quinta-feira, fevereiro 18, 2021

Um livro e um tema fundamental: O NEGRO



Carlos Roberto Husek

Professor da PUC de São Paulo

Coordenador da ODIP - Oficina de Direito internacional Público e Privado

 

Abdias Nascimento (1914/2011), antropólogo, poeta, dramaturgo, artista plástico, intelectual e ativista pan-americano, buscou desenvolver no Brasil a questão do negro, na sua inserção na sociedade brasileira e desmistificou algo que continua arraigado entre nós, que é a chamada “democracia racial”. Não o fez, por dimensão intelectual e de cientista social, por vindita pessoal, grupal, social ou familiar, mas por rigoroso estudo de alguém – se é que é possível dizer – que no momento da produção científica não tem cor ou raça. Difícil a aceitação disso, para todos nós, que de alguma forma, estamos presos às nossas idiossincrasias, à nossa criação, ao nosso passado, à transmissão avassaladora da cultura que nos é transmitida, nos posicionando, de antemão, diante da vida com um olhar específico, quase sempre carregado de preconceito e de obstáculos à inteligência (visão das coisas), que obscurece o mais preparado dos mortais. Observe-se as últimas manifestações de políticos, ministros, ex-generais do exército, que não parecem atinar com o mínimo de compreensão e percepção da realidade e tendo em vista a posição que ocupam no cenário nacional, ou que ocuparam, arrastam nas suas ideias uma multidão de fanáticos, que, efetivamente não pensam para alimentar a mídia – falada, escrita, televisiva - e, principalmente, pelas redes sociais suas próprias demandas, algumas que se escondem nos confins do inconsciente.

Abdias do Nascimento, negro, não partiu dessa condição, mas analisou com objetividade a sociedade brasileira, e destrinchou e expôs a verdade de forma crua, em vários de seus escritos, dentre eles o elogiado “O genocídio do negro brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado”[1] , que logo de início parte da desmistificação, de forma contundente, do ensino oficial e da transmissão oral e escrita sobre a propalada “democracia racial”:

“O que logo sobressai na consideração do tema clássico deste ensaio é o fato de que, à base de especulações intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas ciências históricas, erigiu-se no Brasil o conceito da ´democracia racial`; segundo esta, tal expressão supostamente refletiria determinada relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas. A existência dessa pretendida igualdade racial constitui mesmo, nas palavras do professor Thales de Azevedo, ´o maior motivo de orgulho nacional`(...) e ´a mais sensível nota do ideário moral no Brasil, cultivada com insistência e com intransigência`. Na mesma direção laudatória, o Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, afirma que “A maior contribuição que nós temos dado ao mundo é precisamente esta nossa democracia racial`.[2]  

De saída, verifica-se que Abdias parte de uma afirmação por todos tida como certa e a destrói com lógica, quase aritmética, ao longo dos capítulos que se seguem (quinze capítulos, 229 páginas), desmascarando esta inverdade, com apoio e assinatura de vários intelectuais, brancos e negros, do Brasil e do exterior.

Por que insistimos nesta temática, nos últimos escritos da ODIP? Porque é constrangedor vivermos completamente cegos, em relação à realidade social, que a chamada “quota”, por si, já emblemática, não conseguiu até o momento desnudar.

Não somos o país da “democracia racial”, e quiçá, não sejamos o país da “democracia plena”, esta garantida nas leis e na Constituição – é um começo -, mas de pouca prática, á medida que os governantes dela abusam com interpretações estapafúrdias da Carta Magna, somente com o intuito de manutenção do poder. Este não é um mal só nosso, O mundo atual passa por uma síndrome de abstinência do diálogo e do exercício da tolerância com o outro, que sem dúvida é a base da democracia e do “Estado Democrático de Direito”, mas este é um assunto para um próximo estudo, embora umbilicalmente ligado ao tema deste artigo. Continuando, o fato é que nossa insistência tem preocupação interna e internacional. Interna, porque as manifestações dominantes são desastrosas e nos impõem, aos brancos e mesmo aos negros, uma visão muito distorcida do real, elevando a ficção em verdade. Internacional, porque tentamos passar para o mundo, somente com base no sistema jurídico, que alcançamos o prazer da convivência social.

Enquanto, não passarmos a limpo essa história racial, não vamos progredir e não vamos ser livres. A escola primária patrocinada pelo Estado, onde o número de pretos, pardos e mulatos é maior, apesar da boa vontade de seus professores mostra-se manietada, porquanto os alunos que dela saem não conseguem disputar o mercado de trabalho, e sequer sobreviver.

O ensino médio já faz ampla separação, entre brancos e negros, porque este ensino é quotizado, de certa forma, para aqueles, e a as faculdades, terminam em erigir muros altíssimos para o alcance dos descendentes de africanos, em quaisquer de suas modalidades.

Podemos nos esconder, enquanto intelectuais, atrás de falsas ideias, porém do que nos servem, na contribuição que devemos dar para um país melhor?

Diz Abdias Nascimento, em parte de suas conclusões: “Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência mutável, polivalente, que o torna único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se necessário travar a luta característica de todo e qualquer combate antirracista e antigenocida. Porque sua unicidade está só na superfície; seu objetivo último é a obliteração dos negros como entidade física e cultural. Tudo em conformidade com a observação de Florestan Fernandes: ´Uma situação como esta envolve mais do que desigualdade social e pobreza insidiosa. Pressupõe que os indivíduos afetados não estão incluídos como grupo racial na ordem social existente como se não fossem seres humanos nem cidadãos normais (grifos nossos)’”

Aviso aos que se debruçarem sobre estas poucas linhas (preconceituosos de plantão), que não sou negro nem mulato, meu pai era tcheco e minha mãe, descendente de italianos, todos brancos e alguns de olhos azuis e cabelos loiros, mas sou, sem dúvida, um cidadão brasileiro, professor, preocupado em fazer valer o que está Constituição da República, em especial, nos seus artigos 1º., 3º. e 4º., em resumo: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, dentre outros.

Não são palavras. Está na Constituição Federal!



[1] Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado, com textos de Florestan Fernandes e Elisa Larkin Nascimento, Editora Perspectiva. 4ª. edição.

[2] Ibidem, p. 47/48.

 

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