário. Só a quebra institucional, efetiva e concreta, é que poderia encetar alguma espécie de reação, desde que baseada na vontade popular, não a do povo enganado, manuseado, alimentado por expressões de ódio e de revolta, conduzido por palavras de ordem e de gritos, à guisa de condução de gados, meios que se servem tanto os da direita reacionária, como os da esquerda inconsciente.

 O povo, na sua expressão individual e coletiva, deve ser informado claramente e raciocinar sobre os destinos da nação, o que só se consegue com a liberdade de imprensa, com a comunicação ampla, não direcionada para objetivos escusos, com o ensino não subordinado a ideologias, com a divulgação da ciência, com o embate de ideias. De outra forma, não será o povo soberano, senão, o povo manietado, subordinado, abúlico, pronto para pegar em armas, de forma religiosa, cega, movido pela fé e não pelas ideias claras, em busca apenas de ídolos.

Os órgãos da Administração Pública devem agir no tempo presente, e não no tempo passado e não no tempo futuro, salvo para administrar as questões sociais (educação, alimentação, saúde, combate ao crime, etc). Não há pitonisa, vidente de bolas de cristal, de cartas, de búzios, de horóscopos, que possam afirmar que o Estado necessita se defender por intermédio de um golpe de dominações futuras. Tais argumentações são armadilhadas, usadas para afirmar as próprias razões de mando (não se pode esquecer que Maduro da Venezuela, quando assumiu o poder, disse para o povo que havia recebido de madrugada, o espírito do Hugo Chaves, com mensagens de governança. E o povo acreditou!), o mesmo, faz, com outras palavras ou gestos, Putin (Rússia), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Bashar al-Assad (Síria). As mal chamadas “Direita” e “Esquerda” agem iguais.

A melhor defesa do Estado é seguir a Constituição Federal, garantindo aos eleitos o exercício democrático advindo da eleição – não fraudada – e garantindo a possibilidade de troca de governantes em eleições futuras.  A alternância do poder, o respeito ao diálogo, a obediência às regras estabelecidas – não pelo ditador – mas pela Democracia, é a única forma de progresso real.

O Brasil passou por fases ditatoriais e tem, lá no fundo, alguns resquícios de ditadura, que vira e mexe tentam abalar a Democracia. Quem se arvora, como pessoa (carnes, ossos, mente), a falar em nome de milhões?

Enquanto não nos preocuparmos com a miséria, orgânica, intelectual do povo, a vitória será dos aquinhoados das benesses, por nascimento ou por manipulação do poder.

Alessandra Pearce de Carvalho Monteiro, estudiosa, pós-graduada em Coimbra, explica:

A primeira postura antidemocrática que partidos políticos podem assumir é a incitação ao ódio e à discriminação contra grupos da população, especialmente as minorias estigmatizadas, como os imigrantes, pessoas não brancas, homossexuais e mulçumanos...(...) Em sua famosa obra `Ensaio sobre a Liberdade`, Stuart Mill desenvolveu a teoria de defesa da liberdade de expressão mais influente de todo o pensamento liberal, que tem como fundamento dois princípios postulados: i) as pessoas devem ser livres para fazerem o que quiserem, desde que não prejudiquem terceiros; ii) o Governo não pode legislar para proteger uma pessoa de si própria ou impor a crença da maioria acerca de noções sobre virtude e moral. Ou seja, eis uma teoria que busca proteger os interesses de minorias que não se adequam aos padrões culturais dominantes ao garantir que as suas escolhas possam ser realizadas com autonomia. Se para Millo o grande motivo para a defesa da liberdade de expressão era evitar a tirania estatal ou a tirania da maioria, apenas mediante a completa subversão dos fundamentos de sua teoria é que se pode utilizá-la para defender a liberdade de expressão daqueles que buscam, ao revés, incentivar a discriminação, a opressão e o ódio às minorias. Contudo, é precisamente isso que tem acontecido no debate sobre censura ao discurso do ódio. Doutrinadores utilizam os argumentos desenvolvidos por Mill de forma descontextualizada, ou seja, sem levar em consideração o fundamento de proteção às minorias, e terminam por concluir que a liberdade de expressão também pode ser exercida para atacar, inclusive, essas mesmas minorias!

Manipulação!

Vamos ficar alertas!


Nota: Alessandra Pearce de Carvalho Monteiro - Extremismo Político - como as democracias podem lidar com as novas ameaças antidemocráticas, Arraes Editores, 2019, p.43 a 45

segunda-feira, junho 05, 2023

Dos recursos narrativos à narração dos discursos



Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

São discursos narrativos o diálogo, a descrição, a narração e a dissertação.

Nos diálogos, temos as falas de personagens, em diálogos diretos, por meio de aspas, travessão e outros expedientes e o diálogo indireto, quando aquele que comunica diz: “ele disse que...” ou expressões similares, bem como o monólogo interior, uma espécie de fala mental. A descrição corresponde a enumeração dos componentes e pormenores de objetos, paisagens, pessoas. A narração implica em acontecimento, ação e movimento e a dissertação diz respeito à explanação das ideias ou conceitos.

Como ensinam os professores de Português, estes recursos podem não aparecer estanques, e sim, misturados, e entremeados de gestos, dificultando aquele que escuta ou vê de entender o seu conteúdo.

Os políticos – sem qualquer ciência, é verdade, mas com muita perspicácia – utilizam-se muito disso. Misturam tudo a seu bel prazer, embutem diálogos nas descrições, fazem narrativas nas suas dissertações, e quando se vai verificar, não sobra nada aproveitável. O fato desaparece nas expressões, significados e significantes, falas discursivas e falas que se dizem técnicas, a ponto de nós – pobres mortais – ficarmos perdidos nessa floresta de amarrações comunicativas.

Fatos não são fatos, tortura não é tortura, repressão não é repressão, corrupção não é corrupção, abuso do poder não é abuso do poder. São somente narrativas.

A Rússia é o país vítima da guerra impetrada, indiretamente pela Ucrânia?

O Lava Jato e os petrodólares, todos envolvidos, uns e outros, são vítimas?

Maduro é, na verdade, um democrata, que luta contra as forças da economia mundial, e contra o gigante do Norte, defendendo o seu povo e o seu “Estado de Direito”, ainda que, para tanto, mande prender os considerados inimigos do povo, perpetua-se no poder, para que não haja involução dos objetivos da república, desfaz o Congresso, que lhe é contrário e os juízes independentes, tudo em nome da Venezuela. Um herói que prossegue na saga grandiosa e generosa de Hugo Chaves, o seu mentor espiritual? Ele recebeu comunicação espiritual de Hugo Chaves, assim que tomou conta do poder!

Narra-se de um e de outro lado, todos convictos de que podem convencer e de serem favoráveis à Democracia e à República.

Para vencer uma batalha, tudo é possível, desde exércitos bem armados e “fake news” nas redes de comunicação até discursos inflamados.

Não querer a volta de um desenho de ditador, não pode significar que se deva assinar, em baixo, de todas as narrativas oficiais e oficiosas.

Pobre leitor e cidadão que se farta de ouvir narrativas dissertativas, com diálogos embutidos e descrições imaginosas, e acaba por crer que um ex-presidente é defensor da família e dos princípios religiosos e da bandeira nacional e que os que estão no poder são contundentes contra os despóticos ditadores, do presente e do passado.

O Brasil melhorou – não há dúvida – em termos de suas relações internacionais; reconstruiu pontes desfeitas, buscou o diálogo, mostrou-se disposto a ouvir narrativas, sem tomar uma posição que fuja da postura de interlocutor confiável e mediador possível, pelo menos, até agora.

Ouvir é sábio, para agir e falar, necessário cautela, e principalmente confiar em assessores acostumados aos diálogos internacionais: os membros da Diplomacia

As eventuais narrativas – narrativas de narrativas - podem vir a desfazer o caminho ora percorrido, ou isso também é uma narrativa?

Somos um país de extensas e infindáveis narrativas, internas e externas.

Vamos descansar em uma clareira – deve haver alguma – nesta floresta comunicativa de desejos, e olhar para ver se através das copas das árvores aparece a luz. 

segunda-feira, maio 29, 2023

O domínio reservado dos Estados

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Há um conflito conceitual no mundo moderno entre o Direito Internacional e a soberania dos Estados, sendo que uma das formas de concretização desta, o chamado “domínio reservados Estados”.

Não se observa a existência de uma regra que conceitue ou defina tal domínio, ficando no ar que este espaço existe e deve ser respeitado por todos os Estados e pelos organismos internacionais.

O fato é que, com o tempo, vem diminuindo o espaço do que é reservado para o Estado, em face do aumento das normas e princípios de Direito Internacional, advindos, principalmente dos tratados e convenções internacionais, bilaterais ou multilaterais. À medida que o Estado adere a um tratado (negocia, assina, ratifica, incorpora), se vê obrigado a admitir que a soberania exercida sobre o seu território e sobre o seu povo, não é total, tendo em vista a necessidade de cooperar com os demais Estados e com a sociedade internacional, desenvolvendo uma convivência pacífica e colaborativa.

Em uma época que as fronteiras não representam mais uma barreira intransponível, o Estado recebe - querendo ou não - influências do exterior, e mais do que isso, os efeitos jurídico-políticos de atos praticados por outros Estados e por organizações internacionais; e, também estende seus interesses para outros territórios, quer seja na área econômica, na área política, na área social ou jurídica. As fronteiras do Estado, embora definam o seu território, revelam-se mais como portais que podem e devem ser abertos para que se transite – via de mão dupla – os atos estatais, nas relações internacionais, cada vez mais intensas e necessárias.

Ninguém, nenhuma organização, nenhum ente público e nenhum ente privado, consegue viver só. Impossível concretizar as mínimas demandas administrativas, quando se fecham em seus próprios campos de domínio.

Entre a necessidade internacional, que não pode ser afastada, nem filosófica nem ideologicamente, e a independência e autonomia do domínio de suas próprias decisões e consequências, o Estado hesita e faz hesitar o próprio sistema internacional, por ele próprio engendrado.

Não há dúvida que este sistema só existe por iniciativa dos Estados, que nele se inserem como criadores e ao mesmo tempo como criaturas. Todavia, esta natural interação produz problemas. Inquirir, quais os mecanismos de solução, em um caso concreto, se é que se revelam claros, é tarefa insana para os teóricos e para os práticos, que raciocinam e toma decisões em nome do Estado e das organizações internacionais.

De início, a resposta parece negativa. Na verdade, não há clareza, desde a Liga das Nações e passando pela Carta da ONU e pelas Cartas Regionais. Em outras palavras, todos entendem e não duvidam, que o Estado tem um domínio que é seu, reservado, mas o tamanho desse domínio, sua área de extensão e quando pode ser invocado e respeitado, é um sítio a ser sempre medido e desvendado.

Dentre as normas que embasam o domínio reservado, pode ser mencionado o art.2, inciso 7. Da Carta das Nações Unidas: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta, este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constante do Capítulo VII.

Quais assuntos que dependem essencialmente da jurisdição de qualquer Estado? Podemos imaginar os referentes à sua administração interna: correios, portos, aeroportos, transportes em geral, distribuição de alimentos, organização da força militar, organização do sistema jurídico, sistema tributário, sistema de saúde, sistema eleitoral, e outros de igual natureza.

No entanto, nem todas as áreas estão blindadas, por si, de uma intervenção internacional, em casos gravíssimos, ou que fujam à normalidade, ou por uma total incompetência do governo, ou pelo exercício descontrolado das próprias razões do governante. Afinal, a base de tudo, é o ser humano; para ele volta-se a economia, para ele volta-se o Direito, para ele volta-se a saúde, para ele voltam-se as benesses da vida, e o Estado é um instrumento de realizações da sociedade que lhe está subjacente.

Vejam que o artigo em referência, após dizer da proibição em assuntos internos, ressalva a aplicação de medidas coercitivas. Os limites estão postos; limites da soberania e limites da ordem internacional.

O Capítulo VII, diz respeito às ações que ameacem a paz, a ruptura da paz e aos atos de agressão, que serão tomadas pelo Conselho de Segurança, mas, em princípio, sem o uso da força: “Art. 40. A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no art. 39, convidar as partes interessadas a que aceitem as medidas provisórias que lhe pareçam necessárias e aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os direitos e pretensões, nem a situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas.” E mais adiante, no art.41, diz quais são as medidas possíveis “interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou qualquer de outra espécie e o rompimento das relações diplomáticas. E no art. 42 complementa que “se tais medidas se mostrarem inadequadas, poderá se utilizar de forças aéreas, navais ou terrestres.

Assim, não está no domínio reservado dos Estados a agressão, a ruptura da Paz e a ameaça a Paz. Outras atividades, devem ser analisadas, ante os binômios: fato e norma e fato e princípios internacionais, em que se possa divisar a infringência dos direitos humanos, a matança, a escravização do povo, as perseguições, a fome, a guerra interna incontrolável, o genocídio etc.

O fato é que o ser humano vive no globo e não é possível que suas ações, preocupações e interesses estejam apenas constritos ao território em que vive. Esta é a nova realidade dos séculos XX e XXI e o poder estatal será mais poder quanto mais cooperar com a comunidade internacional, porque não se concretizará tal poder se agir apenas em seu território, desconhecendo e afastando as influências alienígenas, em um mundo globalizado.

Especificar, em cada caso concreto, o domínio reservado do Estado, não é tarefa automática e simples, mas os parâmetros encontram-se nos princípios internacionais e na interpretação equilibrada e cautelosa da Carta das Nações Unidas, diante dos fatos.

O Direito não é mágico e se concretiza na sociedade, com linhas tênues e de convencimento, para equilibrar regras e princípios.

quarta-feira, maio 17, 2023

Um mundo em crise: O certo e o errado

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A dúvida assola a todos nós, que vivemos sob a ordem jurídica do Estado. Até que ponto a política interfere na interpretação jurídica, principalmente dos tribunais superiores? É fato que de uns tempos para cá vivemos de incertezas. Antes, um ex-Presidente da República estava condenado e preso e o que estava no poder, segundo ele, não tinha contra si nem uma nódoa de corrupção. Agora não só quem antes era condenado é o supremo chefe da nação, como o que estava livre de manchas aparece todo malhado com envolvimento em suas falcatruas, de pessoas dos três poderes e de elementos do exército, aposentados ou não, segundo as notícias. Antes quem era juiz, estava acima do bem e do mal, combatente do crime, de mãos limpas, perseguindo todos os que se opunham ao Estado Democrático de Direito, no entanto, foi ser ministro da Justiça, daquele que efetivamente contrariava a Constituição Federal, se opunha a Organização Mundial da Saúde, cooptava pessoas para os seus desígnios, mandava com voz autoritária e destituía dos cargos os que lhes contrariassem as intenções políticas, como se fosse um ditador, pouco importando a repercussão econômica e social de seus atos: “O Estado sou eu”. Antes membros do Ministério Público perseguiam provas, expunham na mídia o trabalho incansável, atuavam a bem da Justiça e da sociedade; ora, um desses antigos combatentes entrou para a política, sofreu processo e perdeu o mandato, condenado por manipulação de provas e pela “lei da ficha limpa”!

Parece que a voz da política é mais forte do que a voz da Justiça! Qual a extensão e a medida? Até que ponto os fatos e as forças do momento influenciam as decisões jurídicas?

É certo que influenciam, e é certo que devem influenciar, posto que Direito não é matemática e a lógica do Direito lida com elementos sociais, políticos, psicológicos, econômicos; se assim não fosse, bastaria entregarmos os processos e as decisões jurídicas aos computadores e a tecnologia, que não tem paixões, “resolveria” os nossos problemas. A Justiça não é produto frio e lógico de aplicação da norma sobre um fato. O erro não está na influência dos fatos, está em não considerar a superioridade das regras, que, por óbvio, tem limites de interpretação, e tais limites estão, em última análise, na Constituição Federal.

Os fatos de um dado momento político não podem ser dominantes, a ponto de inverterem objetivo expresso na norma; mas também a norma não se reduz à própria norma, como um elemento lógico, inequívoco, de mensagem clara e insuscetível de interpretação. Poucas escapam disso, excepcionalmente, e com cautela, aquelas que definem os fundamentos da República e da dignidade humana.

Friedrich Muller, ao mencionar o pós-positivismo, faz crítica ao pensamento kelseniano, que tinha no positivismo a resposta para tudo, encerrando a sociedade, o bem e o mal, dentro da regra: “´Pós-positivista` significa também: depois de Kelsen. Hans Kelsen marcou cientificamente o ponto mais alto do Positivismo. Mas ele permanece ainda prisioneiro dos erros do Positivismo: primeiramente, não ver as fronteiras, os limites da língua jurídica –ele queria mesmo reduzir o direito ao raciocínio lógico, traduzi-lo para uma lógica abstrata, uma lógica formal. E, em segundo lugar, excluir a realidade e querer considerar a jurisprudência como ´pura´. Com isso, retira-se do Direito o seu próprio conteúdo. Mas em toda essa atividade trata-se, sim, dos conteúdos materiais (...) Então, a Teoria Estruturante do Direito é intencionalmente ´impura`[1]

Rendemos nossas homenagens a Kelsen –e não poderia ser diferente; trata-se na, Filosofia do Direito, de um divisor de águas– mas o Direito é bem mais complexo, tendo em vista os elementos que o compõem, como supramencionados, porquanto, em parte concretiza-se na norma mas, é também, produto da sociedade, com todas as suas ambiguidades e irresoluções.

Julgar não é tarefa fácil, porque exige do julgador formação ampla, não só jurídica. Concretizar a justiça –como valor– é, então, tarefa quase impossível.

Entretanto, é factível uma aproximação do que se pode dizer ideal, distante do fato, do furor, da cólera, do amor ardoroso e também afastado da logicidade racional e fria. Será que podemos nos aperfeiçoar?

As lições de Bittar são importantes para as nossas divagações: “O poder das mídias de massa (TV; rádio; jornal; revista; blog; redes sociais; etc.) tem a ver com a irradiação, o alcance e capacidade, a autoridade informacional, a facilidade de acesso, a imediatidade e a prontidão da informação. O poder dissuasório das mídias de massa se realiza pela multiplicidade das linguagens, pois se utilizam da imagem, do som, da palavra oral, da palavra escrita, assumindo a capacidade de, em larga escala, veicular com facilidade, sem prerrequisitos, com alcance consciente e inconsciente. Isto tem provocado curiosidade crescente, uma difusão sem precedentes, mas também uma anestesia de consciência e qualidade da informação...(...) Desta forma, o poder das mídias de massa serve como um contrapoder em face de outros poderes sociais (poder político; poder econômico; poder burocrático), de forma a colaborar para informar, visibilizar, fazer-saber, conscientizar, pulverizar, irradiar, garantir transparência, denunciar, controlar, tornar transparente. Não por outro motivo, uma esfera pública midiática íntegra e forte é de fundamental importância para a vitalidade democrática. No entanto, há fronteiras entre o bom e o mal exercício do direito de informar, podendo-se, no exercício destas atividades, conhecer-se de perto, o abuso, a distorção, o deslimite, a manipulação, a sede de lucro, a ganância pelo furo profissional, o incentivo ao rebaixamento qualitativo da informação, a aparência e neutralidade e o uso ideológico real, o controle ideológico de mentalidades, a assunção de uma posição política em face da luta de classes, a alienação e a anestesia na seletividade  de disseminação da informação.[2] E, tudo isso está no julgar.

Não se iludam, todos nós julgamos, desde que acordamos; todos nós somos juízes, e julgamos os próprios juízes, que têm a função jurídico-político (poder do Estado) de julgar. Nós e estes últimos, entretanto, temos que estar atentos à norma e aos fatos, para não incorrer em injustiças e conservar a Democracia.

É o caminho para evolução.



[1] Muller, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional, p.107, 4ª. Ed. Revista dos Tribunais.

[2] Bittar, Eduardo C. B. Introdução ao Estudo do Direito – humanismo, democracia e justiça, p.504, Saraiva, 2018.

segunda-feira, maio 08, 2023

Sobre a Palestina, sua condição e os princípios internacionais

 



Foto: Frank van Beek/ICJ via Getty Images

 

Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A Organização de Libertação da Palestina (OLP) foi criada em 28 de maio de 1964 com o propósito de garantir o direito à autodeterminação do povo palestino.

Tal propósito está de acordo com os princípios de Direito Internacional, lembrando que o mencionado princípio se encontra em nossa Constituição Federal (art.4º), e é indiscutivelmente uma das premissas de afirmação do Direito Internacional

Observe-se que a Assembleia Geral, pela Resolução de n.3237 (XXIX), em 22 de novembro de 1974, convidou a OLP a participar como observadora, em suas sessões, o que é um meio caminho para considerá-la possuidora de uma subjetividade internacional. Explico que tal subjetividade –sujeito de direito internacional– tradicionalmente somente se dava aos Estados soberanos, e a partir de uma certa evolução, principalmente a partir da Convenção de Viena de 1986, também às organizações internacionais, dependentes de seus tratados constitutivos. Assim, a OLP, que não era e não é considerado um Estado, bem como a Palestina, seu objetivo de libertação, e que também não tem as características de uma organização internacional, estaria numa espécie de limbo jurídico internacional.

A partir daí a OLP estabeleceu uma missão permanente (um escritório na cidade de Nova Iorque) junto das Nações Unidas, o que se tem como similar a uma espécie de embaixada. A aceitação, por parte das Nações Unidas, de uma missão permanente da organização, seria um passo relevante para os propósitos do movimento libertário.

Todavia, em dezembro de 1987, os EUA promulgaram uma lei que declarava a OLP como uma organização terrorista, para os interesses norte-americanos, proibindo que qualquer relação fosse mantida com a organização, o que de certo modo, contrariaria o princípio supramencionado, mas que evidenciava um posicionamento mais pragmático em relação aos interesses políticos e econômicos norte-americanos e à ideia do Estados soberanos que, efetivamente, não era o caso da OLP.

Aqui, uma simples reflexão: a política e o Direito que produzem os sistemas jurídicos, internos e internacional, andam de mãos dadas, na formação do arcabouço que sustenta as sociedades. Entendemos que a autodeterminação dos povos é um princípio básico e maior, mas os fatos e os interesses constroem o pano de fundo sobre o qual –espera-se– que este princípio, como outros voltados para o ser humano, devam prevalecer. A contrariedade a algumas regras e princípios faz parte da confirmação dessas mesmas regras e princípios, porque não há unanimidade na condução das coisas públicas. O que realmente interessa é que os organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas e a Corte Internacional de Justiça, dentre os maiores, reafirmem tais princípios, o que mantém a higidez do sistema. Uma espécie de freios e contrapesos, que faz o diálogo entre a aplicação da norma desejável e os fatos.

O Secretário-geral das Nações Unidas considerou à época que a lei norte-americana violava o acordo entre as Nações Unidas e os Estados Unidos (acordo de sede/território), pelo qual a organização maior se estabelecia em território norte-americano, uma vez que a cláusula 21ª do referido Acordo estabelecia que qualquer tipo de litígio entre o país sede e as Nações Unidas, que não fossem resolvidos por negociação, deveria ter solução por arbitragem.

Apesar dos EUA não quererem submeter-se a arbitragem, a Assembleia Geral adotou a Resolução 42/229 A, em que reafirmou o direito da missão da OLP de manter uma missão permanente junto das Nações Unidas.

A reação norte-americana foi a de prescrever, por um ato decisório, de um tribunal próprio, a execução coercitiva de encerramento da representação da OLP, mas a Corte Internacional de Justiça –como não poderia deixar de ser– considerou irrelevante a decisão do tribunal interno à luz do Direito internacional, porque outro princípio se impunha, o de que o direito internacional prevalece sobre o Direito Interno. Em outras palavras, nas relações entre Estados, que são partes em um tratado, as disposições do direito interno não podem prevalecer.

O governo norte-americano não recorreu da decisão, e embora continuasse a considerar a OLP uma organização de cunho terrorista, acabou aceitando a missão permanente desta junta às Nações Unidas.

Importante a medida entre os princípios e as motivações políticas e a prevalência daqueles.

Uma coisa é a Palestina, como Estado soberano, o que ainda é um objetivo a ser conquistado, outra a organização interna, de luta, que busca tal intento, outra, ainda, a atuação desta organização no mundo ou em território dos EUA, ou em países amigos deste, com atos terroristas, e mais outra, a sua procura de aceitação pelas Nações Unidas, o que contrariaria o objetivo meramente terrorista da organização.

Enfim, há que se pensar com clareza nestas questões.

quinta-feira, abril 13, 2023

As projeções do nosso dia a dia

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Há projeções coletivas e individuais, inconscientes, que fabricam ações parecidas, não importando a região, a cultura e o tempo. Propagam-se e influenciam as pessoas dos mais variados costumes e educação, e nada tem a haver com o grau de instrução e conhecimento político ou esclarecimento sobre a vida e sobre o mundo. Multiplicam-se.

Acaso ocorram mortes em uma escola, engendrada por um desajustado, logo outras ocorrerão em outras escolas, em outros cantos, até em outros países, copiando iguais procedimentos, como se fossem repetições de um mesmo caso, com personagens diferentes.

A força da maldade parece ser mais contaminadora do que a dos bons exemplos; as demonstrações de pureza, de amor, de amizade, de solidariedade e cooperação.

Somos seres imperfeitos, é certo, mas nossa imperfeição não é só individual e, sim, coletiva. Na tela que transmite imagens do agrupamento humano, ficamos chocados e atraídos com as diversas possibilidades de infringência das regras costumeiras ou escritas e com a repercussão que isso produz e se reproduz.

O absurdo das atitudes nos emociona, porque confirma o animal, que intrinsecamente nos domina, e se não houver um ego e um superego alinhados, sofrerá, por certo, a nossa fantasiada humanidade!

Nos dias de hoje, tudo é possível: todas as crenças, todas as formas, todos os monstros que nos habitam, todas as imagens que fazemos de nós mesmos, e que justificamos, declarando ao mundo a nossa independência, o nosso orgulho, o nosso autodomínio, e, com isso, construímos um caminho pretensamente único, inseridos na repetida história dos fatos, que são jogados no ar, como tintas, e se fixam em manchas, das mais variadas cores, dando colorido à existência.

A individualidade toma conta e os fatos coletivos desastrosos, incongruentes, “foo fighters”[1], alimentam o ego, informado e em algumas ocasiões, dominado pelo subconsciente.

Que seres frágeis somos! Individualidades sem lastro, imitadores de ações coletivas, encantados pelo fantástico, não só na vida pessoal, familiar ou entre amigos, mas também na vida pública!

E isso nada tem a haver com os arquétipos de Jung[2], que funcionam como argamassas comuns, sobre a qual edificamos – sem possibilidade de escolha - a nossa estrutura psíquica. Não. O que analisamos aqui, é um fenômeno que vai do inconsciente para o consciente, ainda que este seja muito influenciado, sem percepção racional dos acontecimentos.

Daí porque existem tantos adoradores do diabo, das armas, dos homicídios, dos sacrifícios coletivos, dos suicídios, das crenças mitológicas, dos discursos de ódio, das revoluções e do sangue correndo: é o domínio das imagens, que cegam a racionalidade e a inteligência.

Não é fácil pensar. Não é fácil ler nas entrelinhas e por trás das palavras. Não é fácil ver o que não está visível a olho nu.

Olha-se para o espelho quebrado em várias partes, e o que se enxerga é um pedaço de braço acoplado a uma cintura, um olho sobre o nariz, uma das mãos sobre o ombro, uma perna em forma de arco e outra rígida, uma orelha que escapa da testa. O nosso mundo é um espelho partido, devemos desconfiar do que vemos e das conclusões que tiramos.

Os heróis são tristes figuras!

Será que podemos voar?



[1] Dizem das luzes que acompanhavam os bombardeios na segunda guerra mundial.

[2] Arquétipos são conteúdos coletivos inconscientes. Explica Jung: “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Esyte, porém, repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos de ´inconsciente coletivo`” C.G.Jung – Obras Completas, vol. 9/1. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p.12, 11ª. Ed. Editora Vozes.

terça-feira, abril 04, 2023

O mundo como deveria ser

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Poesia e Direito, Direito e Poesia, um território único a ser explorado. Peter Haberle, considerado um dos grandes constitucionalistas europeus, incorporou as duas áreas. Em entrevista a Hector Lopes Bofill, professor de Direito Constitucional e uma das mais destacadas vozes da jovem poesia catalã, diz:

Há aspectos do direito constitucional que são especialmente sensíveis à atividade criadora dos poetas. O preâmbulo das constituições é um bom exemplo, bem como os enunciados empregados nos catálogos dos direitos. Os poetas proporcionam a suficiente dose de utopia que orienta o sentido da realidade constitucional. Poder-se-ia citar o caso da nova Constituição Federal suíça de 1999, uma parte de cujo preâmbulo foi concebida pelo poeta suíço A. Mushg ao proclamar que a força do povo se mede no bem-estar dos débeis. Os valores derivados de alguns princípios e objetivos constitucionais, como a tolerância e a educação democrática, podem fundar-se na formulação linguística e no conteúdo material enunciado pelos poetas. No que concerne aos direitos fundamentais, só haveria de referir-se à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujo sucesso universal foi em parte propiciada pelo caráter contundente, sugestivo e penetrante do estilo que lhe conferiram alguns literatos reunidos na Assembleia Nacional francesa como Mirabeau.

Fico pensando que o mesmo se dá com o nosso Texto Maior, produto do momento político-jurídico de 1988, carta política e ao mesmo tempo jurídica, e de inspiração de seus próceres, sensibilizados pelo momento. O seu Preâmbulo não é obra de juristas, nem de políticos, mas de uma metamorfose que transformam uns e outros, em uma simbiose poética que deve servir de base para a interpretação de quaisquer de suas regras: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

É possível dizer que aquele que na vida político-administrativa age por conta própria, discriminando, ressaltando as diferenças sexuais e raciais, tecendo longos laudatórios favoráveis às armas e aos armados, exaltando os ricos e menosprezando os pobres, protegendo as famílias de posse e pouco ou nada fazendo para minorar a vida dos pobres, estão agindo de acordo com o referido Preâmbulo?

É necessário um pouco de poesia para cumprir o mandamento constitucional. Atitude de vida, de desapego das honrarias, de amor, de mais apreço pelo povo e menos apreço pelos cargos públicos; quem possui tais caracteres? Só o ser humano público, que não defende privilégios e nem se assenta nos louros da glória, pode ler e entender o Preâmbulo da Constituição Federal, texto poético que inspira o documento fundamental da República.

Algumas palavras (figuras), postas no Preâmbulo são emblemáticas da emoção em se proclamar a Carta Magna, a saber: Estado Democrático, direitos sociais, direitos individuais, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade, justiça, sociedade fraterna, sociedade pluralista, sociedade sem preconceitos, harmonia social, solução pacífica dos conflitos.

Tem alguma conexão com armas, com neonazistas, com raça pura, com domínio sobre as mulheres, com perseguições?

Temos uma Constituição avançada, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, com a Carta da ONU, em harmonia com os princípios internacionais, representativa da preocupação com o ser humano e com a humanidade, mas há ainda, no meio do povo grupos pequenos, refratários ao progresso, radicais; para os quais o raciocínio e o argumento não fazem parte do dia a dia; para os quais, o mar não é azul, o céu não é amplo, as árvores não são verdes; para os quais não há brilho no olhar: só ódio, só vingança, só ganância, só morte, só galhos secos, só águas barrentas, só nuvens plúmbeas; que só tem presente a cólera assassina e psicótica, dos que não entendem o mundo.

Eles estão espalhados nos mais diversos setores sociais, e mesmo entre aqueles que deveriam ter uma vida intelectual, supostamente superior.

Acho que nunca leram o Preâmbulo da Constituição Federal, como provavelmente, nunca leram Machado de Assis, Vinicius de Moraes, Drummond, Fernando Pessoa, Castro Alves, Guilherme de Almeida, para dizer o mínimo, sem entrar na seara dos pensadores, estes, então, passam ao largo das leituras, porque os simbolismos que alimentam a execração, a malquerença, o nojo, a repulsa, a gana, o rancor, a sanha aniquiladora do humano, fala mais alto e repercute em todos os primitivos neurônios de seus cérebros deformados. Estão cegos e surdos. Não os comove a delicadeza. Gostam das guerras, dos braços e cabeças amputados, dos fígados expostos, do sangue correndo pelo chão.

Nunca leram o Preâmbulo da Constituição Federal, ou se o fizeram, não conseguiram entender o texto, que o povo, por seus representantes, declarou como profissão de fé para o Brasil.

A bem da verdade, não é que poesia e Direito andam juntas, e sim que têm o mesmo princípio informador: a poesia, como o que é humano, sensível, racional, lúdico, alegre, vivo; e, o Direito, como o que é desejável, para manter e crescer o ser humano, em uma sociedade organizada, com base nos princípios maiores de paz, de afeto, de compreensão.

Nunca leram o Preâmbulo da Constituição Federal.

Triste miopia...

quarta-feira, março 15, 2023

Amigos da ODIP: um pouco de poesia aos operários da palavra

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC de S/P e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

1.Um operário,

desses, de macacão sujo

e marmita,

  assim é, como me sinto

na hora solitária,

            em que trabalho

na escrita.

 

2.Vou desbastando,

                 desbastando,

 a letra e a palavra,

      a ideia vai surgindo,

 e cresce, e se constrói,

       e se destrói e lavra.

 

3.O branco puro do papel,

e da tela,

           perfurando o vazio,

a que se atrela.

            uma palavra aqui,

outra, acolá,

quem sabe, no que vai dar!

 

4.Não faço barulho,

                  e noite adentro,

vou juntando pedaços,

        histórias que invento,

advindas do meu cansaço.

      

5.Paro e olho pela janela,

olhar esticado e profundo,

deixo ferver na panela,

            meus sentimentos

do mundo.

 

6.E quando já madrugada,

    sinto as pálpebras pesadas,

guardo a caneta e o papel,

    na minha maleta de nada.

.............................................

 

É um trabalho insano,

            que produz, de tudo

e por vezes, não produz,

            não falo, fico mudo,

pregado nesta cruz.

 

Também, o ofício jurídico,

não é só consulta,

                          não é só leitura,

a criatividade faz parte

          dessa abençoada loucura!

 

Nossa matéria é o Direito,

             Interno e internacional,

o contrato que é aceito,

        o tratado, a que se dá aval.

 

E assim vamos garimpando,

entre a teoria e a interpretação,

a letra da lei diz pouco,

                  vale mais a intenção.

 

O Estado, a política, a soberania,

e as líquidas fronteiras,

 o que nos salva é a Diplomacia,

das administrativas besteiras.

 

A ciência jurídica aí está,

há para os fatos, alguma solução,

e à estátua do Direito: fala Pietá!

Cria vida na jurisdição!

 

Parodiando Bilac....

 

E os amigos dirão: ouvir o Direito,

 - Por certo perdeste o senso!

E eu vos direi, no entanto,

                        - Que abro os livros,

cheio de espanto.

- e que sentido tem, o que dizem,

quando estão contigo?

                  - amai, para bem ouvir,

porque só quem ama,

                             pode ter ouvidos,

para com eles interagir!

quinta-feira, fevereiro 23, 2023

As mazelas da comunicação e o poder – uma mera reflexão

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito internacional Público e Privado

 

Não há efetiva separação entre Economia, Política e Informação, ou comunicação. Talvez, o mais importante para todos os campos da atividade política, venha a ser, exatamente, a comunicação; que é fundamental para qualquer governo.

Não existem governos perfeitos, mas há aqueles que não queremos, de jeito nenhum, porque desrespeitam os princípios fundamentais de convivência social, em um país institucionalmente organizado.

É engraçado, como alguns jornais agora se voltam contra as falas do presidente eleito, em relação ao que pretende fazer e em relação ao que pensa do passado. É legitima a crítica, mas, isto não pode significar que se queira o radicalismo da direita, que não respeita as instituições, a democracia e a Constituição Federal, não.

É certo que, também, não queremos o radicalismo de esquerda, não. Não queremos quaisquer radicalismos, e nisto, talvez a nossa incongruência, somos radicais. Mas, a quem interessa atacar o presidente eleito, como a dizer, que ele é um desacerto? Seria um acerto ter mantido o anterior, que sempre pregou as próprias razões como únicas –para ele não havia Congresso, não havia Justiça– e fazia vistas grossas para o desmatamento, e o incentivava (deixar passar a boiada); contrariava direitos humanos; cooptava as forças públicas; fraudava; buscava a adoração irrestrita; estimulava as “fake news”; desregulamentava a proteção indígena e todas as organizações voltadas para a defesa do ser humano; fazia pouco caso da saúde; somente tinha olhos para as armas; dizia que povo liberto é povo armado (armas sem regulamentação, bem entendido, para alguns, os amigos, embora o discurso pareça dirigir-se a todos). É isso que queremos? A quem interessa a crítica, sem parâmetros: aos golpistas?

Necessário vigiar os que foram eleitos. Isto é certo e é próprio da Democracia, fundamento e legitimidade do Estado democraticamente constituído.

Vigilância sempre, porque o poder exerce encantamento e aqueles que conquistam o poder tendem a se divorciarem rápido dos ideais, se e quando, estes, efetivamente existiram.

Vigilância sempre, para não fazerem bobagens pequenas (como, por exemplo, por uma estrela vermelha nos jardins do planalto ou pendurar uma camisa da seleção brasileira ou do time de preferência em algum mastro oficial –como se fossem propriedades particulares– ou dar cargo a mulheres de governadores e parlamentares eleitos do partido (parece que alguns já o fizeram); favorecer com cargos e comendas, amigos e parentes, como já aconteceu; não estamos devidamente vacinados contra essa prática. Não se pode errar no mínimo ético. Ou, então, grandes bobagens –bobagem é uma forma leve de referência aos desastres políticos (como mudar o rumo das instituições, para favorecer apenas o pensamento dos que estão no poder e perpetuar o domínio; armar as forças para manutenção do poder; ter posse dos bens públicos para objetivos particulares; apropriar-se dos símbolos da República; ir à guerra para afirmação das próprias razões).

E o que dizer dos recursos bilionários para a base de parlamentares (agora, acho que está em R$3 bi), para apresentarem projetos de políticas públicas que nunca saem da eventual projeção, e servem como moeda de troca para uma possível governabilidade? Tem que ser assim?

É necessário vigiar e criticar sempre. Como é difícil a democracia!

Vigiar (e orar) sempre! Há uma certa religiosidade em querer fazer o certo.

De qualquer modo, é impressionante como o esquecimento é uma das nossas mais arraigadas características sociais!

Esquecemos a ditadura e a justificamos, e entendemos que ela foi necessária.

Esquecemos a fome e a justificamos, e entendemos que ela é da natureza dos menos favorecidos pela “sorte”.

Esquecemos as mazelas do voto em papel, que favorecia nichos eleitorais e as justificamos, principalmente quando o candidato que desejamos eleito, não teve sucesso.

Esquecemos as guerras, com suas sequelas de horrores, individuais e sociais, e as justificamos.

Esquecemos as falas e as ações ditatoriais, como as tentativas de fechar o Congresso, destituir os ministros do STF, invadir o Supremo em um veículo com poucas pessoas (manda quem pode; o presidente manda não dar vacina, e o ministro da saúde, obedece); entregar medalhas da República aos familiares, mulher e filhos, pelos serviços prestados, como a Ordem do Cruzeiro do Sul ou a medalha do Barão do Rio Branco, e as justificamos.

O caudilhismo, o caciquismo, sinônimos para uma mesma doença, está no DNA dos países da América Latina: dominar, dominar o povo pela força; dominar o povo pela imagem e pelos bustos e estátuas; dominar o povo pela mitologia (os mitos), os deuses; dominar o povo pela vontade individual, sem o mínimo raciocínio coletivo; dominar o povo pela “canetada”, dominar o povo pelos emblemas, dominar o povo pelo chicote; dominar pelo berrante, como a conduzir o gado humano; dominar o povo pela força; dominar o povo pela ignorância, não prestigiando as escolas e os professores; dominar, dominar, sem atender para as necessidades sociais. E, com isso, passamos a ver beleza na vontade férrea de poucos, na obediência cega de muitos; admirados, ajoelhados e pedintes de um olhar do poder, inconscientemente elegendo para os altares particulares a personalidade midiática do momento.

É querer muito o avanço social e tecnológico para todos, independentemente de raça, religião, partido político, sexo, filosofia, opção sexual?

Só palavras e discursos resolvem?

Uns nasceram para servir e outros para mandar? É isso?

Queremos democracia plena, verdadeira, transparente: nenhum ser humano é inferior a outro; o que há, são os malandros –na ampla expressão do termo– que buscam vantagens pessoais e inferiorizam os demais. Possibilitar a aquisição de conhecimento é um perigo para os que dominam. Fazer com que o outro se creia inferior é a medida natural, às vezes na vida empresarial, e, quase sempre, na vida pública.

A quem interessa o discurso contrário aos direitos humanos, seguido de exemplos carregados na tinta, de assaltos e mortes? (Morte aos que assaltam e matam). É preciso combater o crime, mas também é necessário preveni-lo.

Por que é tão difícil entender que a escola salva e pode antever a existência do futuro bandido? Na concepção de muitos, não há jeito (pau que nasce torto morre torto –teoria lombrosiana?), mas, se isso for uma verdade, com a escola, o número de desajustados, é de se presumir, será bem menor, e para estes, em uma sociedade organizada e de progresso científico, poderá haver tratamento.

Por que criar marginalizados?

Não é lógico entender que o marginalizado de hoje é o revoltado de amanhã?

A quem interessam as armas? O ditador da Coreia do Norte fez há poucos dias uma exibição de seu armamento nuclear!

Os ditadores são previsíveis! O sofrimento é previsível! A ganância é previsível! No entanto, continuamos de olhos fechados, achando que tudo é natural!

Será que somos lombrosianos?