Carlos Roberto Husek
Professor de Direito Internacional da
PUC/SP e co-cordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e
Privado.
A serenidade está no mesmo patamar,
nos dias de hoje, das ideias fantásticas, como a da mula sem cabeça, a dos
duendes e a das bruxas. É algo que, quando acontece, foge ao cotidiano e se
insere dentre os fatos que nos deixam boquiabertos, olhos arregalados,
paralisados dos pés à cabeça.
Talvez, a atitude serena venha de
algum “moralista”, - entre aspas mesmo - porquanto o moralismo é algo impensado
nas sociedades modernas; uma das palavras que está perdendo o seu significado, para
registrar-se como uma mancha, uma daquelas marcas que se imprimem no gado para
distingui-lo dentre os demais; mas, se para o gado a distinção pode ser boa em
virtude de uma determinada raça ou de um determinado proprietário, no ser
humano é uma pecha, um defeito gravíssimo. É quase igual ao entendimento sobre
as palavras “equilíbrio”, misericórdia”, “bom senso”, “igualdade de
tratamento”, “sentimento democrático” e outras expressões, que estão
desgastadas de seus significados originais.
Quem quiser viver e sobreviver,
política e socialmente – não digo economicamente, porque nesta área a conexão
moderna com o significado dessas palavras, não com o seu significante, é total
– deve fugir das acepções anteriormente consagradas.
Ora, ver-se-ia como um monge, um
frágil e desprezível sonhador, um ingênuo, cuja ingenuidade – espera-se – com o
tempo diminua e o faça cada vez mais partícipe do mundo real.
Sonhar, afinal, é coisa para
criancinhas – adolescentes, não mais – ou para incuráveis e raros românticos,
marginalizados, que se contentam em recolher dos lixos as sobras da
civilização, para continuarem, minimamente dignos do momento, ainda que “a
latere” das relações sociais.
Enfim, “moralista” é algo muito ruim
e que pode condenar o infrator ao desterro eterno, ao cadafalso escuro, à jaula
do circo de horrores que exibe os animais em extinção. Bobbio adverte: “Se
desejares silenciar o cidadão que protesta e ainda tem capacidade de se
indignar, digas que ele não passa de um moralista. É um expediente fulminante.
Tivemos inúmeras ocasiões para constatar, nos últimos anos, que quem quer que
tenha criticado a corrupção geral, o mal uso do poder econômico ou político,
foi obrigado a levantar as mãos e dizer: ´Faço isso não por moralismo`. Como se
precisasse deixar bem claro que não deveria ter nenhum contato com aquela
gente, geralmente levada em pouquíssima conta.”[1]
É uma questão planetária, uma
conjunção de astros, a sobreposição de Saturno e Júpiter, que põe em pandemia a
razoabilidade: preferível ser qualificado como corrupto, por exemplo, ou como
machão, ou guerreiro, do que de sensato.
A sensatez é a virtude dos fracos e a
serenidade seu instrumento de manifestação. O diabo nos livre deles, e Deus que
se contente em contemplar o eventual erro na criação, porque, se não é de
agora, sempre fomos assim. Todavia, sobra a indagação: para quem e qual a
necessidade de justificar ações e falas, que poderiam ser tidas como indignas,
se a prevalência é da sordidez? Estes, os sórdidos, sempre se justificam.
Talvez, existam caminhos ainda a serem explorados, pelos crédulos,
disciplinados, tranquilos e ponderados! Como fazê-lo? Ainda que,
particularmente, não nos enquadremos em tais referências, e “faço isso, não por
modéstia ou moralismo”, como provocar a reserva moral, aparentemente conformada
e coibida, para um despertar sobre os acontecimentos?
Dificílima a situação!
É um magma que está na base de um
vulcão, fervilhando nos confins da terra, mas sem força para explodir, o que
algum dia acontecerá, com resultados desastrosos, escorrendo pelas encostas e
triturando tudo o que se encontra pela frente, porque a força da indignação não
pode ser menos do que a dos atos atrozes de infâmia e maldade, e não pode ser
menor que a tristeza e a incompreensão de anos e anos de ostracismo dos
direitos e da possibilidade de inteirar-se uma nação, una com o que se supõe
ser o seu grande destino.
“Na cordilheira altíssima dos Andes
Os chimborazos solitários, grandes
Ardem naquelas regiões.
Ruge embalde e fumega a solfatera...
É dos lábios sangrentos da cratera
Que a avalanche vacila aos furacões.
A escória rubra com os geleiros
brancos
Misturados resvalam pelos flancos
Dos ombros friorentos do vulcão...
.............................................................
Assim, Poeta, é tua vida imensa,
Cerca-te o gelo, a morte, a
indiferença...
E são lavas lá dentro o coração.[2]
“Veritas filia temporis”. A verdade é
filha do tempo, bem sei, mas até quando vamos esperar que o país adormecido
acorde tranquilo e sereno para uma era de paz e progresso? Não é a guerra que
queremos, mas a suprema indignação, divulgada e anunciada em alto som. É o movimento
pacifista, dos que almejam verdadeira e profunda MUDANÇA.
[1] Bobbio, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais.
Editora Unesp, 2ª. ed. p. 30.
[2] Alves, Castro. Obras Completas. A meu irão Guilherme de Castro
Alves, Curralinho, julho de 1870, Editora Nova Aguilar S.A, 1997, p. 196.
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