sexta-feira, dezembro 16, 2022

As carpideiras

 



Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

 

O Bolsonaro chorou, o Tite chorou, o Neymar chorou, o Lula chorou, o capitão Thiago Silva chorou, o povo chorou... é por isso que choveu como nunca; ruas alagadas, casas destroçadas, pessoas ilhadas. O Brasil chorou e chora, por tudo e por nada.

Estamos na “Era das Carpideiras”, no velório do cadáver da nossa emancipação colonial. Fomos abandonados ao sul do Equador pelos pais lusitanos, que tiraram nossa coberta, nos descobriram e jogaram sobre nós o estigma do nanismo. Desde então, assumimos a nossa posição no mundo, como donos de um vasto território, de índios, florestas, e depois donos de engenho, e depois pretos escravos, e depois de elites dominantes, e depois de favelados e marginalizados, e depois de quintal de outros mais abastados, e depois de sambas e pagodes, e depois de carnavais e praias, e depois de papagaios falantes, e depois de milicianos e de guetos, atemorizados e atemorizantes.

Nós, os bem-sucedidos, não podemos aguentar os outros, drogados e alienados, que buscam roubar nossa paz e, aliás, só nasceram para este desiderato: nos atormentar. E, diante dessa realidade –os bons e os maus– só desejamos uma polícia forte que nos proteja dos direitos humanos que outros reivindicam.

É inacreditável como os índios, pretos, favelados, meninos de rua, famintos, desempregados, drogados, não se conscientizaram do lugar que lhes cabe na civilização colonizada: de meros servidores. Servidores do capital, servidores dos que passam as drogas, servidores dos que vendem as armas!

Há um grupo dominante –nasceram para dominar– e há grupo dominado, que nasceu para servir.

Pode-se lhes dar estudo, mas abririam os seus olhos para as possibilidades de eventuais posições de comando.

Pode-se se lhes dar armas –“povo armado é povo liberto”– mas isso traria o perigo de quererem lutar por eventuais conquistas.

Pode-se lhes dar comida, água potável e luz elétrica, mas isso faria com que quisessem dividir uma fatia do bolo dos benefícios do progresso e os tiraria da natureza para a qual foram criados, de servir e, eventualmente, ficarem com as sobras.

O progresso de igualdade social e cidadania seria, convenhamos, um desastre para a nossa civilização colonizadora.

O melhor será ficarem onde estão: no limbo.

O melhor será continuarmos chorando. Os “nossos maiores” choram, choram, choram, porque a conquista deles é sempre pessoal, nunca coletiva.

Temos sede de mitos e salvadores, de palavras de ordem, de grandes exemplos de homens fortes e de comando, de estátuas e de medalhas, de altares e de velas. Pensar, dividir, cooperar, só entre os “iguais”: bandido com bandido, miliciano com miliciano, rico com rico, religioso com religioso, sem nunca ultrapassar as fronteiras das nossas tribos. Resultado: continuamos matando e morrendo e chorando.

Cada governo que sobe ocupa os mesmos espaços de dominação e busca implantar a sua filosofia, que pode ser contrária ao governo que sai e impõe rumos completamente diferentes. É um revezamento periódico: um constrói sobre os escombros deixados, outro destrói e promove novos escombros. E, com isso, fazemos a festa da posse –choro e samba- e lamentamos o final do governo em choro convulsivo.

Não construímos pontes: apertar as mãos, cumprimentar e cooperar para que o mínimo institucional permaneça como caminho; passar o bastão, cantando o hino nacional e hasteando a bandeira; desejar ao que assume, boa sorte e se pôr à disposição, é impróprio, e impensável para um Brasil que não sabe perder e receber as lições de permanecer e construir.

A paixão nos informar e embota o raciocínio. Vivemos o presente. O passado não deixa rastro, o futuro não existe. Cada líder faz as suas próprias lutas (chora e ri), e nada transmite para as gerações futuras.

Triste se não nos restar outra perspectiva, senão a fala de Machado de Assis, pela boca de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Ainda somos um povo sem alma coletiva.

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