Por Fabrício
Felamingo
Nos nossos últimos artigos temos falado da relação entre o Direito
Internacional e o chamado “bom governo”, no sentido de que há uma correlação
direta entre o grau de inserção internacional de uma nação e seu nível de
democracia. Os extremos ajudam a entender. A ninguém ocorre defender que a
Coreia do Norte seja um país democrático ou sem abuso de poder autoritário, com
os indefectíveis abusos contra os direitos e garantias fundamentais de seu
povo. E seu grau de inserção internacional é, pode-se dizer, nulo. Não apenas
não tem relações diplomáticas com a generalidade das nações como, com aquelas
com quem ainda tem algum grau de contato, sempre o faz na base de encontros
secretos. Uma exceção foi a tentativa de aproximação com os EUA feita durante o
governo Trump, inclusive com encontro pessoal dos líderes de ambos os países,
em que resta a dúvida sobre quem estaria mais “usando” o outro, se o chefe de
Estado norte-americano (buscando capitalizar através de um caminho inusual para
a “paz” entre as Coreias) ou o ditador norte-coreano (tentando dar algum
polimento ou verniz internacional à carcaça ditatorial). Fato é que essa pouca
(ou nenhuma) inserção internacional norte-coreana de forma alguma faz bem à
democracia (inexistente) naquele país.
Uma faceta dessa inserção internacional é a possibilidade de o
Estado ser internacionalmente responsabilizado por descumprimento de
compromissos assumidos na esfera internacional. O século XX foi de grande
evolução nesse tema, com a tentativa de pavimentar formas de responsabilização
que não passassem pelas guerras, ou seja, uma institucionalização não apenas
das normas na esfera internacional (os tratados e acordos ratificados em
especial) mas também de um sistema de monitoramento e controle do cumprimento
de tais normas, com eventual possibilidade de aplicação de sanções aos
eventuais descumpridores.
Porém, falamos aqui da responsabilização do Estado na esfera
internacional, uma vez que não há formas de responsabilização de pessoas
físicas, governantes inclusos, de maneira geral. O Direito Internacional se
ocupa de responsabilizar se for o caso os seus chamados sujeitos de direito, e
estes são, por excelência, os Estados (e também as Organizações Internacionais
e outras coletividades, mas não entraremos nesse detalhe aqui). Os seres
humanos são sim sujeitos de Direito Internacional (num entendimento que foi se
construindo especialmente na segunda metade do século passado), mas
especialmente considerados como sujeitos de “direitos” e não tanto de
“deveres”, ou seja, o Direito Internacional regula muito mais os Estados para
que estes confiram e garantam direitos aos seres humanos (os tratados de
direitos humanos são o exemplo máximo disso, mas as normas da OIT, para ficar
apenas em uma organização internacional, também o são).
Há, porém, algumas exceções, sejam as históricas (das quais o
Tribunal de Nuremberg é o exemplo mais acabado) ou as institucionalizadas, das
quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) é o exemplo único atualmente. O TPI
cuida apenas e tão somente de julgar pessoas, e nunca Estados, responsabilizando-as
pelo eventual cometimento de crimes tipificados em seu Estatuto. Nada mais do
que isso (como se pouco fosse), com o poder de encarcerar os condenados. É
nesse contexto que se tem falado muito sobre a possibilidade ou não de o atual
Presidente brasileiro ser formalmente denunciado e julgado por crime de
genocídio, cometido na forma de sua (não) condução do País na luta contra a
COVID-19, o mal que assola o mundo desde o final de 2019. As opiniões divergem
mas é inegável que o critério técnico está atendido: o Brasil ratificou a
Convenção de Roma de 1998 (e portanto fazemos parte do TPI) e a Constituição
Federal, em seu artigo 5º, parágrafo 4º, assegura o reconhecimento e submissão
à jurisdição de tribunal penal internacional ao qual o Brasil tenha manifestado
adesão. Ao TPI, portanto, caberia a análise e julgamento do mandatário
brasileiro: se há ou não crime, compete ao TPI julgar, baseado na tipificação
do crime de genocídio previamente existente (e aceita pelo Estado brasileiro)
no artigo 6º daquele estatuto, ou mesmo de crimes contra a humanidade (artigo
7º). Seria vexatório ao Brasil um Presidente ser ali julgado, mas ao mesmo
tempo seria exemplar para os governantes e futuros governantes que algo assim
fosse ao menos examinado pelo TPI, uma verdadeira lição de que genocídios e
crimes contra a humanidade não se fazem apenas com baionetas e soldados mas
também com o mero uso da voz e autoridade. Mal à democracia pelo mundo com
certeza não faria.
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