terça-feira, janeiro 17, 2023

Sob o domínio do ódio – Nelson Rodrigues

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

O título foi tirado do livro “A poeira da glória” – uma (inesperada) história da literatura brasileira, de Martins Vasques da Cunha.

É impressionante como fatos do passado ressurgem na atualidade, com igual natureza, com a mesma têmpera, com o mesmo significado. Mudam-se os personagens, ora reencarnados em outros. Há, efetivamente, algumas diferenças de grau, não de substância: não escravizamos mais os negros, como antigamente, nem os chicoteamos ou amarramos no pelourinho para que, após vergastados, e com o sal espalhado pelas feridas, queimando ao sol, sofressem até o desmaio ou a morte – não fazemos mais isso -, pois agora são bem tratados, com certa estimação!

Não confinamos as mulheres nas cozinhas e nas poltronas fazendo tricô, acompanhadas de suas mucamas, com plena liberdade de irem do quarto à sala e desta à cozinha – não fazemos mais isso -, pois agora são bem tratadas, só as matamos quando saem foram da linha previamente traçada, para os seus próprios benefícios. No entanto, têm ampla liberdade de servir e de andar e de trabalhar, salvo se agirem por conta própria, crentes que a sociedade poder viver por e com elas! É certo que algumas pensam como homens, com seus homens, e aí se sobressaem porque seguem o melhor caminho. Há progresso!

E os nossos dirigentes, então! E nossas forças da República, então! Que progresso! Não há mais a cerimônia do beija mão –não fazemos mais isso-, no máximo vamos às redes sociais, acobertados pelos poderosos, para dizer que todos são bonitos, judiados, injustiçados, e que devem continuar mandando, e que o Judiciário é um vilão, e que o Parlamento é um vilão, e que os que pensam de forma contrária são vilões, mas devem, pacientemente ser conduzidos às melhores práticas. É necessário destruir as obras de arte, queimar as constituições, quebrar vidraças, arrebentar cadeiras, deixar excrementos sobre a mesa de juízes, tudo com o ódio santificado, dos justos, porque “deles será o reino dos céus”.

Martins Vasques analisa Nelson Rodrigues e sua época –qual era mesmo o ano, 1964, 1968, 2021, 2022?– fico na dúvida; essa questão, sobre épocas, é complicada: os fatos parecem às vezes, tão iguais – embora nomes diferentes – que dá impressão que entramos em um túnel do tempo, em um buraco de minhoca e voltamos ao passado!

Diz o escritor: “O que Nelson Rodrigues percebeu como poucos é que o abismo que invadia a sociedade brasileira era o ódio fundador de um novo Brasil, um Brasil que era o oposto de tudo aquilo que tinha até então vivido, um Brasil que não tinha outra forma de ser chamado senão ´O Anti-Brasil`.

Um dos sinais mais evidentes de que estava surgindo um novo Brasil foi a leitura do regulamento do concurso literário que afirmava explicitamente que os contos por selecionar poderiam ser sobre todos os assuntos, menos o amor. Como assim? Para Nelson, só o amor (e o desejo de sua contrapartida, seu complemento) merecia ser matéria de criação. Apesar do romancista Lúcio Cardoso (autor de Crônica da casa assassinada, um romance do mesmo calibre de um Willian Faulkner) ter sido uma voz solitária contra esse regulamento estapafúrdio. Nelson sentia que ali havia o sintoma de algo que não era ´intranscendente´ (como costumava escrever em suas crônicas) – o início do ódio ao amor.

Este era o fundamento do ´Anti-Brasil`, o país que aceitava tranquilamente, entre os seus elevados representantes da elite intelectual, que o pacto germânico-soviético Molotov-Ribbentrop (a aliança entre Adolfo Hitler e Josef Stalin, que duraria a invasão da parte soviética na Polônia feita pelo primeiro em 1941) fosse visto como algo absolutamente normal. Apesar de ter acontecido há quase trinta anos, quando o ´Anti-Brasil` começava a mostrar suas garras –era 1968 e Nelson já estava com seus 55 anos– o pacto ainda atiçava a imaginação do dramaturgo carioca porque foi ali que notou que ´o ódio começava a ser mais promovido do que marca de refrigerante`. É a primeira coisa que o ódio faz entre as pessoas, pensou, é igualá-las entre si, torna-las gêmeas nunca no seu melhor, mas no seu pior –assim como aconteceu com ele ao ver a famosa foto de Stálin cumprimentando o coronel alemão Ribbentrop com uma alegria contida. Se era possível o pacto germano-soviético, concluiu, se o mundo o aceitou, então tudo é permitido e, portanto, o seu amigo Otto tinha razão: o mineiro só é solidário no câncer...(...). Tudo era muito lógico. Neste país, Hitler e Stálin tinham vencido porque eram ´constituídos de ódio` -e o povo brasileiro se via na insólita situação de optar por um ou por outro. Todos eram pequenos Stálins ou pequenos Hitlers –e quem não aceitasse esse ´processo de desumanização` que se virasse ou então muda-se de país...(...). Como resistir, a essa avalanche do ódio que parece dominar-nos com uma força impressionante?”[1]

No Brasil de hoje, há uma ascensão extraordinária da extrema direita radical, pequenos e grandes Hitlers, estão empunhando armas, alimentados de ódio, e achariam normal o pacto germânico-soviético, porque nada é tão similar e parecido do que o domínio do mais forte, o domínio das armas, o domínio do terror: esquerda ou direita? É só uma mera classificação para justificar a irracionalidade do ódio.

Há salvação?

Como já escrevi alhures, se Cristo voltasse à Terra, no Brasil de hoje, seria crucificado!

“Vade retrum, Satanás!”



[1] Da Cubha, Martin Vasques. A poeira da glória – uma ( inesperada) história da literatura brasileira – Editora Record, 2015, 1ª edição.

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