Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP - Oficina de Direito Internacional Público e Privado
A comemoração da consciência negra, para negros e brancos,
para a sociedade em geral, merece alguns destaques, não pela negritude em si e,
por certo, não o seria também pela branquitude, em contrariedade. Os destaques
são pela inteligência, pela humanidade, pelo caminhar social de vultos – pouco importando
a cor da pele, em princípio – que sulcam estradas, constroem pontes, erguem
edifícios, e por vezes desaparecem na poeira do tempo. Todavia é importante,
sob essa perspectiva, evidenciar o negro.
O que vemos é o sofrimento de grande parte dessa população,
senão o sofrimento do dia a dia, em vista das condições precárias de
alimentação, vestimenta, estudo, profissão, vida digna, mas também a desdita
dos que ousam alcançar algum lugar na sociedade, posto que além dos problemas
intelectuais e administrativos, em face dos que não enxergam a igualdade
humana, como seria inteligentemente razoável, devem superar mais obstáculos
para divulgação do pensamento e da palavra.
Podíamos enfileirar os nomes da nossa história, em todos os
campos da atividade humana, desde Machado de Assis, passando por Cruz e Sousa,
Aleijadinho, Carolina Maria de Jesus, Cartola, Chica da Silva, Chiquinha
Gonzaga, José do Patrocínio, Lima Barreto, Mário de Andrade, Abdias Nascimento,
Milton Santos, Nilo Peçanha, Ruth de Souza, Edson Arantes do Nascimento (Pelé),
e milhares de outros, que foram em suas atividades se construindo e construindo
o Brasil, e fazem parte da nossa alma. Vamos nos fixar em homenagem a todos e a
nós, em um dos nomes aqui mencionados: Abdias Nascimento.
Nasceu em Franca, em 1914, interior de São Paulo, foi poeta,
escritor, teatrólogo, artista plástico, intelectual, deputado federal, senador,
doutor “honoris causa” pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pela
Universidade Federal da Bahia, ganhou prêmio da UNESCO, na categoria Direitos
Humanos e Cultura da Paz e pelo Shomburg Center for Research in Black Culture,
recebeu as honras do mérito Cultural e a Ordem do Rio Branco, no grau de
oficial, e após o seu falecimento, em 2013, o Senado criou a Comenda Senador
Abdias Nascimento (em um tempo em que a desconsideração social continua grande,
a criação de uma Comenda fica no triste patamar dos emblemas e símbolos, sem
efetividade social concreta: quais foram os nomes que receberam a Comenda, e o
que fizeram? Cadê a divulgação e respectiva valorização?). Criar medalhas, comendas,
fazer discursos, homenagens, erguer bustos, e não transformar a sociedade, por
meio da educação e de exemplos é nada. Vale a mesmice de uma frase, que diz
tudo: “chover no molhado”.
Quisera que Abdias Nascimento e outros, já mencionados, frutificassem!
Dentre os seus escritos destacamos “O Genocídio do Negro
Brasileiro – processo de um racismo mascarado” (Editora Perspectiva), em que
trata da Escravidão e o Mito do Senhor Benevolente, a Exploração Sexual da
Mulher Africana, o Mito do Africano Livre, o Branqueamento da Raça, a
Discriminação e outros assuntos.
Neste livro de 218 páginas, em primoroso e corajoso estudo,
Abdias Nascimento denuncia a realidade: “Os menos enganados pelos vários
mitos tecidos em torno à escravidão no Brasil foram os africanos, que conheciam
na própria pele as influências ´mitigadoras` da Igreja Católica e as
´benevolências` do português. Desde o início da escravidão, os africanos
confrontaram a instituição, negando fatalmente a versão oficial de sua
docilidade ao regime, assim como sua hipotética aptidão natural para o trabalho
forçado. Eles recorreram a várias formas de protesto e recusa daquela condição
que lhes fora imposta, entre as quais se incluíam o suicídio, o crime, a fuga,
a insurreição, a revolta. O afrodescendente escravizado praticou, ainda, a
forma não violenta ou pacifista de manifestar sua inconformidade com o sistema.
Foi o mais triste e trágico tipo de rejeição – o banzo. O africano era afetado
por uma patética paralisação da vontade de viver, uma perda definitiva de toda
e qualquer esperança. Faltavam-lhe as energias, e assim ele, silencioso no seu
desespero crescente, ia morrendo aos poucos, se acabando lentamente.”[1]
O que mudou nos dias de hoje? Temos nos guetos de várias
cidades brasileiras, o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta – e
outras formas modernas – o sequestro, os grupos armados, as milícias, o tráfego
de armas e drogas, o domínio dos morros, novo poder, e a oposição ao Estado e o
banzo no abandono do vício, nas “ruas dos drogados”, sujos caminhantes, com
cobertores sobre a cabeça, o fumo entre os dentes, as picadas no braço, a
aspiração do pó, preenchendo os pulmões e o cérebro a falta de perspectiva e o
abandono marginal: a tristeza infinita que não conhece e não se reconhece, a si
mesma, inconsciente, e que vive por viver, somente dela saindo para reagir
violentamente, contra as regras estabelecidas. Morre cedo, pelo suicídio
indireto, assassinado, ou por mero abandono. E o Estado, este gigante
incompetente, produz apenas estatísticas. Não há horizonte possível. O Estado
não percebe ou não quer perceber o cerne do problema histórico e social, que o
sistema de cotas busca fragilmente melhorar.
O Estado só enxerga os bandidos, não vê os beneficiários do
sistema econômico e social implantado, direta ou indiretamente, por aqueles que
nasceram só para usufruir do mundo, ultrapassar obstáculos acadêmicos e exercer
nicho do poder social, como tantos amigos, e como nós que aqui escrevemos.
Mudar alguma coisa significaria abrir mão de muitas benesses
e pensar no próximo. Para o indivíduo, fazer isso é quase impossível, para a
coletividade, dependeria de uma consciência coletiva pouco provável, mas o Estado
poderia buscar o bem comum, com suas normas e atos administrativos. Não
poderia?
Onde estão os líderes e administradores? Sentados em suas
cadeiras a traçar com a ajuda de escritores (intelectuais missivistas a serviço
do nada), suas perorações de mudança e seus ditos históricos.
Direita e esquerda por vezes parecem irmãos siameses, unidos
pelo umbigo.
Embora branco estou, hoje, com um pouquinho de “banzo”!
[1]
Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo
mascarado. Perspectiva, 4ª. Edição, p. 70/71.
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