domingo, maio 17, 2015

O direito à deriva


A notícia de que a Indonésia rebocou para o alto-mar embarcações com refugiados, retirando-os de seu mar territorial e abandonando-os, é daquelas que provam que nunca vimos de tudo nesta vida. Milhares de pessoas têm tentado ingressar em países europeus ou asiáticos, fugindo de perseguições brutais (por motivos nacionais ou religiosos) e situações de pobreza extremada. Nos últimos dias a imagem dos barcos de traficantes de pessoas tem sido a tônica, sempre mostrando embarcações abarrotadas de pessoas à míngua. As privações pelas quais passam, especialmente a falta de água e comida, são tenebrosas.

Os países tentam evitar o ingresso dessa população empobrecida, à qual costuma-se denominar como formada por “migrantes” ou “imigrantes”, levando a uma conotação algo pejorativa (ainda que essas palavras, por si mesmas, não tenham tal atributo). Não se costuma usar “imigrante” para, por exemplo, denominar um alto executivo estrangeiro recém chegado para trabalhar numa sucursal de sua empresa. Tampouco para um chef de cozinha que resolva mudar definitivamente para outro país, onde abre um restaurante de sucesso (este último com certeza será chamado de “radicado” no país que escolheu viver, isto é, resolveu fincar raízes noutro país). O fato dessa população ser objeto de tráfico de pessoas apenas colabora para essa impressão negativa.

Noves fora essa questão semântica, que acaba por turvar um pouco nosso discernimento, há a questão da proteção dos direitos humanos, outro tema que dá margem a interpretações distorcidas na busca de invalidar a ideia de que os indivíduos têm direitos humanos apenas por serem humanos. Não cabe aqui apresentar uma resposta a esta questão. Tomado como princípio que sim, os indivíduos todos têm direitos apenas por serem humanos, e que fronteiras nacionais são importantíssimas mas não mais que os direitos básicos dos seres humanos, está demonstrada que a entrada dessa população deve ser autorizada, por um simples critério de humanidade. A criação da ONU e outras tantas organizações internacionais serve também para isso: auxiliar a gerenciar (e financiar na medida do possível) estas situações, ainda que a situação econômica mundial não seja a mais próspera. Uma vez acolhida a população, à qual o direito corretamente denomina como refugiados, não imigrantes, até porque deles não há exatamente uma escolha para onde ir, mas um lugar de onde fugir, o Estado acolhedor pode solicitar às demais nações, diretamente ou via organizações internacionais, um trabalho de coordenação para a melhor proteção e eventual distribuição dessa população por outras nações.

São vários os tratados e protocolos internacionais a regular a situação dos refugiados, buscando sempre uma forma de acolhimento e proteção básica. Naturalmente, não se trata de permitir o ingresso desordenado de pessoas a quaisquer países, mas de balancear o direito dos Estados a controlar suas fronteiras com a proteção mínima que deve ser dada a quem está em situação de extrema pobreza ou perseguição. Isso tudo, claro, sem levar-se em conta o motivo que gerou a perseguição (muitas vezes guerras civis direta ou indiretamente financiadas pelas nações mais ricas).

No entanto, ao rebocar as embarcações para o alto-mar, a Indonésia “resolve” o problema de receber essas pessoas, dando as costas não apenas a elas mas também às outras nações. Naturalmente não se pode obrigar um país a acolher quem quer que seja, mas abandonar seres humanos à própria sorte, literalmente à deriva, além de inacreditável definitivamente não pode ser aceito como a solução mais adequada.

Publicado originalmente no Estadão Noite de 15 de maio de 2015.

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