A guerra, quando efetivamente acontece, tem lógica própria,
que foge a todo raciocínio que leve em conta o ser humano, porque o que importa
é a invasão das terras, e com isso a expansão do poder.
Não há explicação jurídica e sim política, econômica,
psicológica, amparadas quase sempre em desígnios personalíssimos de pessoas em
posição de poder, alimentadas, o mais das vezes, por causas inconscientes e
outras, por causas conscientes, mas baseadas por visões deturpadas da realidade;
se assim não é, como explicar que os governos fujam da função primordial que
deveria informá-los: o bem-estar da comunidade que dirigem?
Embora os teóricos justifiquem as guerras, o fazem com um
olhar pura e simplesmente voltado para o uso da força e das estratégias, com o
que imprimem um fascínio e um prazer similar (conclusões nossas, baseadas em
Freud) a um impulso de origem sexual.
Alguns ensinamentos de Hedley Bull (graduado em Filosofia e
Direito, professor em Oxford) são interessantes para compreender a situação
atual, do ponto de vista da teoria das relações internacionais e da teoria da
guerra: “A guerra é a violência organizada promovida pelas unidades políticas
entre si(...) O que distingue a morte infligida ao inimigo durante a guerra do
assassinato é o caráter do testemunho oficial, a responsabilidade simbólica da
unidade política em nome da qual atua quem matou (...) Os estados soberanos têm
procurado preservar para si o monopólio do emprego legítimo da violência(...) Precisamos
diferenciar entre a guerra em sentido material, ou seja, hostilidade e
violência efetivas, da guerra em sentido legal ou normativo, isto é a situação
provocada pelo cumprimento de determinados critérios legais ou normativos, por
exemplo no reconhecimento ou declaração feita pelas autoridades constituídas.
Algumas vezes uma guerra no sentido material não corresponde à guerra no
sentido legal(...) no moderno sistema de estados as funções da guerra podem ser
consideradas a partir de três perspectivas: a do estado, a do sistema de
estados e a da sociedade de estados. Do ponto de vista do estado, considerado
individualmente, a guerra tem sido vista como um instrumento de política, um
dos meios com os quais os objetivos do estado podem ser atingidos (...). Do
ponto de vista do sistema internacional, o simples mecanismo ou campo de força
representado pelo conjunto de estados em virtude de sua interação recíproca, a
guerra aparece como determinante fundamental da forma assumida pelo sistema em
qualquer tempo. É a guerra ou ameaça de guerra que ajudam a determinar a
sobrevivência ou eliminação de certos estados (...) Do ponto de vista da
sociedade internacional, ou seja, do ponto de vista das instituições, das
regras e valores aceitos pelo sistema de estados em conjunto, a guerra
apresenta duas faces, de um lado, ela é uma manifestação da desordem da
sociedade internacional (...) De outro lado é (...) um meio que a sociedade
internacional sente a necessidade de explorar para atingir os seus objetivos.”[1]
Algumas considerações, em face dessa doutrina e o que
acontece, em nossos dias, entre Rússia e Ucrânia: avaliamos que a guerra, em
sentido material, no Leste europeu, não corresponde à guerra em sentido legal,
porquanto a narrativa russa para a invasão, com base, em princípios do próprio
Direito Internacional (autodefesa de um possível ataque dos países ocidentais e
da OTAN ao território russo, unidade de povos, reconhecimento de regiões
separatistas e etc.), embora narrativas juridicamente plausíveis, não passam de
meros argumentos para a conquista de territórios e para a integração definitiva
da Ucrânia à Rússia, com o efetivo desaparecimento daquele país como Estado
soberano. Tal dedução vem em decorrência das palavras do próprio Presidente
Putin, que afirmou em determinada comunicação à imprensa que a Ucrânia não
existia.
Portanto, trata-se de mera violência, guerra no sentido estritamente material, cujos fundamentos – existem, mas – não podem ser divulgados porque contrariariam a ordem jurídica internacional (agressão ao território de um Estado soberano, sem causa específica), tratando-se, no máximo, de uma espécie de guerra preventiva, para eliminar um mal futuro. Sob este aspecto, não custa lembrar que os Estados Unidos tiveram idêntica premissa para invadir o Iraque. A diferença é que, naquela ocasião, o argumento é que a humanidade corria perigo pela fabricação de armas químicas, bacteriológica – o que não restou provado – e agora, para a Rússia, a justificativa é de que a sua própria soberania estaria em perigo. Narrativas para explicar motivos não confessáveis ao mundo internacional. De qualquer modo, independentemente do passado, o ataque a uma soberania, não pode ser tolerado pela ordem internacional.
Tanto no caso russo, como no dos EUA, a guerra não passa de
um instrumento de política de Estado. Repita-se: erros anteriores de falta de
punição pelo sistema não fundamentam ações atuais. Todo Estado é soberano, e
como tal deve ser respeitado na sua integralidade, pouco importando se frágil,
econômica, militar ou tecnologicamente, ou se professa ideologia contrária aos
Estados dominantes. Esta é a mensagem, creio, que o Direito, e não das razões
históricas e sociológicas, busca firmar.
De qualquer modo, os casos – EUA e Rússia – não são
idênticos, e não tiveram a mesma evolução, observando-se que, atualmente, há
uma multidão de fugitivos da guerra, famintos e doentes, cruzando as fronteiras
em fuga desesperada da sanha russa, sendo acolhidos pela maior parte dos
países, incluindo aqueles da antiga “cortina de ferro”. O fato é que a ordem jurídica
internacional, estabelecida a partir da Carta da ONU, com a plena anuência da
própria Rússia, está sendo por ela violada.
O que deveria ser levado em conta são as vidas humanas, no
entanto este essencial e indiscutível fator não entra no tabuleiro de
considerações nas táticas de guerra, O ser humano vale menos que os tanques,
armas, bombas, configurações do poder; é tão somente, uma peça para ser usada
ou ultrapassada, no movimento das tropas.
Hitler e Stálin, nos primórdios da última grande guerra,
apesar de lados opostos, se uniram na dizimação. É Anne Applebaum (jornalista e
historiadora norte-americana) quem descreve: “O Leste Europeu, junto com a
Ucrânia e os países bálticos, também foi o local da maior parte das matanças
com motivações políticas ocorridas na Europa. ´Hitler e Stálin ascenderam ao
poder em Berlim e em Moscou`, escreve Timothy Snyder em Terras de Sangue
(Bloodlands, 2011), a história definitiva dos assassinatos em massa do período
´mas suas visões de transformação diziam respeito a todas as terras no espaço
intermediário`. Stálin e Hitler compartilhavam o descaso pela própria noção de
soberania nacional em relação a todas as nações do Leste Europeu e se
empenharam conjuntamente para eliminar suas elites. Os alemães consideravam os
eslavos sub-humanos, classificando-os não muito acima dos judeus, e nas terras
entre Sachsenhausen e Babi Yar não hesitaram em ordenar assassinatos nas ruas,
execuções públicas em massa ou a queima de povoados inteiros em vingança por um
único nazista morto”[2]
Sem dúvida, a guerra é uma manifestação da desordem
internacional, e tal desajuste está merecendo da sociedade internacional e da
base jurídica que a sustenta uma reação, que não significa – como tenta
argumentar Putin (talvez, para futura ações) – uma declaração de guerra pela
OTAN e pelos demais países; é apenas uma reação, possível e esperada, para
coibir o avanço das tropas russas, no território de um Estado soberano. O que
afasta o argumento de reconhecimento internacional da independência das cidades
de Donestk e de Lugansk, em tese, possível, e a transformação destas em Estado
soberano.
Estamos diante do imponderável, e só podemos confiar no
eventual diálogo diplomático, que por natureza deve oferecer aos contendores
alguma satisfação no que desejam, abrindo mão de eventuais vantagens ou
direitos. Difícil, mas não impossível, vai depender da inteligência dos
raciocínios em jogo, levando em conta reivindicações, resistências, os
princípios e regras da ordem internacional, os anseios de cada povo e da boa
vontade em construir um caminho viável. Caso contrário....
[1] Bull Hedley. A sociedade anárquica. Capítulo VIII, “A Guerra e a Ordem Internacional”, p.211/216, editora Universidade de Brasília, Imprensa Oficial, Coleção Clássicos IPRI, 2002. Este livro foi publicado originalmente em 1977. Tradução de Sérgio Bath.
[2] Applebaun, Anne. Cortina de Ferro – O esfacelamento do Leste Europeu, Editora Três Estrelas, 2017, p.44.
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