A notícia de
que José Dirceu encaminhou à OEA um pedido para que seja analisada a suposta
violação de seus direitos no julgamento do mensalão nos faz refletir sobre o
que isso realmente pode significar do ponto de vista prático.A Organização dos
Estados Americanos, sediada em Washington (EUA), possui um sistema de monitoramento
e controle da aplicação dos diversos acordos internacionais firmados para a
proteção dos direitos humanos. Isso significa que, uma vez que um país das
Américas viole um desses acordos, a OEA pode se manifestar e eventualmente até
determinar que esse Estado tome alguma medida para cessar ou reparar a
violação.
Naturalmente,
isso se dá com aqueles Estados que, além de serem partes da OEA, aceitem
expressamente os acordos internacionais firmados e ainda concordem com o
julgamento de casos de eventuais violações perante a Corte Interamericana de
Direitos Humanos. O Brasil enquadra-se em todas estas situações e pode ser,
como já foi algumas vezes, julgado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
No entanto, o
acesso a esse tribunal internacional é restrito e, basicamente, uma reclamação feita
por qualquer pessoa (José Dirceu inclusive) não pode ser diretamente enviada a
ela, mas sim a um órgão, a Comissão Interamericana, que analisa previamente os
casos e somente envia à Corte para julgamento aqueles que entende serem de real
violação dos direitos humanos. A reclamação de Dirceu foi enviada a essa
Comissão alegando atentado ao chamado “duplo grau de jurisdição”, isto é,
direito de recorrer de uma decisão judicial a um tribunal ou corte superior.
Este direito está expresso na Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto
de San José da Costa Rica, datado de 1969, acordo ao qual o Brasil
expressamente manifestou concordância juntamente com vários outros tratados
internacionais desde a redemocratização do País.
Em geral o
procedimento na Comissão dura de alguns meses a alguns anos, dependendo de como
as tratativas se dão. É que a Comissão primeiramente solicita informações ao
Estado sobre a suposta violação, depois tenta uma conciliação entre as partes,
efetua algumas recomendações ao Estado e, somente após isso, caso não fique
satisfeita com as providências tomadas pelo Estado, encaminha o caso,
finalmente, à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Já a etapa de julgamento
na Corte, que já foi durou em média 40 meses na década de 1990, tem levado em
torno de 20 meses nos últimos anos.. Durante esse tempo, pouco ou nada muda na
situação do cumprimento da pena de Dirceu no Brasil.
Caso seja
realmente analisado pela Corte da OEA, a decisão pode seguir por dois caminhos
possíveis. Em 2009 a Venezuela foi condenada justamente pela falta de direito
ao recurso judicial. Este caso é emblemático e pode sim ser usado como
precedente para entender que no caso do mensalão houve violação ao direito de
duplo grau de jurisdição. Por outro lado, o caso do mensalão foi julgado pela
instância competente, ainda que a mais alta, impossibilitando por isso mesmo o recurso.
A inexistência de tribunal superior ao STF seria, neste caso, justificativa
suficiente para a não violação do que está determinado na Convenção. Vale observar
que na Convenção Europeia de Direitos Humanos, acordo homólogo à nossa Convenção,
há expressamente a ressalva de que a garantia ao duplo grau de jurisdição não
se aplica quando o julgamento é feito diretamente pelo mais alto tribunal do país.
Parece ser uma solução razoável, mas há que se cuidar para evitar um retrocesso
nos direitos e garantias judiciais tão arduamente conquistados pelos cidadãos
em países americanos nos quais a democracia e a independência dos poderes nem
sempre é constante.
É importante
observar que, seja qual for a decisão da Corte, esta não será uma revisão do
que foi decidido pelo STF. A Corte no máximo pode determinar que Dirceu teria
direito a um recurso da decisão, solicitando que o Brasil garantisse isso, mas
não determinaria que a decisão do STF no julgamento foi incorreta ou deveria
ser outra. Eventual novo julgamento nesta hipótese seria inclusive feito pelo
próprio STF.
Talvez a
melhor coisa que se possa extrair disso tudo seja sobre a atual fórmula do foro
privilegiado de autoridades, motivo pelo qual afinal o caso foi parar
diretamente no STF. Seria salutar um exercício de readequação dos casos em que
deveria existir o “direito” de autoridades serem diretamente julgadas pelo mais
alto tribunal do país. Afinal, se Dirceu e demais condenados fossem
inocentados, igualmente ninguém poderia recorrer dessa decisão.
(publicado originalmente no Estadão Noite de 15 de maio de 2014.)
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