Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional
da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional
Público e Privado
O título foi tirado do livro “A poeira da glória” – uma
(inesperada) história da literatura brasileira, de Martins Vasques da Cunha.
É impressionante como fatos do passado ressurgem na
atualidade, com igual natureza, com a mesma têmpera, com o mesmo significado.
Mudam-se os personagens, ora reencarnados em outros. Há, efetivamente, algumas
diferenças de grau, não de substância: não escravizamos mais os negros, como
antigamente, nem os chicoteamos ou amarramos no pelourinho para que, após
vergastados, e com o sal espalhado pelas feridas, queimando ao sol, sofressem
até o desmaio ou a morte – não fazemos mais isso -, pois agora são bem
tratados, com certa estimação!
Não confinamos as mulheres nas cozinhas e nas poltronas
fazendo tricô, acompanhadas de suas mucamas, com plena liberdade de irem do
quarto à sala e desta à cozinha – não fazemos mais isso -, pois agora são bem
tratadas, só as matamos quando saem foram da linha previamente traçada, para os
seus próprios benefícios. No entanto, têm ampla liberdade de servir e de andar
e de trabalhar, salvo se agirem por conta própria, crentes que a sociedade
poder viver por e com elas! É certo que algumas pensam como homens, com seus
homens, e aí se sobressaem porque seguem o melhor caminho. Há progresso!
E os nossos dirigentes, então! E nossas forças da República,
então! Que progresso! Não há mais a cerimônia do beija mão –não fazemos mais
isso-, no máximo vamos às redes sociais, acobertados pelos poderosos, para
dizer que todos são bonitos, judiados, injustiçados, e que devem continuar
mandando, e que o Judiciário é um vilão, e que o Parlamento é um vilão, e que
os que pensam de forma contrária são vilões, mas devem, pacientemente ser
conduzidos às melhores práticas. É necessário destruir as obras de arte,
queimar as constituições, quebrar vidraças, arrebentar cadeiras, deixar
excrementos sobre a mesa de juízes, tudo com o ódio santificado, dos justos,
porque “deles será o reino dos céus”.
Martins Vasques analisa Nelson Rodrigues e sua época –qual
era mesmo o ano, 1964, 1968, 2021, 2022?– fico na dúvida; essa questão, sobre
épocas, é complicada: os fatos parecem às vezes, tão iguais – embora nomes
diferentes – que dá impressão que entramos em um túnel do tempo, em um buraco
de minhoca e voltamos ao passado!
Diz o escritor: “O que Nelson Rodrigues percebeu como poucos
é que o abismo que invadia a sociedade brasileira era o ódio fundador de um
novo Brasil, um Brasil que era o oposto de tudo aquilo que tinha até então
vivido, um Brasil que não tinha outra forma de ser chamado senão ´O Anti-Brasil`.
Um dos sinais mais evidentes de que estava surgindo um novo
Brasil foi a leitura do regulamento do concurso literário que afirmava
explicitamente que os contos por selecionar poderiam ser sobre todos os
assuntos, menos o amor. Como assim? Para Nelson, só o amor (e o desejo de sua
contrapartida, seu complemento) merecia ser matéria de criação. Apesar do
romancista Lúcio Cardoso (autor de Crônica da casa assassinada, um romance do
mesmo calibre de um Willian Faulkner) ter sido uma voz solitária contra esse
regulamento estapafúrdio. Nelson sentia que ali havia o sintoma de algo que não
era ´intranscendente´ (como costumava escrever em suas crônicas) – o início do
ódio ao amor.
Este era o fundamento do ´Anti-Brasil`, o país que aceitava
tranquilamente, entre os seus elevados representantes da elite intelectual, que
o pacto germânico-soviético Molotov-Ribbentrop (a aliança entre Adolfo Hitler e
Josef Stalin, que duraria a invasão da parte soviética na Polônia feita pelo
primeiro em 1941) fosse visto como algo absolutamente normal. Apesar de ter
acontecido há quase trinta anos, quando o ´Anti-Brasil` começava a mostrar suas
garras –era 1968 e Nelson já estava com seus 55 anos– o pacto ainda atiçava a
imaginação do dramaturgo carioca porque foi ali que notou que ´o ódio começava
a ser mais promovido do que marca de refrigerante`. É a primeira coisa que o
ódio faz entre as pessoas, pensou, é igualá-las entre si, torna-las gêmeas
nunca no seu melhor, mas no seu pior –assim como aconteceu com ele ao ver a
famosa foto de Stálin cumprimentando o coronel alemão Ribbentrop com uma
alegria contida. Se era possível o pacto germano-soviético, concluiu, se o
mundo o aceitou, então tudo é permitido e, portanto, o seu amigo Otto tinha
razão: o mineiro só é solidário no câncer...(...). Tudo era muito lógico. Neste
país, Hitler e Stálin tinham vencido porque eram ´constituídos de ódio` -e o povo
brasileiro se via na insólita situação de optar por um ou por outro. Todos eram
pequenos Stálins ou pequenos Hitlers –e quem não aceitasse esse ´processo de
desumanização` que se virasse ou então muda-se de país...(...). Como resistir,
a essa avalanche do ódio que parece dominar-nos com uma força impressionante?”[1]
No Brasil de hoje, há uma ascensão extraordinária da extrema
direita radical, pequenos e grandes Hitlers, estão empunhando armas,
alimentados de ódio, e achariam normal o pacto germânico-soviético, porque nada
é tão similar e parecido do que o domínio do mais forte, o domínio das armas, o
domínio do terror: esquerda ou direita? É só uma mera classificação para
justificar a irracionalidade do ódio.
Há salvação?
Como já escrevi alhures, se Cristo voltasse à Terra, no
Brasil de hoje, seria crucificado!
“Vade retrum, Satanás!”
[1] Da
Cubha, Martin Vasques. A poeira da glória – uma ( inesperada) história da literatura
brasileira – Editora Record, 2015, 1ª edição.
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