sexta-feira, janeiro 14, 2022

Em busca do sentido da vida

 



Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/Sp e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Público e Privado


Viktor E. Frankl, professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena e professor de Logoterapia na Universidade Internacional da Califórnia, viveu no campo de concentração de Auschwitz e conta no seu livro “Em busca de sentido” (Editora Vozes, 54ª. Edição), os horrores passados em tal lugar na Segunda Guerra Mundial, em que se perdeu total e completamente o sentido da vida.

Não se tem noção na atualidade, apesar dos relatos da guerra, o que os judeus verdadeiramente passaram, o que pode ser estendido mais recentemente aos iugoslavos (croatas, montenegrinos, sérvios e outros), que também viveram em campos de concentração, lá pelos anos de 1990.

Em outras palavras, o ser humano parece não melhorar e continua enfiado na sua própria caverna de convicções arraigadas, religiosas, ideológicas, filosóficas, como se recebesse tábuas de salvação para uma pequena parte da humanidade, aquela que professa iguais princípios e a mesma irracional fé.
Assim dizemos, porque o mundo continua à deriva, principalmente nos dias de hoje, em que os nazistas, quase nunca com esse nome, começam a dominar a política e os meios de comunicação.

Não será difícil concluir pela possibilidade de termos eventos que repitam as mesmas situações descritas no referido livro, se cada país e seu respectivo povo não atentarem para os caminhos traçados nas comunicações oficiais e oficiosas, principalmente pelo que está posto nas entrelinhas, nas palavras fantasiosas, nas frases de efeito que gritam pela liberdade individual no intuito de favorecerem os próprios desígnios de domínio coletivista.

Não é de estranhar que os que estudaram Direito e chegaram nos postos maiores da República possam justificar perseguições políticas e cooperar para enviar para as cadeias (masmorras modernas) os contrários ao regime instalado no poder.

Não é de estranhar que os que estudaram Medicina possam justificar medidas de saúde contrárias à maioria do povo, porque toda ciência fica a reboque das motivações do domínio político e de interesses econômicos escusos.

Não é de estranhar que a Diplomacia, apesar de oferecer estudos aprofundados de relacionamento entre as nações e de técnicas de aproximação dos contrários e de boa convivência, também possibilite que alguns poucos, mas que alcançam as posições de poder, fundamentem ações diversas que contradizem “in totum” o que aprenderam nos bancos da academia.

Não é de estranhar que os que se dedicam à Educação esqueçam a pedagogia e a psicologia educacional e disseminem visões estúpidas e diversificadas do próprio ser humano, concretizando as diferenças e exaltando opiniões de domínio de uma raça, de uma ideologia, de uma religião, de um sexo, e auxiliem em tais propósitos.

Não é de estranhar que os que dominam as ciências econômicas e deveriam se preocupar com a melhoria da vida, todavia, em nome de um bem genérico do povo, seus administrados, aceitem encher as “burras” do governo, com desvio do dinheiro público, e busquem a compra de votos e do favorecimento de classes específicas de trabalhadores e de órgãos pertencentes a Administração direta ou indireta, para a manutenção do grupo no poder.
Não é de estranhar que os que devem voltar seus olhos e seu raciocínio para a defesa do meio ambiente façam o possível para destruí-lo, em desproveito dos seres humanos que respiram, comem e vivem da preservação das florestas, da água e do ar.

Nada disso é de estranhar, se pensarmos que a humanidade pouco ou quase nada progrediu, em termos sociais, embora tecnologicamente tenha avançado nos laboratórios e nas máquinas.
Frankl descreve fatos que não se justificam aos olhos do mais simples dos seres humanos, e por óbvio, não se justificam (ou não deveriam ter qualquer justificativa) aos olhos daquele que dominam um campo do saber.

Enquanto ainda esperamos pelo chuveiro, experimentamos integralmente a nudez: agora nada mais temos senão o nosso corpo nua e crua[1]... (...) Assim como a maioria de seus companheiros, o prisioneiro está ´vestido` de farrapos tais, que a seu lado um espantalho teria ares de elegância. Entre as barracas, no campo de concentração, tanto mais se entra em contato com a lama. É justamente o recém-internado que costuma ser destacado para grupos de trabalho nos quais terá que se ocupar com a limpeza das latrinas, eliminação de excrementos etc. Quando esses são transportados sobre o terreno acidentado, geralmente não escapamos de levar uns respingos do líquido abjeto; qualquer gesto que revele uma tentativa de limpar o rosto, com certeza provocará uma bordoada do capo, que se irrita com a excessiva sensibilidade do trabalhador.”[2] ... (...) “...ao ver um menino de uns doze anos, para o qual não mais havia calçados no campo e que por isso fora obrigado a ficar por horas a fio de pés descalços na neve, prestando serviços externos durante o dia. Os dedos dos pés do menino estão crestados de frio e o médico do ambulatório arranca com a pinça os tocos necróticos e enegrecidos de suas articulações”[3]...(...)...um acaba de morrer...(...) Fico observando como um companheiro depois do outro se aproxima do cadáver ainda quente; um lhe surrupia o resto de batatas encardidas do almoço; outro verifica que os tamancos do cadáver ainda estão um pouco melhores que os seus próprios; um terceiro tira o paletó do morto; outro, afinal, ainda fica contente por surrupiar um barbante de verdade – imagine. Fico olhando apático. Finalmente dou-me um empurrão e me animo a convencer o ´enfermeiro` a levar o corpo para fora do barracão (um balcão de chão batido). Quando ele resolveu fazê-lo, pega o cadáver pelas pernas, roçando-o em direção ao estreito corredor entre as duas fileiras de tábuas à esquerda e à direita, sobre as quais estão deitados os cinquenta enfermos acometidos de febre, para então arrastá-lo pelo chão acidentado até chegar à porta do barracão. Dali sobe dois degraus para fora, em direção ao ar livre – o que já é um problema para nós, debilitados pela fome crônica. Sem o auxílio das mãos, sem nos puxarmos para cima segurando nos postes, todos nós, que já estamos há meses no campo, há muito não conseguimos mais levantar o próprio peso do corpo somente com a força das pernas, para vencer dois degraus de vinte centímetros. Agora o homem chega até lá com o cadáver. Com muito esforço ele se alça primeiro, depois o morto: primeiro as pernas, depois o tronco, finalmente o crânio, que dá lúgubres pancadas nos degraus. Logo em seguida é trazido o barril com a sopa, que é distribuída e avidamente servida. O meu lugar fica em frente à porta do outro lado da barraca, próximo da única janelinha, um pouco acima do solo. Minhas mãos geladas aconchegam-se à vasilha quente da sopa. Enquanto sorvo o seu conteúdo sofregamente, por acaso dou uma espiada para fora da janela. Lá está o cadáver recém-tirado do barracão, a fitar a janela de olhos esbugalhados. Há apenas duas horas eu estava conversando com esse companheiro.”[4]

O ser humano envolvido na política e no poder, por vezes, perde-se como pessoa, e o ser humano que sofre as consequências de estar no grupo dos perdedores também perde a qualidade de ser humano. O que passam a representar? Nada.

As árvores, os pássaros, os animais em geral parecem usufruir de algo a mais.

Não podemos chegar nisso de novo. É preciso pensar, pensar, pensar e não nos envolvermos em palavras de ordem. Muito equilíbrio e muita calma e o que precisamos, ou viraremos cadáveres putrefeitos ao lado da sopa servida ou, o que é pior, trogloditas insensíveis a determinar castigos para os que não seguem as ordens do poder, bem como a escolher os que devem morrer.

O mundo pode não ser para os fracos, mas também, não é para os idiotas.
 

[1] P.29
[2] P.36/37.
[3] P.36
[4] P.37/38


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