quinta-feira, novembro 05, 2020

A inteligência em pandemia • Parte 02



Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP. Membro da Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa. Membro da Academia paulista de Direito. Desembargador da Justiça do Trabalho. Coordenador da Especialização em Direito Internacional da PUC/SP COGEAE e Coordenador do Grupo de Estudos Direito Transnacional – ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.

 

2.Nacionalismo/Globalização

Não vamos nos aprofundar nesta temática, porquanto não me parecem inconciliáveis, a não ser - sempre o mesmo problema – se possuídas pelo espírito dos ardentes travestidos de defensores de ideias libertadoras, mas que não passam de engajados em grupos convictos de sua autoridade imperial ou, o que é menos honroso, do objetivo em satisfazer os próprios e egoístico desejo de usufruir com exclusivamente as benesses de uma posição de mando.

A globalização é um fato material da economia e da tecnologia, que tornaram o mundo muito menor, este mundo redondo e não plano, porquanto de plano nada tem, nem geograficamente nem política, nem social, nem psicologicamente.

Não se desconhece que também é produto de uma forma de vida – capitalista – que nos tornou, a todos nós, dependentes, uns dos outros.

Na verdade, não é assim tão simples, porque a globalização nos dias de hoje tornou-se tão avassaladora, ou melhor tão incisiva, que já é reconhecido não ser somente econômica, mas política, de costumes, da informação, das necessidades e dos males, pois tudo ultrapassa as fronteiras do Estado e interpenetra sem obstáculos. Matérias como direitos humanos, economia, meio ambiente buscam uma regulamentação universal, sem afastar a soberania dos Estados, antes conformando-a aos tempos modernos, e até buscando conceitos antes impensáveis, como a relativização dessa soberania. Tudo se relativiza, queiramos ou não. Tudo se torna flexível, diáfano e translúcido na sociedade internacional, que necessitamos buscar outras formas de sustentação das razões jurídicas do Estado e da atuação daqueles que estão no poder em cada espaço do mundo. O Estado, só por si, não se mostra apto para lidar com essa realidade globalizada, o palco de sua atividade é ao mesmo tempo restrito no seu próprio território e ampliado em relação ao mundo, porque exerce papéis no palco internacional, que antes não haviam sido escritos. Novos papéis, novo diálogo, nova peça a ser encenada sem tempo de ensaio.

A nacionalidade, por certo, também muda de face. Tradicionalmente tem sido entendida como o vínculo do indivíduo com o Estado, que se baseia em critérios de conexão com a comunidade em que vive, em contexto quase que exclusivamente jurídico. Atribuída no momento do nascimento, por critérios políticos (ius sanguinis; ius soli), não se vê, agora, assim tão solidamente estabelecida, após o caso Nottebohm, para estabelecer um mero termo, de 1955, em que a Corte Internacional de Justiça, embora afirmando o princípio do domínio reservado, inerente a cada Estado, reconheceu a existência de um princípio autônomo de Direito Internacional da nacionalidade: o princípio da efetividade.

Lembrando com a Enciclopédia de Direito Internacional: Friedrich Nottebohm nasceu na Alemanha, Hamburgo, em 1881, mudou-se para a Guatemala em 1905, onde estabeleceu residência e o centro de suas atividades. Em 1939, um mês depois da invasão da Polônia pela Alemanha, Nottebohm requereu e obteve a nacionalidade de Lichtenstein. Em 1943, a polícia da Guatemala prendeu Nottebonhm e o extraditou para os Estados Unidos, permanecendo preso até 1946, como inimigo estrangeiro. Ao ser libertado buscou retomar à Guatemala e foi impedido, dirigindo-se a Liechtenstein onde passou a residir. A CIJ foi acionada por Liechtenstein para que declarasse o erro da Guatemala ao impedir a entrada de Nottebonhm e reter seus bens sem ressarcimento, e assim, ter violado obrigações internacionais, devendo pagar uma indenização. Neste caso, a nacionalidade acabou sendo considerada como um laço jurídico fundamentado em um fato social de ligação, uma solidariedade efetiva de existência, interesses e sentimentos, juntamente com direitos e deveres recíprocos. A Corte entendeu que para ser aceita a nacionalidade, deve ser efetiva e real, o que pode ser verificado por fatores distintos, que podem variar (residência habitual, centro de interesses, laços familiares, afeições familiares, e etc.) e aí, a Corte concluiu que à época dos fatos Nottebonhm não estava ligado a Liechtenstein e havendo, isto sim, uma conexão longa e íntima com a Guatemala, e assim, Liechtenstein não teria direito, formalmente, de proteger Nottebonhm.

Este caso ilustra bem o raciocínio sobre a nacionalidade, e que está mudando no tempo. É de se perguntar se não falaria mais alto o princípio maior da proteção ao ser humano, em um mundo que já navega pelas águas da “cidadania internacional”.

É tempo de buscarmos caminhos também nesta seara. Se a globalização é um fato e a nacionalidade tem suas agruras perante as normas internacionais, que nem sempre prestigiam o Estado quando em casos extremos, a díade entre globalização e nacionalidade pode vir a ser repensada como termos opositores e que se excluem.

 

Referências:

BOBBIO, Norberto, Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, Editora Unesp, 3ª. ed.

LAFER, Celso, A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira, Editora Perspectiva S.A. 1941.

ROBEIRO, Manuel de Almeida, COUTINHO, Francisco Pereira, CABRITA, Isabel, Enciclopédia de Direito Internacional, Almedina, 2011.

SANT´ANA, Afonso Romano, Epitáfio para o Século X X, Poesia.

SEITENFUS, Ricardo, Para Uma Nova Política Externa Brasileira, Livraria do Advogado Editora, 1994.


quarta-feira, novembro 04, 2020

A inteligência em pandemia • Parte 01

Com alegria retomamos a atividade no nosso blog de Direito Internacional com a apresentação de artigo em que o Prof. Carlos Roberto Husek analisa o momento atual vivido por nós.

O artigo está dividido em 3 partes a serem apresentadas entre hoje e dia 06/novembro.



Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP. Membro da Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa. Membro da Academia paulista de Direito. Desembargador da Justiça do Trabalho. Coordenador da Especialização em Direito Internacional da PUC/SP COGEAE e Coordenador do Grupo de Estudos Direito Transnacional – ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.

 

Sumário: 1. Direita/Esquerda; 2. Nacionalismo/Globalização; 3. Soberania absoluta/ Cooperação. Conclusão.

 

Século XXI! E continuamos primitivamente instalados nos raciocínios dicotômicos: direita/esquerda; nacionalismo/globalização; soberania absoluta/cooperação, e outros, que nos tolhem e tiram de nós o que há de melhor: o caminho da ponderação, da ciência, do equilíbrio, do diálogo.

 

1.Direita/Esquerda

Lembra-me os versos de Afonso Romano Sant´ana: “2. Aqui jaz um século/onde se acreditou que estar à esquerda ou à direita/eram questões centrais.” 

 No Brasil do Século XXI, o verbo não está no passado, e sim, no presente. Os governos não se notabilizam, pelas suas lideranças e administrações, em vista do bem comum, e sim, por seus posicionamentos discursivos e demagógicos de alinhamentos automáticos a pensamentos extremistas. Todavia, se antes havia fundamento filosófico e ideológico de um ou outro lugar ou condição, hoje, os extremos se tocam na imposição das próprias, individuais e cegas razões, apenas com um único e simples objetivo: o domínio. Afinal, qual a diferença entre o poder tirânico da Direita e o poder tirânico da Esquerda? A tirania lhes é comum. Uma simples estratégia de combate para a obtenção da superioridade e supremacia sobre uma determinada coletividade, composta de individualidades esquecidas, empobrecidas (psicológicas e/ou organicamente) e sobreviventes.

O Século XX restou finado, sem honras: “4. Aqui jaz um século/que um muro dividiu. / Um século de concreto/ armado, canceroso/ drogado, empestado,/que enfim sobreviveu às bactérias que pariu.”; “6. Aqui jaz um século/semiótico e despótico/ que se pensou dialético/ e foi patético e aidético. / Um século que decretou/ a morte de Deus, / a morte da história, / a morte do homem / em que se pisou na Lua / e se morreu de fome...” (Epitáfio para o Séc. XX ).

O que fizemos de nossos aprendizados? Em matéria de política estamos em franca evolução para lugar nenhum. Bobbio, já destacou: “ As reflexões seguintes nascem da constatação de que, nestes últimos anos, tem sido repetidamente afirmado, a ponto mesmo de se converter em lugar-comum, que a distinção entre direita e esquerda – que por cerca de dois séculos, a partir da Revolução Francesa, serviu para dividir o universo político em duas partes opostas – não tem mais nenhuma razão para ser utilizada. É usual a referência a Sartre, que parece ter sido um dos primeiros a dizer que direita e esquerda são duas caixas vazias. Não teriam mais nenhum valor heurístico ou classificatório, e menos ainda valorativo.” (Direita e Esquerda, UNESP, 3ª. ed. p. 50). Não olvidamos que existem matizes como os dedos da mão. Há dedos à esquerda e à direita, que se aproximam muito mais de seus contrários do que os extremos de uma mesma mão: Esquerda (extrema-esquerda; centro-esquerda) Direita (extrema-direita; centro-direita) e em um e outro, ainda se diversificam o  socialismo liberal, os sociais-democratas, o comunismo, o socialismo democrático; o conservadorismo, o fascismo, o nazismo. Todos partem de uma mesma matriz, desgastada pelo tempo.

O mundo parece estar voltando para estas díades antitéticas. O poder, envolto em bandeiras do momento - as que forem possíveis - inebria, cega, contunde, paira sobre os viventes, que gostariam de se alimentar e de participar da sociedade, e os confunde. E todos nós, dentro dessa humanidade amorfa, membros da sociedade humana, inserida nos territórios dos Estados soberanos, perdemos o rumo dos caminhos possíveis. Não é o  “Fim da História”, mas o assentamento das polarizações que nos joga em novo obscurantismo ou – a sorte está lançada – um lento e progressivo limiar para a luz, pelo fracasso dos extremismos estéreis, o que só ocorrerá com o estudo, análise e a tomada de consciência, de que não queremos mais governantes demagógicos e despreparados, no Brasil e no mundo.

 

 

Referências:

BOBBIO, Norberto, Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, Editora Unesp, 3ª. ed.

LAFER, Celso, A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira, Editora Perspectiva S.A. 1941.

ROBEIRO, Manuel de Almeida, COUTINHO, Francisco Pereira, CABRITA, Isabel, Enciclopédia de Direito Internacional, Almedina, 2011.

SANT´ANA, Afonso Romano, Epitáfio para o Século X X, Poesia.

SEITENFUS, Ricardo, Para Uma Nova Política Externa Brasileira, Livraria do Advogado Editora, 1994.

segunda-feira, maio 18, 2015

A nau dos desgraçados

    



    Reeditamos em pleno século XXI (hoje com base em outras causas e finalidades) antigas práticas de jogar a bordo de embarcações os portadores de doenças incuráveis e que pudessem representar algum perigo para a comunidade e os loucos, sem possível tratamento.

    Segundo noticias, mais de 25 mil pessoas foram lançadas ao mar, em barcos precários, para fugir às perseguições políticas, étnicas e religiosas! Comerciantes do crime - traficantes de pessoas - facilitaram  a fuga de desesperados, de suas pátrias de origem, com promessas vazias ( em troca do pagamento de cerca de US$ 2.000 seriam conduzidos aos campos da Tailândia, para atravessar a fronteira rumo à Malásia) mas os abandonaram em meio de águas internacionais, uma vez que os países desejados não aceitaram tais migrantes e eles não têm como retornar aos seus países de origem.

    Há necessidade do sistema jurídico internacional (composto de organizações internacionais, convenções sobre direitos humanos, princípios e costumes internacionais) reagir de forma exemplar para combater dois problemas específicos: um, os Estados, que governados por desajustados, atuam de forma não condizente, sacrificando o próprio povo em cumprimento a um desiderato de domínio absoluto das próprias razões (razões dos governantes), que se arvoram como porta-vozes da vontade do Estado e, dois,  a ineficácia dos mecanismos de defesa dos direitos humanos, que embora escudados em vasta rede de tratados internacionais e contando com organismos voltados à consecução dos seus ideais, não consegue obter a afirmação de tais direitos.

    A vida internacional ainda reafirma, na sua realidade mais crua, as atividades dos Estados, que atuam, se unem e se perpetuam com o objetivo de satisfação de seus interesses econômicos e políticos; mas, se assim é a realidade da vida social no contexto da comunidade internacional, aos poucos aparece, aqui e acolá, a preocupação com o ser humano. Não há incorreção do sistema quando prestigia a soberania dos Estados, porque afirma um princípio de sempre, caro ao Direito Internacional, embora tal soberania tenha sofrido nos últimos tempos uma queda acentuada na sua concepção clássica. Desse modo, o prestígio de tal soberania, no entanto, deve levar em conta alguns aspectos, como: a concepção amenizada do sentido das fronteiras estatais, a economia dos Estados como vasos comunicantes, necessidade de relacionamento entre os Estados, independentemente das respectivas ideologias e formas de governo e as portas abertas de organismos internacionais para reclamações de seres humanos contra os países em que nasceram, em virtude de desmandos e desrespeitos a regras internacionais de proteção. Esta é a soberania como atualmente deve ser vista e exercida. A soberania do Estado deve ser exercida de forma a compor um mundo que não sobreviverá (em tempos de mudança das mínimas condições ambientais de manutenção da vida na Terra) sem a cooperação dos Estados. Cooperação é a palavra. Cooperação para quê? Não, para manter o domínio econômico, militar, político, dos  Estados  mais fortes sobre os mais frágeis. Não, para reavivar guerras religiosas. Não, para alimentar sonhos de domínio de governantes inescrupulosos. Não para sobrelevar interesses econômicos (caixa dos Governos para manutenção do poder) em detrimento do bem estar da população local. Cooperação para buscar um caminho de natural convivência, em que se respeitem a soberania e os interesses dos Estados e os direitos do ser humano. Na verdade, não há, ou não deveria haver divórcio entre tais direitos e os interesses políticos dos Estados, porque o Estado nada mais é do que uma ficção criada pelo próprio ser humano para a sua sobrevivência. 

    Nunca é demais recordar, um Estado é composto de povo, território e poder, bem como da capacidade de relacionar-se no mundo internacional. Desses elementos, sem dúvida, o principal, como base sobre o qual os demais se edificam é o povo: território sem povo, não é nada; poder sem povo, é poder nenhum; relacionamento internacional sem povo, é um relacionamento sem lastro. O povo, se organizado, se consistente, se possuidor de alguns laços de união (psicológica, social, jurídica) conquista o território, organiza o poder e se faz relacionar, em nome desse poder, com os demais Estados do mundo. A importância do povo (expressão equívoca e que melhor necessita ser estudada) está em ser a soma qualificada dos indivíduos. Direitos individuais, garantias individuais, direitos e garantias sociais, direitos humanos, direitos fundamentais, refletem expressões que notabilizam o ser humano como detentor de direitos em face de qualquer Estado, qualquer governo, qualquer ideologia. O Direito Internacional moderno não é mais - e não pode ser - o Direito dos Estados, mas o direito do ser humano, na sua coletividade, nas suas representações, nas organizações que cria, por si ou por outras organizações maiores. Sem embargo, de falar o óbvio - tão óbvio, que parece sem importância - as criações do Direito não terão muito sentido se não voltadas, direta ou indiretamente para os seres humanos. O Direito estatal é assim. O Direito Internacional assim é. Em um mundo sem fronteiras - reconheçamos, de início, que a importância que as fronteiras têm é meramente demarcatória para algumas finalidades político-jurídicas - o Direito Internacional necessita pensar melhor a finalidade de suas principais instituições.
    
    A nau dos desgraçados é a desgraça do mundo e o fracasso das instituições. A ONU, os organismos internacionais e os Estados soberanos necessitam dar respostas urgentes para essa situação, enquadrando os Estados descumpridores das regras internacionais ( a força do Direito, se necessária pelo exercício da força internacional desse mesmo Direito) e a proteção urgentíssima de seres humanos jogados ao mar, como subprodutos da humanidade.

    Deixar morrer de fome, sede e doenças, pessoas que não conseguem pisar em terra firme, por desmandos do poder dos Estados nacionais e pela interpretação errônea da soberania estatal, como garantia de uma política interna de governo, é simplesmente virar as costas para o que já foi construído, em termos de avanço social e jurídico pelo mundo. 
Enfim, os direitos humanos não podem ser a base apenas dos discursos e da elaboração de regras internacionais bem intencionadas: mas, o verdadeiro escopo do Direito moderno, estatal ou internacional. Lembremos, que a própria ONU foi criada, para que não mais "O povo das Nações Unidas" sofressem os horrores de uma futura da guerra. A expressão "povo" e não "Estado" no Preâmbulo da Carta, é significativa e impõe um novo rumo ao Direito Internacional.

    Será que todas as Declarações e Convenções negociadas, assinadas e ratificadas pelos Estados, a exemplo de:  "Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Declaração Universal dos Direitos Humanos; Convenção e Repressão do Crime de Genocídio; Convenção sobre Asilo Territorial; Convenção sobre Asilo Diplomático; Pacto internacional dos Direitos civis e Políticos; Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento; Convenção sobre o Direito da Criança; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional; Estatuto dos Refugiados; Convenção para Prevenir e Punir Atos de terrorismo. Configurado em Delitos contra as Pessoas e a Extorsão Conexa; Convenção sobre a Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas  e outras, não meros papéis que devem ser jogados ao lixo oceânico e afundados com os corpos que vagam sem rumo em águas internacionais? Se o sistema internacional de Direito não tiver mecanismos para resolver este problema ...então!...precisaremos repensar o Direito Internacional.  


CARLOS ROBERTO HUSEK .