O atentado
brutal ocorrido em Paris nos leva a uma natural consternação, assim como
algumas constatações, mas poderia servir igualmente a uma reflexão em relação a
(in)tolerância nossa de cada dia.
A primeira
constatação, desde os primeiros instantes entendida por todos, é a do ataque à
liberdade de expressão e de imprensa, uma vez que a violência foi feita contra
cartunistas e jornalistas em seu local de trabalho como suposta represália à
críticas contidas em charges publicadas pelo periódico Charlie Hebdo.
Um segundo
aspecto é que a tática utilizada desta vez não foi a da intimidação pelo terror
à esmo, cometido contra inocentes desconhecidos em aviões, torres de
escritórios ou estações de metrô, mas contra alvos determinados, disseminando
portanto não apenas o terror generalizado mas a mensagem de que alguma
"justiça" ou mesmo vingança divina estava sendo realizada.
Os que
atacam, talvez vinculados diretamente ao Estado Islâmico ou apenas lobos
solitários de uma causa que entendem sagrada, o fazem imbuídos da certeza da
defesa de valores que teriam sido violados nas representações artísticas do
jornal.
A mensagem
que conseguem transmitir, paradoxalmente, é justamente a oposta, a da mais
profunda intolerância. E não apenas contra a liberdade de expressão, direito
que fazem questão de não reconhecer, mas também contra a liberdade religiosa, a
qual inclui também a liberdade de não crer em nada ou crer na inexistência de
algo maior.
De toda
forma, o atentado brutal, o maior em meio século na França, tem proporções
muito menores que outros cometidos na década passada, na medida em que a silenciosa
colaboração e cooperação estratégica entre os países têm dificultado que grupos
extremistas possam levar a cabo ações mais espetaculares. Esta constatação
empírica mostra que, se não há como serem evitados na totalidade atentados
terroristas, há como os Estados organizarem-se de forma mais profícua em termos
de troca de informações e melhorar a segurança e vigilância geral.
A ação terrorista
agora claramente é dirigida ao "inimigo" mais à mão, alvo mais fácil
de atingir como uma redação, tornando-a relevante não pela grandiosidade mas pelo
seu suposto sucesso. Se de alguma forma jornais e cartunistas deixarem de
publicar trabalhos semelhantes aos do Charlie
Hebdo, o sucesso da ação criminosa estará alcançado.
Há, porém,
uma reflexão doméstica igualmente possível de ser feita. Não há intolerância
semelhante no Brasil (os bem mais que doze torcedores de futebol mortos ao
longo dos anos por aqui talvez discordem, lá do além, juntamente com aqueles criminosos
julgados e condenados à morte "em confronto" com a polícia, e paro
nestes exemplos) mas igualmente não se vê uma defesa intransigente das
liberdades por aqui e ultimamente boa parcela da população flerta inclusive com
ideias que representam a diminuição ou cerceamento de tais liberdades.
Isso talvez ocorra
pelo desconhecimento da importância desses e outros direitos e garantias
fundamentais à pessoa humana, mas claramente existe um sentimento de
intolerância que vem se aprofundando. Ainda que sem paralelo com a brutalidade da
ação em Paris, qualquer grau de intolerância é perniciosa e o exemplo extremo de
ontem apenas demonstra isso com inegável nitidez.
A resposta
talvez não seja apenas mais liberdade de expressão ou liberdade religiosa, mas
sim mais tolerância e, especialmente, mais entendimento do porquê dessas
liberdades. A defesa intransigente dos direitos humanos, dos quais fazem parte
tanto a liberdade de expressão e de imprensa quanto a liberdade religiosa,
deveria pautar as manifestações de solidariedade que se apresentam não apenas
em Paris mas em vários países, inclusive no Brasil.
(publicado originalmente no Estadão Noite - 08/01/2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário