sexta-feira, novembro 06, 2020

A inteligência em pandemia • Parte 03


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP. Membro da Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa. Membro da Academia paulista de Direito. Desembargador da Justiça do Trabalho. Coordenador da Especialização em Direito Internacional da PUC/SP COGEAE e Coordenador do Grupo de Estudos Direito Transnacional – ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.

  

3. Soberania absoluta/Cooperação

Não há aqui, entre esses termos ou figuras, oposição plenamente configurável, porquanto nos parece mais fácil a compreensão. A soberania é característica essencial do Estado moderno. A capacidade política do Estado não depende de entidades a ele externa e, portanto, do aval de outro estado e/ou organização internacional. Apresenta-se a soberania como uma capacidade interna do Estado de ter a criatividade e iniciativa de tudo que ocorre em seu território, o controle de suas questões, problemas e obstáculos, e a propriedade dos instrumentos de ação para resolver. No plano externo, basta o reconhecimento dessa capacidade por seus iguais (teoria declarativa). Estruturas modernas que podem dividir o poder (power-sharing), como na União Europeia, não são ameaças à soberania, uma vez que entendemos que a própria soberania justifica o movimento de atrelar-se a grupo de estados, à estruturas maiores, delegando poderes, que sem estas inserções seriam próprias e exclusivas do Estado soberano. Viver em uma comunidade internacional, e nesta comunidade agrupar-se em instituições superiores, é prerrogativa soberana dos Estados que podem se submeter A obrigações que lhes pareçam importantes para a sua própria sobrevivência.

Por sua vez, a cooperação internacional com os demais entes da sociedade internacional, nos dias hodiernos, diz respeito à própria incolumidade do Estado para manter-se íntegro e ativo. É certo que a nenhum Estado é dada a possibilidade de submeter outro, invadir suas terras, escravizar o seu povo e assim não acontecerá ainda que o Estado posto na berlinda das relações internacionais não cooperar com a sociedade internacional, mas o encadeamento dos interesses, não só econômicos, é a medida da sobrevivência estatal, que no mínimo se verá impossibilitado de bem gerir e alimentar a sua soberania. Cooperação é o caminho em todos os campos vitais que dizem respeito, principalmente ao ser humano, parte integrante e principal do Estado (território, povo e poder). Sem povo, sem elemento humano, atendido, agindo, respirando, não há Estado.

 

Conclusão 

Voltamos ao mote que deu ensejo a este artigo “A inteligência em pandemia”. Ou nós, brasileiros, saímos rapidamente desse isolamento intelectivo, de entendimento do mundo, de cooperação com os demais Estados, de observação das nossas riquezas, de amparo às nossas matas e espécies animais (flora e fauna) e de, principalmente, defesa do ser humano que habita de norte a sul o Brasil, de engajamento com os tratados e convenções internacionais de que somos parte e de respeito à Constituição Federal, em seus princípios e regras, ou estaremos fadados a uma Idade Média particular nas terras da América Latina, caudilhos de uma concepção irresponsável do poder.

Não há, efetivamente, uma ameaça chinesa, que de pronto devamos afastar, e nem, por certo, a consumação da existência de fabricação de um vírus para dominar o mundo (COVID 19). Este pensamento ou declaração sem lastro, quando posto pelos lábios de nossos representantes, deixa-nos atônitos, a todos, porque remete ao imaginário de uma conspiração internacional contra o globo.

A questão amazônica, tão cara, e sempre provocadora das nossas melhores ações, não pode servir de lema, de dístico, para a defesa da pátria, com a abertura a interesses de grupos internos ou internacionais, para o seu povoamento e desmatamento, bem como o extermínio do elemento indígena e favorecimento de grupos econômicos, pela palavra de próceres da república. Não há aí, inteligência em defesa da pátria, nem afirmação de soberania.

Ricardo Seitenfus, em seu livro “Para uma Nova Política Externa Brasileira” explicita: “...observe-se que mesmo os tradicionais motes que justificam a atuação coletiva internacional, como restauração da democracia ou o combate ao genocídio ou a proteção às populações civis em caso de guerra, encontram infinitas dificuldades de mobilização. Atestam os casos recentes do Haiti e da Bósnia o impasse em que se encontram as possibilidades de ação coletiva, mas sobretudo sua justificação. Deve-se, de pronto, destacar essa ameaça imaginária, até por força da inexistência absoluta de qualquer base jurídica a permitir tal ingerência. Mas também é necessário excluir a já referida, e incrustada no sendo comum nacional, crença de que temos o direito de destruir o habitat natural amazônico, sob o argumento de que a Europa e os EUA já sacrificaram seu meio ambiente em nome do desenvolvimento e restaria ao Terceiro Mundo o sacrifício de preservar a saúde global. Essa manifestação exacerbada de nacionalismo retrógado constitui, na verdade, o exemplo perfeito de afronta ao próprio interesse nacional, que é o de tornar possível a conservação das riquezas amazônicas simultaneamente ao desenvolvimento das populações que lá estão radicadas. Ocorre que o desenvolvimento concebido no Brasil é o que se volta ao enriquecimento potencializado de alguns reduzidos núcleos. Este modelo efetivamente é incompatível com a preservação ambiental da Amazônia. Os interesses dos predadores não podem ser identificados com os interesses do país.” (edição de 1994). Já, naquela época, 1994, estávamos às voltas com os mesmos problemas. A diferença é que, para efeitos internacionais, observava-se a possibilidade de diálogo e de esclarecimento, e que as autoridades constituídas tinham pejo em agir, o que ora não tem ocorrido.

Não sei o quanto realmente melhoramos como país, no conjunto das décadas, dentro do século XX e o quanto ainda estamos devendo no conjunto de tais décadas que marcará o século XXI, pela atuação dos nossos administradores, que podem impulsionar a nação para um futuro melhor, que todos, desde o início da República esperamos, paralisá-la ou, o que é pior, desacelerar o seu efetivo crescimento humano e social, sem os quais não haverá crescimento econômico efetivo. Só por magias de estruturações econômicas sem base humana, passar-se-á a imagem de progresso. Bolo sem real conteúdo, vazio, disfarçado em estrutura sólida.

Tínhamos um caminho, o que trilhamos agora? Celso Lafer, no livro “A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira” analisou: “...a sociedade brasileira mudou de maneira significativa a partir de 1930, em função do conjunto de políticas públicas, inclusive a externa, inspirada por um ´nacionalismo de fins`. O Brasil urbanizou-se, industrializou-se, democratizou-se, diversificou sua pauta de exportações, ampliou seu acervo de relações diplomáticas. Em síntese, modernizou-se e melhorou seu ´locus standi` internacional sem, no entanto, ter equacionado uma das “falhas’ constitutivas de sua formação – o problema da exclusão social (p.112). E concluindo “(e)m síntese, e para concluir com uma metáfora musical, o desafio da política externa brasileira, no início do século XXI, é o de buscar condições para entoar a melodia da especificidade do país em harmonia com o mundo. Não é um desafio fácil dada a magnitude dos problemas internos do país, as dificuldades de sincronia dos tempos na condução das políticas públicas e a cacofonia generalizada que caracteriza o mundo atual, em função das descontinuidades prevalecentes no funcionamento do sistema internacional. É, no entanto, um desafio para o qual o histórico da inserção e da construção da identidade internacional do Brasil, analisada neste texto, oferece um significativo lastro para a ação bem-sucedida.” (f. 122, edição de 1941).

Pergunta-se: O desafio da política externa brasileira, no início do século XXI, de buscar condições para entoar a melodia da especificidade do país em harmonia com o mundo, está sendo enfrentado e superado pelos pronunciamentos oficiais (Presidência da República, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Educação)? Há uma dúvida que se equilibra na aposta de que estamos apenas atravessando um momento de pane e que tudo voltará na senda da estabilidade, da harmonia e da serenidade. Sem isso, a resposta será negativa.

 

Referências:

BOBBIO, Norberto, Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, Editora Unesp, 3ª. ed.

LAFER, Celso, A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira, Editora Perspectiva S.A. 1941.

ROBEIRO, Manuel de Almeida, COUTINHO, Francisco Pereira, CABRITA, Isabel, Enciclopédia de Direito Internacional, Almedina, 2011.

SANT´ANA, Afonso Romano, Epitáfio para o Século X X, Poesia.

SEITENFUS, Ricardo, Para Uma Nova Política Externa Brasileira, Livraria do Advogado Editora, 1994.


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