terça-feira, dezembro 06, 2022

O azinhavre da desconstrução social

 


Por Carlos Roberto Husek, professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

A sociedade, com o passar do tempo, e com seus desgovernos, toma uma cor estranha, deixa de ter colorido e passa a criar uma pátina, meio amarronzada, meio cinza, um azinhavre que a encobre e não permite que floresça alguma alegria, quer seja na música, quer no esporte, quer na escrita, porque a força bruta, advinda de ações político-marciais, escurecem o meio ambiente e tingem a tudo de uma certa melancolia.

É duro perder no futebol, de uma seleção inferior. É mais desastroso perder na sociedade a Educação, a Cultura, e aumentar ao extremo a linha de pobreza. É ufanoso vencer. Mais venturosa a comida na mesa do pobre e a cultura e oportunidade para todos.

O Brasil está paupérrimo, embora mais armado; o Brasil passa fome, embora os mais ricos estejam ainda mais ricos; o Brasil está mais frágil e sem esperança, embora mais violento. O Brasil está perdendo de 10 a 0 no jogo da civilização. Afastamo-nos de tudo que possa tornar viável uma civilização nos trópicos; alguns de seus filhos não se cansam de copiar ações e símbolos de uma Alemanha nazista, que deveria ser uma página virada da história; grupos de milicianos ditando palavras de guerra e de ódio, longe –milhas de distância– dos princípios republicanos.

Permita-nos uma licença poética, com Gonçalves Dias:

 

Minha terra tem palmeiras

Onde cantam os sabiás,

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nossos céus têm mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

 

Sempre fomos pobres, mas não como agora! Tínhamos algum romantismo e esperança.

Sempre namoramos com a violência, mas agora com ela nos casamos!

É possível fazer um Estado Democrático de Direito sem nos preocuparmos com a Educação, com a Cultura, com a Literatura, com a História, com a Antropologia, com as Ciências Sociais, com a Saúde, matérias que fazem o povo pensar, que buscam privilegiar os mais desfavorecidos e ter o progresso social como meta? Todavia, não querem o povo pensando e, sim, que só sigam palavras de ordem.

As universidades e as pesquisas perderam dinheiro e estão à mingua; o que é normal quando não se aprecia o estudo e somente se pensa em armas.

Werner Jaerger, no livro Paidéia, explica: “todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual.[1]

Nas causas da decadência do Estado, como exposto no mesmo livro, diz o autor, pela boca de Platão: “A causa da sua decadência não fora a falta de valentia ou de arte da guerra, como um espartano poderia pensar, mas a sua incultura nas matérias humanas mais importantes. É esta profunda incultura que, hoje como outrora, destrói os Estados e continuará a destruí-los também no futuro.[2]

Há também, em decorrência dessa situação, uma raiva embutida contra a Magistratura, produto desta incultura, em especial contra o Supremo Tribunal Federal, que se manifesta de momentos a momentos, alimentada inconscientemente pelos ataques que há tempos vem sofrendo o Judiciário, por aqueles que estão em cargos do Poder Executivo, o que se explica pelo fato de que os processos contra este Poder são abertos pelos seus desmandos na área da saúde, na área do meio ambiente, na da cultura, na da educação e na dos direitos humanos (diga-se, o Judiciário é provocado, e não abre por sua iniciativa processo nenhum; mas os fanáticos contrários ao Judiciário ignoram isso). Somente se referem aos Ministros do STF com ironia, chamando-os de “semideuses”, por qualquer motivo e por qualquer notícia, sem a mínima análise. Não custa dizer: o STF é o guardião da Constituição Federal e esta impõe limites ao Poder Executivo. Assim, os governos de tendência ditatorial elegem como seus inimigos sempre as Cortes Supremas, que os impedem de governar sem limites, até conseguirem por nas Cortes “ministros amigos”, isto é, calarem o Judiciário e transformá-lo em poder periférico ou aparência de poder.

De qualquer modo, há que se observar que os Ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal são indicados pelos Presidentes da República, em seus mandatos, quando a vaga se apresenta, o que deveria fazer dividir a crítica aos magistrados com aqueles que indicam, que continuam na República a se sentirem poderosos e acima das leis.

Não se ouve falar com o mesmo desprezo e sarcasmo de decisões e desmandos do Executivo, ao incentivar o armamento indiscriminado, ao incentivar o descumprimento de regras sobre a saúde advindas da Organização Mundial da Saúde, ao incentivar a discriminação sexual e racial. Existem semideuses no Poder Executivo?

Seja lá como for, é certo que o país é governado pelos três poderes, cada qual dentro de suas esferas, mas o Judiciário, ante os mecanismos existentes na própria Constituição Federal, e falamos do Brasil, não pode ser acusado de atrapalhar o Executivo; no máximo atrapalha a vontade imperial de um governante, independentemente da ideologia ou do partido político deste. Claro que também o Judiciário erra, no entanto existem meios processuais e procedimentais para impedir que uma decisão muita injusta se concretize.

De qualquer modo, o eventual mal funcionamento dos Poderes da República casa-se intrinsecamente com a falta de educação da sociedade, porque dela saem os políticos, os legisladores e os juízes. Neste item não temos nos saído muito bem, porque não se ensina muito o respeito às instituições e à Democracia, bem como, ao direito de cada um limitado no direito do outro.

Existe luz no fim do túnel; é só deixar florir o gênio brasileiro, nas escolas, na cultura, na arte. No jardim dessas áreas (as imagens poéticas me perseguem, quanto mais oprimido me sinto) pode nascer uma árvore frondosa, e nela os ramos que nos levarão ao fruto e à sombra.

Queremos, cada vez mais, juízes independentes, presidentes e governadores estadistas e legisladores preocupados com a causa pública.

TROVA

Quem as suas mágoas canta,

Quando acaso as canta bem

Não canta só suas mágoas,

Canta a de todos também.

                              Mário Quintana

 

 



[1][1][1] Jaerger, Werner. Paidéia – a formação do homem grego. Lugar dos Gregos na história da educação, Marins Fontes, 1995, Tradução de Artur M. Parreira, p.3.

[2] Ibidem, 1328.

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