segunda-feira, janeiro 29, 2024

Viagem ensimesmada por Portugal

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.

 

Para os amigos da ODIP,

 

O andar pelas ruas é tudo. Ver as pessoas, os prédios, os automóveis, os pássaros, as árvores, e sentir que tudo é muito maior que a tecnologia e o algoritmo, e contém todos os segredos da vida e toda não-estudada matemática do universo, mas o computador e o celular se desfizeram do ser humano e seguem numa caminhada insana para o domínio do mundo. Só a interioridade nos salva!

Arremedos de versos em que arrisco alguns comentários...

 

 

Fernando Pessoa

 

Sem a loucura o que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?” (Da Mensagem)

 

A imaginação, a criatividade, o lugar incomum, as imagens não refletidas e esquadrinhadas, a surpresa ao se dobrar uma esquina:

- Como vai?

- Há quanto tempo!

- O tempo passa em anos, em séculos e é como se fosse ontem.

- Uma ruga a mais.

- Morremos ou desmaiamos?

- A esquina não foi dobrada. Apenas as calçadas de pedrinhas portuguesas, uma após outra, encaixadas e os velhinhos com suas bengalas vão esquecidos da vida.

 

Quão breve o tempo é a mais longa vida.” (Odes)

 

Viver um segundo pela eternidade.

 

Meu coração é um almirante louco

Que abandonou a profissão do mar.” (Ah, um soneto)

 

O oceano continua em vagas enormes de dez a doze metros, mesmo na cadeira do quarto.

 

Que angústia me enlaça?

Que amor não se explica?

É a vela que passa

Na noite que fica.” (Canção)

 

Temos uma paisagem e um horizonte contido nas dobras do cérebro.

 

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que lêem o que escreve.

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.” (Autopsicografia)

 

Metafísica na física do mundo.

 

Há metafísica bastante em não pensar em nada.” (O guardador de rebanhos)

 

Não pensar, olhar, sentir e ouvir os rumos do silêncio. Saímos do Direito Internacional? Mas o Direito é apenas uma criação! Entremos...

quarta-feira, janeiro 17, 2024

Migalhas Odipianas

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Como a razoabilidade não salva nenhum dos nossos governantes, aqui e acolá – Ditadura na Venezuela e na Rússia, um Israel não bíblico e cristão, uma Argentina incógnita e reacionária, um Equador em convulsão, o narcotráfico se expandindo cada vez mais, as mudanças climáticas extremas provocadas pelos governantes que só querem saber do lucro e do domínio e o uso indiscriminado e incentivado de armas (apesar das convenções internacionais contrárias) - amigos da ODIP, arrisco-me a postar algumas frases e versos, para começar o Ano e tirar a aspereza da política, da vida e do Direito internacional: quem quiser acreditar que o mundo pode ser melhor a começar pelo uso coerente das ideias e das palavras, eis aqui, um arremedo de receita.

 

 

Lutar com as palavras

É a luta mais vã

Entanto lutamos

Mal rompe a manhã.” (Drummond)

 

Sozinhando” (de sozinho – Mia Couto), olho a chuva fina riscando o tempo.

 

Não é segurando as asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. Foi assim que falou o Tio Aproximado. E depois partiu, engolido pelo escuro.” (Mia Couto em “Antes de nascer o mundo”)

 

ele, em dado momento se eclipsou” (Mia Couto em “Antes de nascer o mundo”)

 

- Lá andava fazendo o quê? Cavando buracos no vazio.” (Mia Couto em “Antes de nascer o mundo”)

 

E, então, duvidei: será que ele queria eternizar o instante? Ou usufruiu a felicidade de haver porta e de poder fechar atrás de si?” (Mia Couto em “Antes de nascer o mundo”)

 

Essa pupila está cheia de noite.” (Mia Couto em “Antes de nascer o mundo”)

 

Se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia. Não há nada mais simples. Tenho só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.” (Alberto Caeiro – um dos heterônimos de Pessoa)

 

Nenhuma palavra

alcança o mundo, eu sei.

Ainda assim, escrevo.” (Mia Couto – Poema da despedida)

 

Começo a reconhecer-me. Não existo. Sou um intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram.” (Álvaro de Campos – um dos heterônimos de Pessoa)

 

Se cada dia cai,

dentro de cada noite,

há um poço

onde a claridade está presa.

 

Há que sentar-se na beira

do poço da sombra

e pescar a lua caída

com paciência.” (Pablo Neruda – Cada dia cai)

 

E a tarde morre sonolenta e fria

Como morreste de saudade e mágoas

E a lua triste como a Nostalgia

Chora na branca quietação das águas.” (Edgar da Mata – A garça)

 

E quando vires esbatida e turva

Tremer a alvura dos cabelos meus

Irás pensando pelo seu caminho

Que essa pobre cabeça de velhinho

É um lenço branco te dizendo adeus!” (Guilherme de Almeida – sonetos)

 

Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

 

Meu verso é sangue. Volúpia ardente

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai gota a gota, do coração.

 

“E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca,

- Eu faço versos como quem morre.” Manuel Bandeira – Desencanto).

 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

muda-se o ser, muda-se a confiança;

todo o Mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades.

 

Continuamente temos novidades,

diferentes em tudo da esperança;

do mal ficam as mágoas na lembrança,

e do bem (se algum houve), as saudades.

 

O tempo cobre o chão de verde manto,

que já coberto foi de neve fria,

e, enfim, converte em choro o doce canto.

 

E, afora este mudar-se a cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não se muda já como soía.” (Soneto de Luiz de Camões)

 

Não conto nada na reta, escrevo sempre nas linhas tortas, como digo aliás num poema. Na minha poesia parece que tem muita coisa de fora, mas é tudo de dentro. Sou muito preparado em conflitos.” (Manoel de Barros – Pensamentos)

 

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português.

 

Amigos, estudiosos e sérios acadêmicos, nossa ODIP necessita, como tudo, de árvores, de luz, de água, de leveza. Só assim para entender em profundidade as desinteligências do mundo. O Direito é um caminho, a arte, a poesia e a ironia, outros caminhos. Podemos misturar tudo e ver no que vai dar!

 

terça-feira, janeiro 09, 2024

8.1.2023


 

Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

O título tem que ser este, simples, único, cabalístico, horrendo, golpista, draconiano, troglodita, rodeado de espíritos primitivos, corporificado por bestas-feras, incompreensível, de olhos sanguinolentos, espúrio, purulento, lúgubre, plúmbeo, jurássico, maligno, rançoso, rancoroso.

Data em que se associaram os mais comezinhos ingredientes antidemocráticos, populista, radicais, que fizeram de homens e mulheres (cidadãos?), animais que buscaram proclamar nova república, pelo tacape, pela arma, pelas pedras, pelos tijolos, pelos ferros, gritando palavras de ordem, de morte, de enforcamento. Um Brasil desconhecido – ou sempre existiu? – insano, psicopata, de instinto assassino.

E não se
trata da falsa argumentação de que devemos deixar de lado a polarização, esquerda ou direita. Não. Não há esquerda ou direita que justifique os fatos acontecidos.

A Direita ou a Esquerda?

A derrubada dos símbolos, das instituições, dos prédios, por meio violento, desinteligente, não é apanágio só dos reacionários e direitistas, a chamada esquerda, no passado, já fez assim, de algum modo. É o absurdo dos que entendem ter razão, sem qualquer juízo, sem qualquer equilíbrio, utilizando o povo como gado, como massa de manobra, desrespeitosamente.

Não discutiram ideias, só arreganharam os dentes como “pitbulls” enfurecidos e tresloucados. Dá para acreditar, minimamente, em seus argumentos?

E existem editoriais de jornais que afirmam que o processo jurídico de busca dos culpados e dos financiadores do lamentável evento deve ser esquecido! Esquecer como? E se tivessem vencido, destruindo os poderes do Estado? Estaríamos diante de uma ditadura inconsequente, com muitas mortes, sacrifícios, escravizações, enforcamentos, um subcomandante em cada Poder, obediente a um comando único, visionário e idolatrado; sem Justiça, –ou com juízes subservientes aos vencedores– substituindo a toga pela espada! Sem Parlamento – ou legisladores subservientes, prontos a aprovarem a disseminação das armas e a morte dos direitos individuais e coletivos -, e a criação de medalhas e cargos e loas e faixas e tapetes dourados e tronos para os donos do Poder!

Não discutiram ideias, não desfilaram argumentos, não tiveram qualquer diálogo, que pudesse influir em uma próxima eleição, porque não desejavam eleições: só queriam o Poder, destituir os eleitos, quebrar as regras, zombar das instituições.

Na lembrança do dia 8.1.2023, em Brasília, - presentes o Executivo, o Judiciário, o Legislativo - todos, absolutamente todos os governadores e políticos, deveriam comparecer, para demonstrar aos que pensam que o Brasil pode agir como uma republiqueta sul-americana (de esquerda ou de direita, tanto faz), que não há mais espaço para bravatas e palavras de ordem e gritos de revolução e gritos de golpe. Vamos entrar, de vez, na Era da Democracia, do diálogo e da inteligência.

A falta de afirmação dos valores democráticos e de dizer: estou presente para defender as instituições, é uma polarização indireta e que alimenta as polarizações diretas, tão criticadas.

Não se propõe apoiar o Presidente da República – Fulano de Tal -, mas a preservação das instituições, porque a pessoa que exerce ou venha a exercer o cargo de Presidente, como outros cargos no cenário nacional, tem que sentir que deve agir de acordo com a Constituição Federal, e não de acordo com os seus desejos particulares.

Falta “grandeza”, em geral, nos espíritos públicos.

Falta, no geral, a visão dos estadistas, que pensam no povo, e que representam o Estado.

Falta a nobreza daqueles que ao chegarem ao Poder cumprem uma missão pacificadora e de construção.

Não consigo entender pessoas do Direito polarizadas, quando se trata do cumprimento do sistema jurídico! As posições políticas sobre o mundo e a sociedade veem antes do estabelecimento da ordem jurídica, salvo se esta ordem é desordem ou é a ordem de um só – aí continuamos na política. Se a Democracia está estabelecida e existe o funcionamento das instituições, a visão político-administrativa, deve ser apenas uma forma de melhor administrar o Estado, por exemplo, mais presença do Estado nas coisas públicas, mais privatizações, mais transferências para o particular de nichos do poder, mais assunção do Estado em matéria de saúde, segurança e de ensino, mais prestígio às empresas, mais proteção aos trabalhadores, melhor distribuição de renda (tudo, porém, com vistas ao bem-comum): são visões possíveis, dentro de um Estado Democrático de Direito.

Enquanto as eleições, os partidos políticos, os políticos em geral se divorciarem do que a sociedade necessita, continuaremos a ser pequenos, um “gigante adormecido, numa terra liliputiana”.

Antes tivéssemos, simplesmente, em uma polarização de ideias; o que temos é um egoísmo das ideias; o outro não existe, os outros não existem. O povo... ora o povo, porque, como gostam de dizer, há os que nasceram para servir e há os que nasceram para mandar e usufruir.

Todos nascemos livres com iguais direitos.

Como é difícil a Democracia!

terça-feira, dezembro 26, 2023

Navegar é preciso, (sonhar é essencial), viver não é preciso

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Vamos a uma pequena história de coragem, aceitação, raça, persistência, de superação das agruras do tempo e do espaço, de amor, entrelaçada com os poemas que contabilizam a alma, individual e coletiva:

Dom Henrique cismou, queria porque queria, conquistar o Cabo Bojador, lugar inóspito, perigoso, por causa de uma grande restinga de pedra que dele sai ao mar mais de 4 ou cinco léguas, onde se perderam navios e vidas. Era inabitável, lá para os idos de 1400. Dom Henrique enviou 15 expedições e todas fracassaram; por último confiou a um dos seus mais fiéis escudeiros, em 1434, Gil Eanes, a missão de vencer o Bojador, e este retornou derrotado, mas Dom Henrique não desistiu e exigiu que Gil tentasse novamente – com perdas de vidas, de dinheiro, de equipamentos – e, depois de muita luta e de rotas diversificadas, foi conquistado. Daí nasceu o lema “navegar é preciso, viver não é preciso”[1]

Pergunto-me: Por que se luta tanto, às vezes por nada? Acho que não importa a causa, luta-se e pronto!

No poema Mensagem de Fernando Pessoa, há referência ao Bojador e à vida:

 

X – Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

...................................................

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor (grifos nossos)

Deus do mar, o perigo, e o abismo deu,

Mas nele é que estabeleceu o céu.

 

E na composição de Caetano Veloso:

 

“O barco!

Meu coração não aguenta

Tanta tormenta, alegria

Meu coração não contenta

O dia, o marco, meu coração

O porto, não!...

 

Navegar é preciso

Viver não é preciso (2x) (grifos nossos)

 

O barco!

Noite no teu, tão bonito

Sorriso solto perdido

Horizonte, madrugada

O riso, o arco da madrugada

O porto, nada!...

 

Navegar é preciso

Viver não é preciso (2x) (grifos nossos)

 

O barco!

O automóvel brilhante

O trilho solto, o barulho

Do meu dente em tua veia

O sangue, o charco, barulho lento

O porto, silêncio!...

 

Navegar é preciso

Viver não é preciso (6x) (grifos nossos)

 

Mais uma vez Pessoa em Tabacaria:

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” (grifos nossos)



[1] Bueno, Eduardo. A viagem do descobrimento. L&PM POCKET Editores, 2023, p. 87/88.

sexta-feira, dezembro 15, 2023

Ainda Maduro, ainda Essequibo, e outros

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A seriedade passa ao largo dos problemas modernos na vida privada e na vida pública. Dão-se loas somente ao capital, não como forma de melhorar a vida das comunidades e das pessoas, mas como alimentar a ganância do poder e do dinheiro, que em si é poder na vida particular, e quando vem casado com alguma espécie de força institucional, é poder na vida pública.

O que Maduro quer com Essequibo, reivindicar histórica e antropologicamente a propriedade do território que pertencia à Venezuela?

Não cremos, por vários motivos, deles, o principal: é que Maduro não tem formação intelectual para tanto e, durante o seu governo, adquirido pela morte de Hugo Chaves e pelas instruções enviadas pelo falecido, em espírito, ao seu pupilo, nunca se preocupou com este território, como objetivo governamental e parte intrínseca do povo venezuelano.

Então, qual é a proposta de Maduro?

Para a mídia é reassumir o que pertence à Venezuela; para o público interno é insuflar o orgulho nacional desgastado pelos imperialistas dominadores da América Latina; para ele, em especial, é manter-se no poder, de um país falido e arrasado por uma administração voltada para os próprios interesses hegemônicos de poder, com esquecimento do povo, e tomar posse – isto, sim - e mais objetivamente, da riqueza petrolífera e mineral que foi detectada no solo daquela região.

Ainda que por via transversa – por política de poder equivocada - se pudesse alcançar uma justiça histórica para o povo venezuelano, ainda assim, não tem muito sentido essa bravata de conquista territorial, que não mais se justificaria nos tempos jurídicos modernos. Claro, se não fosse a sede de conquista da Rússia sobre a Ucrânia, de Israel sobre o território palestino (independentemente do legítimo direito de defesa pelo ataque sofrido), da China sobre Formosa, e outros tantos territórios em disputa. Todavia, o princípio e a norma internacional não permitem que assim seja.

Não há força cogente aos órgãos internacionais, para impor aos Estados recalcitrantes, penas duras?

Entretanto, este não é o escopo do ordenamento jurídico internacional, que foi criado sobre uma perspectiva democrática, de diálogo e de respeito.

Em termos de Direito Internacional – difícil firmar a essência desse Direito para os leigos (que são quase todos os que fazem a política internacional) – temos um ordenamento jurídico posto a partir de 1945, com fundamento nos seguintes princípios: a) soberania dos Estados; b) não-intervenção de um Estado sobre os assuntos internos de outro Estado; c) prevalência dos direitos humanos; d) respeito aos acordos internacionais (pacta sunt servanda), que é sempre deixado de lado quando os interesses políticos, econômicos e de domínio envolvem alguns entes da comunidade internacional, e outros, que vão na mesma linha de uma sociedade internacional cooperativa e fraterna.

Claro está, que o atual sistema jurídico internacional tem falhas, mas quais sistemas jurídicos – mesmo nos Direitos internos – não têm falhas?

É que – e isso se explica à exaustão nas academias – a ordem jurídica interna é hierárquica, sancionadora, dominada pelo Estado, em relação à sociedade interna, com um corpo de leis, em sua essência rígido, enquanto a sociedade ou comunidade internacional é igualitária, horizontal, não-sancionadora, não-hierárquica, de cooperação, de soberania dos Estados, grandes ou pequenos (sob quaisquer pontos de vista: econômico, militar ou tecnológico).

Ocorre que as falhas apontadas pelos estudiosos – menos estudiosos e mais cegos – é a inexistência de um ordenamento nos moldes dos ordenamentos internos, daí chegarem à conclusão canhestra de que não é uma ordem. Uma das consequências desse pensamento é o de que o Direito Internacional é apenas política internacional, é apenas fato. Ora, se assim se apresenta - e podemos considerar em homenagem ao diálogo, ao estudo e à busca da verdade - não temos solução para o viver em paz, a não ser a solução das grandes potências, dos armamentos, do domínio, do orgulho nacionalista, da necessidade de conquista, que, fatalmente, nos porá, em algum momento, em meio a uma terceira guerra mundial.

Alguns, ironicamente, podem dizer que as guerras aí estão e a ONU e as organizações internacionais nada fazem. Em parte correta a acepção, e em parte míope, porque tais guerras são localizadas e representam focos de resistência a um sistema de direito que, embora não perfeito, se baseia em princípios que são bons para todos os povos, necessitando, é certo, de aprimoramentos essenciais para funcionar, de forma plena, nos séculos vindouros, como maior e efetiva promoção dos seres humanos e de suas organizações, reconhecendo-lhes direitos internacionais e responsabilidades internacionais, independentes dos Estados.

Chegou a hora de reconhecermos que os Estados são importantes sujeitos de Direito Internacional, mas não os únicos, e que essa realidade criativa e técnica (Estado como pessoa de Direito Internacional Público) é dominada por cabeças humanas, nem sempre voltadas para o bem. Enquanto isso não acontece, é fácil declarar a guerra, a invasão, o morticínio, a escravidão, jogando tudo sobre os ombros do Estado: aí diríamos: “o povo russo, o povo chinês, o povo judeu, o povo palestino”, como se tais povos se corporificassem no Estado, encarnando todas as virtudes e todos os vícios e defeitos dos que dirigem e lideram o Estado.

O povo russo tem uma tradição, dotes artísticos, revelou na literatura e na arte em geral, alguns gênios; o povo judeu tem sua história e suas ambições sociais, religiosas e filosóficas e, também, seus escritores e artistas; o povo chinês tem sua organização científica e tecnológica avançada em diversos campos; o povo palestino tem sua ambição de organização social e de Estado independente e de viver em paz. O que esses povos têm a haver com seus ambiciosos dominadores? Talvez a responsabilidade desses povos esteja em que em algum momento elevaram ao poder não os melhores indivíduos, mas os piores. Todavia, isso não os responsabiliza pelos atos de seus mandatários, porquanto não há uma relação intrínseca de vinculação jurídica afiançável, entre os povos e os dominadores, porque mesmo nos Estados democráticos, com eleições periódicas e livres, deve se levar em conta a educação, a economia, a cidadania, plenamente vivida e outros caracteres, que tornariam um povo senhor absoluto da sociedade em que vive.

Respeitar o Estado e a sociedade que lhe é subjacente é uma das tarefas do Direito Internacional. Fazer crer que os princípios e regras de Direito podem ser a salvação para as pessoas individualmente consideradas, para as pessoas consideradas em seus grupos, para os próprios grupos, para as coletividade, para as organizações e instituições criadas nas sociedade internas, para os Estados, mesmo considerando a fragmentação atual dos poderes dentro da sociedade uma sociedade pluralista, é o caminho do Direito Internacional –enquanto Direito, repleto de obstáculos, psicológicos, sociológicos e econômicos– não mais um Direito dos Estados, mas um Direito dos atores e sujeitos internacionais, com o reconhecimento de que o Estado é apenas um desses sujeitos.

É a única luz que temos no Direito e no Direito Internacional, a compreensão dessa simbiose, entre Estados, indivíduos, organizações estatais e não-estatais, e o cumprimento dos objetivos de segurança e paz internacionais. Não há saída, ou só restará o “salve-se quem puder”.

quinta-feira, dezembro 07, 2023

A Venezuela não decepciona

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

O caso não é simples, historicamente, mas temos a convicção de que o governo da Venezuela não age de acordo com os ditames internacionais:

1.     Essequibo é um território em disputa desde o final do séc. XIX.

2.     A Venezuela alega que o território lhe foi tirado em 1899, por uma sentença arbitral.

3.     A sentença arbitral é produto de um diálogo, e na verdade Mediação dos EUA, da Venezuela e do Reino Unido, que concordaram em respeitar o resultado da arbitragem internacional.

4.     A Guiana alcançou a independência do Reino Unido, desde 1966.

5.     O idioma falado, na parte reivindicada, é o inglês.

6.     Em 2015 houve declaração de ter sido encontrado petróleo na costa da Guiana, além da área possuir reservas de diamantes, ouro e bauxita.

 

O que se pode esperar de Maduro, o homem que na morte de Hugo Chaves – outro ditador - falou para o povo que tinha recebido o espírito do morto e este dissera como devia governar a Venezuela?

O que se pode esperar de um homem que fecha o Congresso, persegue os juízes da Suprema Corte e só pensa no poder?

O que se pode esperar de um ditador que compra armamentos da Rússia e se vangloria de seu domínio?

O que se pode esperar de alguém que à frente de um país da América Latina contraria os princípios e regras internacionais e deu razão a Putin na invasão da Ucrânia?

O Presidente Lula criticou a possibilidade de um conflito. É pouco, é muito pouco. Devíamos dizer que não apoiamos a invasão da Guiana pela Venezuela, e não só proteger o nosso território, como declarar, nosso inconformismo e dizer em alto e bom som, que Maduro não tem o nosso apoio, e se possível, ir em todas as frentes, política, diplomática, econômica, social, contrariando este absurdo geográfico-político de expansão do poder.

O histórico não justifica, pois a Espanha, por exemplo, poderia reivindicar o território da Venezuela, que antes era dela e Portugal reivindicar o território do Brasil, em igual argumentação, e todos os países colonialistas reivindicaram suas respectivas colônias. Todos os países do mundo estariam na berlinda das reivindicações históricas e sociológicas pelos ditadores de plantão.

O plebiscito feito na Venezuela, com o voto de apoio ao sonho de domínio do ditador, não tem nenhuma validade jurídica internacional. Os governos ditatoriais quando fracassam internamente, empunham a bandeira do nacionalismo e do orgulho, para sobreviver, isto aconteceu com Hitler na Alemanha, na Argentina com os generais da ocasião, dentre outros.

 É “uma bola de neve”: a Rússia invade a Ucrania, país soberano (não importam os motivos); Israel arrasa a faixa de Gaza, em um contra-ataque ao Hamas, (que não representa a Palestina) em represália à invasão territorial feita pela organização terrorista (que deve ser combatida), e em comando das ordens de um Primeiro-Ministro da direita radical. Claro que Israel tem o direito de se defender, mas teria o direito de atacar e matar? E a Palestina continua sem ser um país! Esta delimitação territorial, com respeito à soberania Palestina, seria a única solução possível para a paz, e para afastar a hegemonia do grupo terrorista, (o mundo internacional reconhece isto, porém, não tem força para impor a solução pacificadora, porque a ONU, dominada por interesses vários, se mantém apática). Interesses políticos e econômicos falam mais alto. E, embora todos os países civilizados, se posicionem contrários à Rússia, Putin apoia a guerra Israel X Hamas, em consonância com o princípio da defesa do Estado invadido! A soberania vale em um caso e não vale em outro?!

A China continental já faz movimentos para uma futura anexação da Ilha de Formosa. Os governantes querem cada vez mais poder!

É a primeira ameaça bélica na América do Sul, desde 1991, e a simples declaração do Brasil, de que “a América do Sul não precisa de confusão”, desconhece a integridade de um país soberano!

Não “é preciso que o bom senso prevaleça do lado da Venezuela e da Guiana” (outra declaração do governo brasileiro). É necessário e urgente que o bom senso e o respeito às regras internacionais prevaleçam do lado da Venezuela e não da Guiana, na iminência de ser invadida.

É claro que a posição do governo brasileiro deve ser política e diplomática, mas não podemos admitir a quebra dos princípios internacionais.

Vamos aqui fazer um referendo e declarar que o Paraguai e o Uruguai são nossos?

O Direito Internacional está posto contra a parede, ou temos Cortes Internacionais – Corte Internacional de Justiça, Tribunal Penal Internacional – ou temos a arbitragem e mediação internacionais e as instâncias diplomática, bem como a atuação da ONU e de vários organismos internacionais, firme na concretização dos princípios e regras internacionais, ou não temos nada, e o mundo será do mais forte.

segunda-feira, novembro 20, 2023

A Comemoração da Consciência Negra

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP - Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A comemoração da consciência negra, para negros e brancos, para a sociedade em geral, merece alguns destaques, não pela negritude em si e, por certo, não o seria também pela branquitude, em contrariedade. Os destaques são pela inteligência, pela humanidade, pelo caminhar social de vultos – pouco importando a cor da pele, em princípio – que sulcam estradas, constroem pontes, erguem edifícios, e por vezes desaparecem na poeira do tempo. Todavia é importante, sob essa perspectiva, evidenciar o negro.

O que vemos é o sofrimento de grande parte dessa população, senão o sofrimento do dia a dia, em vista das condições precárias de alimentação, vestimenta, estudo, profissão, vida digna, mas também a desdita dos que ousam alcançar algum lugar na sociedade, posto que além dos problemas intelectuais e administrativos, em face dos que não enxergam a igualdade humana, como seria inteligentemente razoável, devem superar mais obstáculos para divulgação do pensamento e da palavra.

Podíamos enfileirar os nomes da nossa história, em todos os campos da atividade humana, desde Machado de Assis, passando por Cruz e Sousa, Aleijadinho, Carolina Maria de Jesus, Cartola, Chica da Silva, Chiquinha Gonzaga, José do Patrocínio, Lima Barreto, Mário de Andrade, Abdias Nascimento, Milton Santos, Nilo Peçanha, Ruth de Souza, Edson Arantes do Nascimento (Pelé), e milhares de outros, que foram em suas atividades se construindo e construindo o Brasil, e fazem parte da nossa alma. Vamos nos fixar em homenagem a todos e a nós, em um dos nomes aqui mencionados: Abdias Nascimento.

Nasceu em Franca, em 1914, interior de São Paulo, foi poeta, escritor, teatrólogo, artista plástico, intelectual, deputado federal, senador, doutor “honoris causa” pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pela Universidade Federal da Bahia, ganhou prêmio da UNESCO, na categoria Direitos Humanos e Cultura da Paz e pelo Shomburg Center for Research in Black Culture, recebeu as honras do mérito Cultural e a Ordem do Rio Branco, no grau de oficial, e após o seu falecimento, em 2013, o Senado criou a Comenda Senador Abdias Nascimento (em um tempo em que a desconsideração social continua grande, a criação de uma Comenda fica no triste patamar dos emblemas e símbolos, sem efetividade social concreta: quais foram os nomes que receberam a Comenda, e o que fizeram? Cadê a divulgação e respectiva valorização?). Criar medalhas, comendas, fazer discursos, homenagens, erguer bustos, e não transformar a sociedade, por meio da educação e de exemplos é nada. Vale a mesmice de uma frase, que diz tudo: “chover no molhado”.

Quisera que Abdias Nascimento e outros, já mencionados, frutificassem!

Dentre os seus escritos destacamos “O Genocídio do Negro Brasileiro – processo de um racismo mascarado” (Editora Perspectiva), em que trata da Escravidão e o Mito do Senhor Benevolente, a Exploração Sexual da Mulher Africana, o Mito do Africano Livre, o Branqueamento da Raça, a Discriminação e outros assuntos.

Neste livro de 218 páginas, em primoroso e corajoso estudo, Abdias Nascimento denuncia a realidade: “Os menos enganados pelos vários mitos tecidos em torno à escravidão no Brasil foram os africanos, que conheciam na própria pele as influências ´mitigadoras` da Igreja Católica e as ´benevolências` do português. Desde o início da escravidão, os africanos confrontaram a instituição, negando fatalmente a versão oficial de sua docilidade ao regime, assim como sua hipotética aptidão natural para o trabalho forçado. Eles recorreram a várias formas de protesto e recusa daquela condição que lhes fora imposta, entre as quais se incluíam o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta. O afrodescendente escravizado praticou, ainda, a forma não violenta ou pacifista de manifestar sua inconformidade com o sistema. Foi o mais triste e trágico tipo de rejeição – o banzo. O africano era afetado por uma patética paralisação da vontade de viver, uma perda definitiva de toda e qualquer esperança. Faltavam-lhe as energias, e assim ele, silencioso no seu desespero crescente, ia morrendo aos poucos, se acabando lentamente.[1]

O que mudou nos dias de hoje? Temos nos guetos de várias cidades brasileiras, o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta – e outras formas modernas – o sequestro, os grupos armados, as milícias, o tráfego de armas e drogas, o domínio dos morros, novo poder, e a oposição ao Estado e o banzo no abandono do vício, nas “ruas dos drogados”, sujos caminhantes, com cobertores sobre a cabeça, o fumo entre os dentes, as picadas no braço, a aspiração do pó, preenchendo os pulmões e o cérebro a falta de perspectiva e o abandono marginal: a tristeza infinita que não conhece e não se reconhece, a si mesma, inconsciente, e que vive por viver, somente dela saindo para reagir violentamente, contra as regras estabelecidas. Morre cedo, pelo suicídio indireto, assassinado, ou por mero abandono. E o Estado, este gigante incompetente, produz apenas estatísticas. Não há horizonte possível. O Estado não percebe ou não quer perceber o cerne do problema histórico e social, que o sistema de cotas busca fragilmente melhorar.

O Estado só enxerga os bandidos, não vê os beneficiários do sistema econômico e social implantado, direta ou indiretamente, por aqueles que nasceram só para usufruir do mundo, ultrapassar obstáculos acadêmicos e exercer nicho do poder social, como tantos amigos, e como nós que aqui escrevemos.

Mudar alguma coisa significaria abrir mão de muitas benesses e pensar no próximo. Para o indivíduo, fazer isso é quase impossível, para a coletividade, dependeria de uma consciência coletiva pouco provável, mas o Estado poderia buscar o bem comum, com suas normas e atos administrativos. Não poderia?

Onde estão os líderes e administradores? Sentados em suas cadeiras a traçar com a ajuda de escritores (intelectuais missivistas a serviço do nada), suas perorações de mudança e seus ditos históricos.

Direita e esquerda por vezes parecem irmãos siameses, unidos pelo umbigo.

Embora branco estou, hoje, com um pouquinho de “banzo”!



[1] Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado. Perspectiva, 4ª. Edição, p. 70/71.

segunda-feira, setembro 11, 2023

Um Estado não corrupto

 

imagem oabsp

Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A corrupção do Estado e do agente do Estado, na corrupção total dos relacionamentos (esta expressão é nossa), é, segundo Fernando Calderón Manuel Castells, “um traço sistêmico da América Latina do século XXI”[1]. Em sua análise serve-se de dados da Transparência Internacional para explicar que países como Chile, Costa Rica e Uruguai apresentam nível baixo de corrupção, o que significaria que nos demais o nível de corrupção é maior. Interessante a avaliação que segue a esses dados, ao observar: O Chile teve a ditadura de Pinochet, que estabeleceu um Estado semipredador e que se apropriou de benefícios e recursos públicos, em benefício do ditador e de seus seguidores mas, como reação, a partir de 1990 teve restabelecida a Democracia e instaurada a institucionalidade na magistratura e o profissionalismo na administração pública.

O segredo da possível estabilidade pareceu estar na manutenção do mercado – este não poderia ser abandonado - centrado na exportação  e no prestígio aos direitos humanos, - que com Pinochet não existiam – aumento salarial acordado com os sindicatos e a criação de uma rede de segurança em educação – mais livros e professores, e não o contrário, a inserção tecnológica e digital, de textos sem conteúdo educacional válido, repleto de erros históricos, geográficos e filosóficos (como vimos, recentemente acontecer, sabe-se lá de onde foram tirados!), bem como política de saúde e de aposentadoria.[2]

Poderíamos ir por caminho similar, sem radicalismos ideológicos, mas consagrando – aí sim, de forma extremada – a Democracia, as eleições, a cultura, a diversidade de ideias, o ensino para a vida civil (entendemos que a vida militar, necessária e imprescindível para a defesa da nação, está dentro do propósito maior da sociedade civil), a ciência, o incentivo à pesquisa em todos os campos, a literatura e a todas as formas de arte e de esporte.

É inacreditável – permita-nos a dúvida do momento -  a chamada dança dos ministérios nos governos que se formam! Os ministros de um presidente devem auxiliá-lo nas áreas técnicas em que o chefe de executivo não tem obrigação de conhecer – basta ser ele o líder do governo -, como na educação, na economia, no trabalho, no esporte, na saúde, na indústria e comércio, nas relações exteriores e outras, e não serem, como hoje são, moedas de trocas para prestigiar partidos políticos e pessoas, que velada ou abertamente, possam ameaçar a votação de um projeto para o bem público, se não tiverem partes do poder (o Presidente da República, seja ele quem for, não pode ser refém de interesses menores). Onde se encontra a República nessa forma de agir? Onde está a preocupação com o povo, nisso?

Claro que o diálogo com todos os partidos e com todos os políticos é fundamental à medida do que efetivamente representam para a sociedade. É o que realmente acontece, na atualidade?

A corrupção é um caminho natural em tais questões: corrupção ampla, que leva em conta os nichos do poder, da influência, do mando predatório. E quem disse que o civil é errado pelos caminhos que toma na condução da coisa pública, e o que possui a legalidade do uso das armas e dos uniformes não erram, nos mesmos caminhos? A questão toda se insere na educação para a vida social? Todos podem serem corrompidos, se não tomarem cuidado com as próprias ações.

Tais considerações não importam em afastamento de nossa crença particular de que as instituições estão corretas e que aqueles que as ocupam são, em geral, dignos de as ocuparem. O Brasil é maior do que todos, e só haverá possibilidade de progresso enquanto acreditarmos na ordem jurídica posta, como ora posta, com os princípios inseridos na Lei Maior de 1988.

A falsa questão dos direitos humanos versus combate aos “bandidos e vagabundos” nos leva, no mínimo, a erros de percepção administrativa ou a corrupção política. Não se termina com a “bandidagem” matando; mata-se um grupo de bandidos e outros se criam na mesma proporção, e às vezes com mais força. Direitos humanos são de todas as pessoas e não de classes específicas; devem ser a espinha dorsal da sociedade, a base de seu Direito, a argamassa do seu edifício, a coluna de sua sustentação (aliás está na Constituição Federal). Boa parte dos chamados “bandidos” e drogados ou passadores de drogas, foram criados em condições injustas, sem oportunidade, sem ensino, sem família, sem emprego, sem comida. Há os que, apesar de terem tudo, se desviam do caminho, mas certamente não são a maioria do contingente dos marginalizados.

Por que não reconhecer que a nossa sociedade é essencialmente injusta e antidemocrática? Talvez, para manutenção do poder: os privilegiados, não querem dialogar nunca, só querem reprimir os que ameaçam, de algum modo seus refúgios. Os “bandidos” no fundo pensam de igual modo, querem seus retiros, seus remansos, suas edículas, seus nichos de domínio e para isso buscam assaltar, matar, obter coisas: transformam-se em comunidades paralelas, com os seus próprios poderes, Executivo (o líder manda), Legislativo (as regras criadas pelo grupo devem ser obedecidas, sob pena de morte) e Judiciário (o julgamento é por um tribunal “ad hoc”, com juízes formados pela ordem jurídica da facção). Estados paralelos, dentro do Estado oficial, tudo por causa da corrupção intrínseca de agentes estatais, que cegos não enxergam o mal que fazem.

Os “bandidos” são criados por nós, que depois sofremos e gritamos porque nos encontramos nas mãos deles!

Que tal começarmos a agir de acordo com a Constituição Federal, com as leis infraconstitucionais e, quando estivermos em algum lugar do poder, na família, na empresa, no Estado, praticarmos o bem; não há necessidade de que seja o bem de Cristo, ou do bem de Buda, ou de qualquer outro avatar iluminado, mas simplesmente o do bom senso: a liberdade de falar e de ouvir, de argumentar e de raciocinar, de viver individual e coletivamente. A simplicidade de respirar, olhar, viver!

A corrupção do Estado é a corrupção dos nossos valores; a corrupção de todos nós. Menos livros, menos professores, mais armas, mais dinheiro, mais medalhas, mais panegíricos aos que nos dominam e menos raciocínio e humildade; em assim sendo, dúvidas não existirão: continuaremos a ser apenas o país do futuro.

Quando virá?



[1] Castells, Fernando Calderón Manuel. A nova América latina, Zahar, 1ª. Edição, p.297.

[2] Ibidem, p. 298/299.