sexta-feira, julho 16, 2021

Continuando os estudos da sociedade do nosso tempo: o negro

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP e coordenador do ODIP – Ofician de Direito Internacional Público e Privado

 

 

Na construção da sociedade brasileira, há velhos temas que de tempos em tempos voltam a nos atormentar, por ser tarefa não cumprida; como a integração dos negros, olvidando a enorme e histórica dívida que temos com a África, por participar e incentivar o comércio do atlântico, em tempos idos, que em termos de história, equivalem a ontem, e de cujo dia acordamos sem qualquer solução.

O branco escravizou o negro, e quando este se deu por libertado, por obra de concessão, passou a viver na periferia das grandes cidades, empurrado para os guetos, para os morros, para as casas de madeira, para os banhos de bacia de água tirada dos rios ou advindas da chuva, das sobras das feiras, e dos pequenos atos contra a propriedade privada, que continuaram e se multiplicar nas mãos do dominador.

A importância do tema não está no fato de que ressurgiu no horizonte político e acadêmico a questão dos direitos humanos e dos desfavorecidos, mas em algo mais concreto e sempre presente, a própria constituição da sociedade brasileira, feita de negros, pardos, amarelos, brancos e outros, cuja proporção de pretos é bem maior, em decorrência da miscigenação.

Em primeiro lugar, havemos de afastar o mito da democracia racial - e já o fizemos no artigo anterior - porquanto esta, efetivamente, nunca existiu. O que aconteceu é que conseguimos conviver uns com os outros, dentro de padrões bem definidos, entre privilegiados e excluídos, sendo que estes aceitaram a exclusão, sem discutir qualquer possibilidade de inclusão social. Nos dias de hoje, tentamos pela “quota” social outorgar aos negros algum caminho de inserção nas diversas áreas da atividade humana, mas ainda é uma concessão, e não uma efetiva conquista ou uma efetiva inclusão, que só aconteceria pelo ensino de qualidade ofertado pelo Estado e pela possibilidade de pleno emprego. E não seria condescendência do Estado, e sim, política pública necessária, esperada e administrativamente programada, em cumprimento de um dever constitucional de integração, de compartilhamento, de promoção do bem estar social.

A quem queremos enganar?

É possível construir uma nação que atue no mundo atual e na América do Sul, com efetiva liderança e compreensão dos problemas internacionais, com desconhecimento ou encobrimento de nossas origens e da nossa exata composição social?

Quem somos?

As nossas cidades são centralizadas, administrativa e economicamente, nas mãos de poucos – em geral brancos ou pretos esbranquiçados – com o domínio da segurança pública, também nas mãos destes poucos,  e as nossas instituições maiores, baseadas nos poderes da república, também, sem a participação eficiente, eficaz e estável de todos os componentes raciais, que continuam marginalizados.

Quem somos?

Simplesmente um poder europeu na América, cristalizado pelo tempo?

Abdias Nascimento[1], e dele nos servimos mais uma vez,  escreveu de forma clara sobre o papel do negro escravo para a história econômica do Brasil: “ Sem escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca. Tanto nas plantações de cana-de-açucar e café e na mineração, quanto das cidades, o africano incorporava as mãos e os pés das classes dirigentes que não se auto-degradavam em ocupações vis como aquelas do trabalho braçal. A nobilitante ocupação das classes dirigentes – os latifundiários, os comerciantes, os sacerdotes católicos – consistia no exercício da indolência, no cultivo da ignorância, do preconceito, e na prática da mais licenciosa luxúria. Durante séculos, por mais incrível que pareça, esse duro e ignóbil sistema escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro de ser uma instituição benigna, de caráter humano. Ito graças ao colonialismo português que permanentemente adotou formas de comportamento muito específicas para disfarçar sua fundamental violência e crueldade. Um dos recursos utilizados nesse sentido foram a mentira e a dissimulação. A consciência do mundo guarda bem viva a lembrança do colonialista Portugal encobrindo a sua natureza racista e espoliadora através de estratagemas como a designação de “Província de Ultramar” para Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.” [2]

Fatos e história, em relação aos quais deve ser levado em conta a época e a divisão de poderes no mundo, as conquistas colonialistas, o direito do Estado promover tais conquistas, o poderio militar e econômico e outros fatores, que podem ser bem analisados para que não se incorra – vamos dizer de forma eufemística – na mesma incorreção, ou de forma crua, nos mesmos crimes. Mais do que isso, além da eventual reparação – é o que se tenta modernamente fazer – a efetiva correção, reabrindo os caminhos no território nacional para um progresso claro e inequívoco das relações sociais e das relações de poder. E tudo, irá beneficiar a todos nós, independente da raça, porquanto, o Brasil, sem dúvida, se tornará um país mais rico cultural e civilizadamente.

Não é possível que em pleno século XXI ainda patinamos neste assunto, envenenados pelo peso da história e das noções passadas de diferenças raciais e de gênese. Ninguém nasce para escravo ou para senhor, para mandar ou para obedecer, para ser rico ou para ser pobre, para o lazer ou para o labor; nasce-se simplesmente, e a sociedade impõe-nos as suas regras e os seus caminhos, que, diga-se, não são imutáveis.

É necessário ter força para crescer e sabedoria para agir, porque o mundo social é passível de transformação. Na sabedoria do continente negro, existem alguns ensinamentos, de alto conteúdo civilizatório: “nos costumes imemoriais africanos, a mais completa expressão de energia vital (porque o valor supremo da existência é a energia que conecta todos os seres do universo) é a existência intensa e generosa: a vida plena (...) As filosofias africanas comportam uma ética fundante. Elas não se baseiam em uma decisão divina que proíbe certas ações e as transforma em ´pecados´. Na praxe africana, o mal é o que prejudica os outros, o que ameaça a paz e a sobrevida do grupo (...) No pensamento ancestral africano, o Ser Supremo, Criador do Universo, permanece muito distante. Ele não se preocupa com a ordem moral, cujos guardiões são os ancestrais, que modelam condutas e eventualmente enviam punições aos descendentes que não os respeitam.[3]

Quem disse que a ordem do universo é aquela que aprendemos?

Quem somos, afinal, uma civilização do século XXI, eivada de conceitos que nos foram impingidos nos livros escolares e na propaganda oficial?

É preciso, urgentemente, mudar, integrar, consolidar, cooperar, incorporar, compreender, assimilar, compor, constituir, tornar o Brasil uno e não, apenas aceitar os brasis que absorvermos como irreversíveis. Depois, vamos ter com o funcionamento da economia, do poder e da distribuição de justiça. Sem esta base de incontestável transformação social, o edifício público tende a não resistir às intempéries dos acontecimentos.



[1] Poeta, escritor, ativista dos direitos civis e humanos, político, ator, escritor, ativista dos direitos civis e humanos, político, ator, teatrólogo, economista. Nascido em São Paulo, em 2011 e falecido no Rio de Janeiro em 2011, com obras escritas nas áreas mencionadas, e de cunho antropológico, histórico  e social.

[2] Nascimento, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva,4ª. edição, 2016, p.59.

[3] Lopes, Nei e Simas, Luiz Antonio. Filosofias africanas.Editora Civilização brasileira, 1ª. edição, 2020, p. 19


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