sexta-feira, fevereiro 05, 2021

A RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DO GOVERNANTE

 


Por Fabrício Felamingo

 

Nos nossos últimos artigos temos falado da relação entre o Direito Internacional e o chamado “bom governo”, no sentido de que há uma correlação direta entre o grau de inserção internacional de uma nação e seu nível de democracia. Os extremos ajudam a entender. A ninguém ocorre defender que a Coreia do Norte seja um país democrático ou sem abuso de poder autoritário, com os indefectíveis abusos contra os direitos e garantias fundamentais de seu povo. E seu grau de inserção internacional é, pode-se dizer, nulo. Não apenas não tem relações diplomáticas com a generalidade das nações como, com aquelas com quem ainda tem algum grau de contato, sempre o faz na base de encontros secretos. Uma exceção foi a tentativa de aproximação com os EUA feita durante o governo Trump, inclusive com encontro pessoal dos líderes de ambos os países, em que resta a dúvida sobre quem estaria mais “usando” o outro, se o chefe de Estado norte-americano (buscando capitalizar através de um caminho inusual para a “paz” entre as Coreias) ou o ditador norte-coreano (tentando dar algum polimento ou verniz internacional à carcaça ditatorial). Fato é que essa pouca (ou nenhuma) inserção internacional norte-coreana de forma alguma faz bem à democracia (inexistente) naquele país.

Uma faceta dessa inserção internacional é a possibilidade de o Estado ser internacionalmente responsabilizado por descumprimento de compromissos assumidos na esfera internacional. O século XX foi de grande evolução nesse tema, com a tentativa de pavimentar formas de responsabilização que não passassem pelas guerras, ou seja, uma institucionalização não apenas das normas na esfera internacional (os tratados e acordos ratificados em especial) mas também de um sistema de monitoramento e controle do cumprimento de tais normas, com eventual possibilidade de aplicação de sanções aos eventuais descumpridores.

Porém, falamos aqui da responsabilização do Estado na esfera internacional, uma vez que não há formas de responsabilização de pessoas físicas, governantes inclusos, de maneira geral. O Direito Internacional se ocupa de responsabilizar se for o caso os seus chamados sujeitos de direito, e estes são, por excelência, os Estados (e também as Organizações Internacionais e outras coletividades, mas não entraremos nesse detalhe aqui). Os seres humanos são sim sujeitos de Direito Internacional (num entendimento que foi se construindo especialmente na segunda metade do século passado), mas especialmente considerados como sujeitos de “direitos” e não tanto de “deveres”, ou seja, o Direito Internacional regula muito mais os Estados para que estes confiram e garantam direitos aos seres humanos (os tratados de direitos humanos são o exemplo máximo disso, mas as normas da OIT, para ficar apenas em uma organização internacional, também o são).

Há, porém, algumas exceções, sejam as históricas (das quais o Tribunal de Nuremberg é o exemplo mais acabado) ou as institucionalizadas, das quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) é o exemplo único atualmente. O TPI cuida apenas e tão somente de julgar pessoas, e nunca Estados, responsabilizando-as pelo eventual cometimento de crimes tipificados em seu Estatuto. Nada mais do que isso (como se pouco fosse), com o poder de encarcerar os condenados. É nesse contexto que se tem falado muito sobre a possibilidade ou não de o atual Presidente brasileiro ser formalmente denunciado e julgado por crime de genocídio, cometido na forma de sua (não) condução do País na luta contra a COVID-19, o mal que assola o mundo desde o final de 2019. As opiniões divergem mas é inegável que o critério técnico está atendido: o Brasil ratificou a Convenção de Roma de 1998 (e portanto fazemos parte do TPI) e a Constituição Federal, em seu artigo 5º, parágrafo 4º, assegura o reconhecimento e submissão à jurisdição de tribunal penal internacional ao qual o Brasil tenha manifestado adesão. Ao TPI, portanto, caberia a análise e julgamento do mandatário brasileiro: se há ou não crime, compete ao TPI julgar, baseado na tipificação do crime de genocídio previamente existente (e aceita pelo Estado brasileiro) no artigo 6º daquele estatuto, ou mesmo de crimes contra a humanidade (artigo 7º). Seria vexatório ao Brasil um Presidente ser ali julgado, mas ao mesmo tempo seria exemplar para os governantes e futuros governantes que algo assim fosse ao menos examinado pelo TPI, uma verdadeira lição de que genocídios e crimes contra a humanidade não se fazem apenas com baionetas e soldados mas também com o mero uso da voz e autoridade. Mal à democracia pelo mundo com certeza não faria.


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