sexta-feira, março 25, 2022

Vamos falar um pouco sobre o conceito de Justiça na área internacional

 



Carlos Roberto Husek
Professor de Direito Internacional da PUC/SP
Um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


De há muito que venho entendendo que a Justiça na vida internacional, como sistema de julgamento de conflitos (Corte Internacional de Justiça), e ou apuração e julgamento de ações contrárias aos princípios e regras internacionais (Tribunal Penal Internacional), a exemplos, tende a trilhar caminhos parecidos com a maioria dos sistemas jurídicos internos dos Estados (corpo de julgadores independentes, como parte de um órgão que compõe a administração).

No caso do Brasil, que apontamos como um parâmetro, temos os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, cada qual com uma função principal definida: Executivo administra e executa as leis; Legislativo cria as leis; e, Judiciário julga os casos, de conformidade com as leis.

Além de funções, ditas secundárias, quando o Executivo faz a regra, (decretos, portarias, etc), atuando como se Legislativo fosse, e julga seus servidores, em processos administrativos, atuando como se Judiciário fosse; quando o Legislativo julga ( crimes de responsabilidade do Presidente da República e de Ministros), a exemplo do Judiciário, e quando administra a sua própria organização, fazendo cumprir as normas, como se fosse o Executivo; O Judiciário, por sua vez, cria as suas regras, estatutos, como se fosse um Legislativo e administra e executa as normas entre seus servidores e juízes, como se fosse um Executivo.

Tudo isso, diga-se, à grosso modo, porquanto no mundo de hoje todas essas atividades ficaram mais complexas e há dilatação, um entumecimento do Executivo, passando o Poder Legislativo a ser, quase um mero coadjuvante, daquele que governa.

O Judiciário, nos países que preservam o Estado Democrático de Direito, ainda conserva sua função original e não se deixa levar pelas necessidades do Legislativo ou do Executivo, buscando julgar com isenção, quando acionado.

De certo modo, a análise acima fica na concepção formal das ordens jurídicas, internas e internacional, entretanto, perpassa, tanto nos diversos Direitos internos, como no Direito Internacional, a ideia de justiça, como algo que deve ser concretizado nas sociedades internas e na comunidade internacional, e para a qual todos os órgãos cooperam, independentemente de serem compostos de juízes ou não.

E afora essas considerações, entendemos e reafirmamos, que a ideia de justiça (valor) não fica dentro dos palácios de justiça, e sim, permeia toda a sociedade internacional e suas instituições, motivo pelo qual se diz que tal ou qual ação de um estado ou de um líder é injusta.  

Hedley Bull no capítulo IV (Ordem Versus Justiça na Política Internacional), de seu livro “A Sociedade Anárquica”, faz algumas reflexões sobre a ideia de justiça (que é justo). “Em primeiro lugar, há a distinção entre o que tem sido chamado de justiça ´geral`, entendida como conduta virtuosa ou correta, e justiça ´particular`, compreendida como um tipo especial de conduta correta, entre outras possíveis. O termo ´justiça` é empregado, às vezes, com sentimento de ´moralidade` ou ´virtude`, como se a ação justa fosse simplesmente ação moralmente correta...(...) Na política mundial as exigências de justiça assumem muitas vezes essa forma. São demandas para a remoção de privilégios ou de discriminação, para igualdade na distribuição ou aplicação de direitos entre os fortes e os fracos, os grandes e os pequenos, os ricos e os pobres, os pretos e os brancos, os vitoriosos e os vencidos, as potências nucleares e as não-nucleares. É importante distinguir entre ´justiça`, neste sentido especial de igualdade de direitos e privilégios, e ´justiça` no sentido em que usamos o termo, com a acepção de ´moralidade`. Uma segunda distinção importante precisa ser feita entre a justiça ´substantiva` e a justiça ´formal`. A justiça substantiva é baseada no reconhecimento de regras atribuindo certos direitos e deveres específicos (políticos, sociais e econômicos) enquanto a justiça formal se baseia na aplicação dessas regras igualmente a pessoas em igual situação, independentemente do conteúdo substantivo de tais regras. A exigência de ´igualdade perante a lei`, segundo a qual as regras devem ser aplicadas de igual forma à mesma classe de pessoas reflete neste sentido a noção de ´justiça formal`...(...)  Uma terceira distinção é feita entre justiça aritmética`, no sentido de reconhecer iguais direitos e deveres, e a ´justiça proporcional`, em que direitos e deveres podem não ser iguais, mas são distribuídos de acordo com os objetivos em vista...(...) Como escreveu Aristóteles, ´há injustiça quando os iguais são tratados desigualmente e também quando os desiguais são tratados com igualdade`. O princípio enunciado por Marx ´de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade` incorpora uma preferência pela justiça ´proporcional`, em contraste com a aritmética...(...) Na política mundial certos deveres e direitos fundamentais, tais como o direito dos estados à independência e soberania e o dever de não interferir reciprocamente nos assuntos internos, considerados como de igual aplicação a todos os estados, são exemplos da ´justiça aritmética`, enquanto a doutrina de que , numa guerra ou represália, o emprego da força deve ser proporcional à ofensa ilustra a ideia de ´justiça proporcional`...(...) Uma quarta distinção, associada de perto à anterior, é a existente entre justiça ´comutativa´ ou recíproca e a justiça ´distributiva`, que busca o bem comum e o interesse da sociedade no seu conjunto. A justiça ´comutativa` consiste no reconhecimento de direitos e deveres mediante um processo de intercâmbio ou barganha, pelo qual indivíduos ou grupos admitem os direitos de outros de forma recíproca...(...) Em contraste a justiça ´distributiva` é alcançada não por um processo de barganha entre os membros individuais da sociedade em questão, mas pela decisão do conjunto da sociedade, à luz da consideração do seu bem ou interesse comum...(...) Atualmente, a política mundial é sobretudo um processo de conflito e cooperação entre estados que só têm a percepção rudimentar do bem comum com relação ao mundo em seu conjunto e é, portanto, o domínio principalmente de justiça ´comutativa´, e não de justiça ´distributiva`...(...) Todos os Estados sustentam que têm certos direitos e deveres que não são meramente legais, mas também morais. Afirmam que a sua política é justa porque é moralmente correta (´justiça geral`) e assim exigem igualdade de tratamento nas relações com outros estados (´justiça particular`). Pretendem ter o direito moral à soberania ou independência (´justiça substantiva`), que deve ser aplicado ou administrado igualmente em relação a todos os estados (´justiça formal`). Afirma ter o direito a igualdade de tratamento entre eles e os outros no acesso às oportunidades comerciais ou votação em assembleias internacionais (´justiça aritmética`), ao mesmo tempo em que insistem em que a sua contribuição financeira às organizações compostas de estados seja determinada em proporção ao produto nacional (´justiça proporcional`). Reconhecem os direitos de todos os tipos atribuídos aos demais estados, em troca de igual reconhecimento (´justiça comutativa`), mas podem também discordar, pelo menos retoricamente, com base na concepção do bem comum de uma comunidade regional ou mundial (´justiça distributiva`).[1]

Há alguma espécie de justiça, no confronto entre a Rússia e a Ucrânia? O que prevalece, a justiça geral, a particular, a substantiva, a formal, a aritmética, a proporcional, a comutativa e/ou a distributiva?

Temos que a Rússia não tem fundamento em nenhuma dessas espécies de justiça. Aposta no poder, como um direito, e nas suas aflições estratégicas e geopolíticas como um fundamento da ação militar. Enfim, não acredita no sistema, no direito e na justiça, salvo quando baseadas em suas próprias razões.

Em que deve se fiar a sociedade internacional? Apesar de algumas eventuais falhas históricas na concepção de um sistema pós-segunda grande guerra, vamos reiniciar, tudo de novo pela força, e pela imposição de valores particulares?

Muitos são os Estados soberanos do mundo, frágeis tecnológica, econômica e militarmente, que ficam na espera de um sistema justo. A justiça como valor vai funcionar?

 



[1]. Bull, Hedley. A sociedade anárquica. Imprensa Oficial do Estado, Editora Universidade Brasília. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Tradução Sérgio Bath, 2002, p.92 a 97.


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