segunda-feira, março 14, 2022

A verdade das guerras

 


Carlos Roberto Husek
Professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP-Oficina de Direito Internacional Público e Privado


Os governos despóticos buscam o domínio a qualquer custo, mesmo sob bandeiras díspares, ideologias divergentes, fundamentos filosóficos, mas diversos. O que, efetivamente interessa aos seus líderes é a força com que podem subjugar os povos. Querem seus bustos esculpidos em ouro e todas as homenagens possíveis e imagináveis, nem que para isso tenham de matar civis, velhos e crianças e estuprar as mulheres dos conquistados.


A guerra, quando efetivamente acontece, tem lógica própria, que foge a todo raciocínio que leve em conta o ser humano, porque o que importa é a invasão das terras, e com isso a expansão do poder.
Não há explicação jurídica e sim política, econômica, psicológica, amparadas quase sempre em desígnios personalíssimos de pessoas em posição de poder, alimentadas, o mais das vezes, por causas inconscientes e outras, por causas conscientes, mas baseadas por visões deturpadas da realidade; se assim não é, como explicar que os governos fujam da função primordial que deveria informá-los: o bem-estar da comunidade que dirigem?


Embora os teóricos justifiquem as guerras, o fazem com um olhar pura e simplesmente voltado para o uso da força e das estratégias, com o que imprimem um fascínio e um prazer similar (conclusões nossas, baseadas em Freud) a um impulso de origem sexual.


Alguns ensinamentos de Hedley Bull (graduado em Filosofia e Direito, professor em Oxford) são interessantes para compreender a situação atual, do ponto de vista da teoria das relações internacionais e da teoria da guerra: “A guerra é a violência organizada promovida pelas unidades políticas entre si(...) O que distingue a morte infligida ao inimigo durante a guerra do assassinato é o caráter do testemunho oficial, a responsabilidade simbólica da unidade política em nome da qual atua quem matou (...) Os estados soberanos têm procurado preservar para si o monopólio do emprego legítimo da violência(...) Precisamos diferenciar entre a guerra em sentido material, ou seja, hostilidade e violência efetivas, da guerra em sentido legal ou normativo, isto é a situação provocada pelo cumprimento de determinados critérios legais ou normativos, por exemplo no reconhecimento ou declaração feita pelas autoridades constituídas. Algumas vezes uma guerra no sentido material não corresponde à guerra no sentido legal(...) no moderno sistema de estados as funções da guerra podem ser consideradas a partir de três perspectivas: a do estado, a do sistema de estados e a da sociedade de estados. Do ponto de vista do estado, considerado individualmente, a guerra tem sido vista como um instrumento de política, um dos meios com os quais os objetivos do estado podem ser atingidos (...). Do ponto de vista do sistema internacional, o simples mecanismo ou campo de força representado pelo conjunto de estados em virtude de sua interação recíproca, a guerra aparece como determinante fundamental da forma assumida pelo sistema em qualquer tempo. É a guerra ou ameaça de guerra que ajudam a determinar a sobrevivência ou eliminação de certos estados (...) Do ponto de vista da sociedade internacional, ou seja, do ponto de vista das instituições, das regras e valores aceitos pelo sistema de estados em conjunto, a guerra apresenta duas faces, de um lado, ela é uma manifestação da desordem da sociedade internacional (...) De outro lado é (...) um meio que a sociedade internacional sente a necessidade de explorar para atingir os seus objetivos.[1]


Algumas considerações, em face dessa doutrina e o que acontece, em nossos dias, entre Rússia e Ucrânia: avaliamos que a guerra, em sentido material, no Leste europeu, não corresponde à guerra em sentido legal, porquanto a narrativa russa para a invasão, com base, em princípios do próprio Direito Internacional (autodefesa de um possível ataque dos países ocidentais e da OTAN ao território russo, unidade de povos, reconhecimento de regiões separatistas e etc.), embora narrativas juridicamente plausíveis, não passam de meros argumentos para a conquista de territórios e para a integração definitiva da Ucrânia à Rússia, com o efetivo desaparecimento daquele país como Estado soberano. Tal dedução vem em decorrência das palavras do próprio Presidente Putin, que afirmou em determinada comunicação à imprensa que a Ucrânia não existia. 

Portanto, trata-se de mera violência, guerra no sentido estritamente material, cujos fundamentos – existem, mas – não podem ser divulgados porque contrariariam a ordem jurídica internacional (agressão ao território de um Estado soberano, sem causa específica), tratando-se, no máximo, de uma espécie de guerra preventiva, para eliminar um mal futuro. Sob este aspecto, não custa lembrar que os Estados Unidos tiveram idêntica premissa para invadir o Iraque. A diferença é que, naquela ocasião, o argumento é que a humanidade corria perigo pela fabricação de armas químicas, bacteriológica – o que não restou provado – e agora, para a Rússia, a justificativa é de que a sua própria soberania estaria em perigo. Narrativas para explicar motivos não confessáveis ao mundo internacional. De qualquer modo, independentemente do passado, o ataque a uma soberania, não pode ser tolerado pela ordem internacional.


Tanto no caso russo, como no dos EUA, a guerra não passa de um instrumento de política de Estado. Repita-se: erros anteriores de falta de punição pelo sistema não fundamentam ações atuais. Todo Estado é soberano, e como tal deve ser respeitado na sua integralidade, pouco importando se frágil, econômica, militar ou tecnologicamente, ou se professa ideologia contrária aos Estados dominantes. Esta é a mensagem, creio, que o Direito, e não das razões históricas e sociológicas, busca firmar.


De qualquer modo, os casos – EUA e Rússia – não são idênticos, e não tiveram a mesma evolução, observando-se que, atualmente, há uma multidão de fugitivos da guerra, famintos e doentes, cruzando as fronteiras em fuga desesperada da sanha russa, sendo acolhidos pela maior parte dos países, incluindo aqueles da antiga “cortina de ferro”. O fato é que a ordem jurídica internacional, estabelecida a partir da Carta da ONU, com a plena anuência da própria Rússia, está sendo por ela violada.


O que deveria ser levado em conta são as vidas humanas, no entanto este essencial e indiscutível fator não entra no tabuleiro de considerações nas táticas de guerra, O ser humano vale menos que os tanques, armas, bombas, configurações do poder; é tão somente, uma peça para ser usada ou ultrapassada, no movimento das tropas.


Hitler e Stálin, nos primórdios da última grande guerra, apesar de lados opostos, se uniram na dizimação. É Anne Applebaum (jornalista e historiadora norte-americana) quem descreve: “O Leste Europeu, junto com a Ucrânia e os países bálticos, também foi o local da maior parte das matanças com motivações políticas ocorridas na Europa. ´Hitler e Stálin ascenderam ao poder em Berlim e em Moscou`, escreve Timothy Snyder em Terras de Sangue (Bloodlands, 2011), a história definitiva dos assassinatos em massa do período ´mas suas visões de transformação diziam respeito a todas as terras no espaço intermediário`. Stálin e Hitler compartilhavam o descaso pela própria noção de soberania nacional em relação a todas as nações do Leste Europeu e se empenharam conjuntamente para eliminar suas elites. Os alemães consideravam os eslavos sub-humanos, classificando-os não muito acima dos judeus, e nas terras entre Sachsenhausen e Babi Yar não hesitaram em ordenar assassinatos nas ruas, execuções públicas em massa ou a queima de povoados inteiros em vingança por um único nazista morto[2]


Sem dúvida, a guerra é uma manifestação da desordem internacional, e tal desajuste está merecendo da sociedade internacional e da base jurídica que a sustenta uma reação, que não significa – como tenta argumentar Putin (talvez, para futura ações) – uma declaração de guerra pela OTAN e pelos demais países; é apenas uma reação, possível e esperada, para coibir o avanço das tropas russas, no território de um Estado soberano. O que afasta o argumento de reconhecimento internacional da independência das cidades de Donestk e de Lugansk, em tese, possível, e a transformação destas em Estado soberano.


Estamos diante do imponderável, e só podemos confiar no eventual diálogo diplomático, que por natureza deve oferecer aos contendores alguma satisfação no que desejam, abrindo mão de eventuais vantagens ou direitos. Difícil, mas não impossível, vai depender da inteligência dos raciocínios em jogo, levando em conta reivindicações, resistências, os princípios e regras da ordem internacional, os anseios de cada povo e da boa vontade em construir um caminho viável. Caso contrário....


[1] Bull Hedley. A sociedade anárquica. Capítulo VIII, “A Guerra e a Ordem Internacional”, p.211/216, editora Universidade de Brasília, Imprensa Oficial, Coleção Clássicos IPRI, 2002. Este livro foi publicado originalmente em 1977. Tradução de Sérgio Bath.
[2] Applebaun, Anne. Cortina de Ferro – O esfacelamento do Leste Europeu, Editora Três Estrelas, 2017, p.44.


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