quinta-feira, março 18, 2021

Triste América

 



Carlos Roberto Husek
Professor da PUC de São Paulo e co-coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


Foi descoberta, descortinada em suas matas e montanhas, planícies e pedras preciosas, larguras de praias e a imensidão de uma costa que corta o Atlântico e o Pacífico. Dividida em duas metades, uma pertencente à Espanha e outra a Portugal, sofreu as agruras e as grandezas desses povos, que deram o melhor e o pior de suas culturas e domínios. Nela, antes de tirarem o véu que a cobria, grandes agrupamentos humanos formaram-se, cidades pujantes floresceram (Incas e Maias) e aborígenes, nativos da terra, que vieram da bruma do tempo e se espalharam de norte a sul, de leste a oeste. Rica na fauna e na flora, e no seu subsolo, e na sua plataforma marítima, alteia-se ao longo de sua privilegiada geografia, repleta de falésias, de promontórios, de ilhas, de rios e florestas, de infinitas espécies de aves e de animais, elevando-se para incorporar, talvez, o Paraíso bíblico, que pôs o primeiro casal sobre a face da Terra.

“Talhada para as grandezas,
P´ra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
- Estatuário de colossos – Cansado doutros esboços
´Disse um dia Jeová:
´Vai Colombo, abre a cortina
´Da minha eterna oficina...
´Tira a América de lá´”1

Todavia, algo deu errado a partir desse descobrimento, porquanto apesar da fartura e da preconizada bem-aventurança, a ganância dos países europeus não se conformou em tirar os panos, e estabelecer um novo caminho para a humanidade; não, os olhos brilharam com o tremeluzir das riquezas, e se entendeu que era preciso explorá-la, abrir picadas nas matas, escavar a terra na sua profundidade, afastar o autóctone, dizimando-os e criando administrações locais para o empreendimento de extração. Das riquezas, perfurando o ventre novo com as antigas armas dos exploradores e dominadores, e estabelecendo a regra primeira da extorsão e do proveito próprio, sem retorno. Tirar tudo da terra, o que a terra dá, secá-la até onde for possível, porque um tesouro estacionado na metade do globo aberto a ganância e à concupiscência. Exploração da terra e do ser humano que já a habitava.

Eduardo Galeano especifica: “Segundo a voz de quem manda, os países do sul do mundo devem acreditar na liberdade de comércio (embora não exista), em honrar a dívida (embora seja desonrosa), em atrair investimentos (embora sejam indignos) e em entrar no mundo (embora pela porta de serviços).”2 E na continuidade de sua análise denuncia: “Agora é a vez da soja transgênica, dos falsos bosques da celulose e do novo cardápio dos automóveis, que já não comem apenas petróleo ou gás, mas também milho e cana-de-açúcar de imensas plantações. Dar de comer aos carros é mais importante do que dar de comer às pessoas. E outra vez voltam as glórias efêmeras, que ao som de suas trombetas nos anunciam grandes desgraças.”3

E do insuspeito George W. Bush, transcreve a seguinte pergunta aos seus companheiros de política: “´Vocês já imaginaram um país incapaz de cultivar alimentos suficientes para prover sua população? Seria uma nação exposta a pressões internacionais. Seria uma nação vulnerável. Por isso,
quando falamos de agricultura, estamos falando de uma questão de segurança nacional.´ Foi a única vez em que não mentiu.”4

Afora, o Canadá, México e Estados Unidos, em melhores condições, e outros territórios e ilhas, que se situam nas Américas, o que temos é uma quantidade de países que não conseguiram, em termos gerais, até os dias de hoje, crescer de maneira sustentável, sempre envoltos em revoluções internas, governos despóticos ou enganosamente democráticos, populações miseráveis e esfomeadas, fanáticos que sustentam ditadores e/ou governantes presunçosamente antiautoritários e liberais, ou socialistas rosados, que só admitem o que é bom para os seus próprios interesses. O povo? É apenas um componente do Estado (território, povo e poder). É só observar a história e o desenvolvimento dos Estados desta parte do mundo, uns e outros, com menores ou maiores problemas, mas quase sempre sem a participação de um povo, esclarecido, alimentado, educado e produtivo.

Aliás, este é o ponto. Povo não esclarecido, não alimentado, não educado e não produtivo serve como massa de manobra para os dominadores, donos do poder e pela elite (econômica e política), que para preservar seus interesses particulares, até sai às ruas, como no Brasil, proclamando que querem a intervenção militar, que querem fechar o Congresso e a Justiça (fenômeno comum em muitos países subdesenvolvidos). Qual o objetivo de tais manifestações? Teatro. Fazer parecer aos olhos do mundo que o povo está insatisfeito com o rumo das coisas. E realmente está, mas com o domínio irracional, com a injustiça de sempre, com a inexistente distribuição de renda, com a fome, com a falta de trabalho, com o desamparo na saúde e com a insegurança. De qualquer modo, os que assim se manifestam não tem sido a expressão legítima do povo. Não há indivíduo evoluído, que a sós ou em grupo, que queira fundamentadamente a ditadura. Temos ainda na América, como um todo, a doença da subalternidade. Comemos o que os nichos do poder entendem suficientes, estudamos o que oficialmente é transmitido, sem possibilidade de discussão, trabalhamos no que nos permitem. Não se pode clamar, discutir, criticar. Elogiar, tecer loas, sim.

Onde está a democracia? Nas instituições formalizadas, é certo, e a partir daí na verdadeira limpeza do ranço demagógico e dominador; entretanto nem as instituições já conquistadas estão livres dos ataques e da manipulação constantes pelos meios modernos de comunicação, inserindo o ódio, a desconfiança, a aleivosia, a incitação ao crime.

O pior é que mesmos os que buscam, em um primeiro momento, acertar as coisas para o bem de todos, acabam na esfera do engano, porque se arvoram como os únicos capacitados para tanto e caem sucumbidos pela construção da imagem de deuses e salvadores, de líderes únicos, por intermédio da qual podem favorecer amigos apaniguados. Não é assim que aconteceu e acontece com a Venezuela, a Bolívia, o Equador, o Paraguai, a Argentina, a Colômbia, o Peru e outros?

O diagnóstico é relativamente simples: economia e instituições democráticas frágeis, corrupção, sede de poder, polarização de interesses, fanatismo, paralisação do crescimento, educação marginalizada.

Aprender a compartilhar ideias, a analisar com sensatez e receber argumentos opositores com sabedoria e disposição para o diálogo, bem como a disposição para abrir o jogo das circunstâncias, com os limites do domínio pessoal ou de grupos, é lição de toda uma vida ou de séculos de história, mas que necessita ser trilhada. Quando, afinal, vamos dar um passo neste caminho?

“Marchar!... Mas como a Alemanha
Na tirania feudal,
Levantando uma montanha
Em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos de ossos,
Nem gládios a cavar fossos
São degraus do progredir...
Lá brada César morrendo:
´No pugilato tremendo
`Quem sempre vence é o porvir!´´”

O que se questiona é: Afinal, o que está por vir?

Disse Pítaco: “Obedece a lei, tu que a promulgaste”. Afirmou Dionísio: “O poder absoluto gera injustiça”.

Pobre e sofrida América Latina, que Castro Alves sonhou grande!


1 Alves, Castro. O Livro e a América
2 Galeano, Eduardo. As veias abertas da América Latina, Tradução de Sérgio Faraco,L&PM POCKET, 2010, p. 5.
3 Ibidem, p. 6.
4 Ibidem, p.7.


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