quinta-feira, junho 10, 2021

Uma jarra de fel, com umas gotas de esperança


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo e coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado 



“A sociedade é como um navio; todos devem contribuir para a direção do leme” Henrik Ibsen (Um inimigo do Povo, ato 1)

 

Vivemos como sempre se viveu na História da humanidade; em época de transição. Cada época tem a sua transição e cada povo o seu momento, e o vive com todas as agruras e inseguranças, vislumbrando no horizonte algumas indefinições e um futuro desconhecido, próximo ou distante. A diferença dos dias atuais é apenas de grau e não de substância. Ressuscitam-se os poetas, os sonhadores, os santos, os revolucionários, e os psicóticos que governam, os sanguinários, os sedentes de poder, os que destroem a história e a cultura, adoradores de imagem, subservientes ao poder da hora, crentes apenas em suas próprias razões e que lideram povos por intermédio de grupos de apoio que dizem apenas e tão somente o que o dirigente maior quer ouvir. Vale a lembrança de que o “Rei quase sempre está nu”, embora se acredite cravejado de ouro, pelo simples fato de ser rei.

O que mudou? O mundo hodierno é tecnológico, com sociedades organizadas e sistemas de alcance do poder, em tese, democráticos e mais complexos, todavia as pessoas, principalmente quando em grupo, revelam o inconsciente das tribos primitivas e agem como se a tinta da chamada civilização não passasse de um colorido superficial que se desmancha no tempo, sem qualquer acréscimo, sem qualquer progresso social.

Por certo, comeríamos nossos inimigos ou aqueles que simplesmente pensam de modo diverso, se a fome batesse em nossas portas. Mudam-se os nomes dos dominadores e dos dominados, mas não se alteram os eventos na essência. Influenciam-nos, ainda, os totens, as palavras ditas teatralmente, os gestos de loucura, com punhos cerrados, o olhar fixando o nada sobre as cabeças, presos talvez de uma imagem embaçada de império e poderio, engando-se e engando a todos. Será que necessitaríamos da ordem dada aos rebanhos para nos dirigirmos a lugar nenhum?

Entretanto, há esperança e a há resposta vindas da própria heterogeneidade social. Em outras palavras, o que produz a automaticidade de ação do gado, também produz o desassossego, a eventual ebulição de novos caminhos e a mudança, e assim vamos a passos de tartaruga mudando alguns aspectos. Melhoramos um pouco, um mínimo, mas com isso alteramos algum elemento dessa composição complexa do viver social.

Tal se dá porque o poder de mando ao mesmo tempo que muda o meio em que acontece, também sofre influência, e por vezes, se vê na contingência de proceder a alguma transformação. 

Os Bonapartes, Hitlers, Mussolines, Maduros, Kim Jong - Ils, e outros aparecem e desabam, e novo ciclo se forma na espiral da política e da vida, com os mesmos espíritos, em nomes diferentes, mas com alguma sensível mudança, em face de uma sociedade cada vez mais multifacetada e atuante.

André-Jean Arnaud, explicita: “Isso não quer dizer que os tomadores das decisões políticas nunca tenham, anteriormente, enfrentado oposição, nunca tenham precisado ceder a reivindicações. (...) Pode mesmo ocorrer  que o tomador de decisão faça integrar, de modo próprio, a opinião pública, na elaboração de suas políticas; mas também que o processo seja o de submeter ao tomador de decisão as tendências da opinião pública; certos autores chegam até mesmo considerar casos em que a opinião pública é simplesmente construída de fora – aquilo que os colegas americanos não hesitam em chamar de ´opinion-making process´, em referência ao processo de tomada decisão, o ´decision-making process´. Quanto às relações entre os tomadores de decisões e os grupos de interesses, é possível constatar a ocorrência de uma virada. Esta última sobreveio, em grande parte, em consequência das desregulações consecutivas ao processo de globalização, assim como das reivindicações sistemáticas da base, sobre questões relativas a temas fundamentais como o mio ambiente, os direitos humanos, e a democracia.(...) Pode-se observar, igualmente, que, entre os atores em jogo na globalização, a sociedade civil ocupava apenas o quinto lugar, depois dos detentores dos direitos de propriedade (os acionistas), as empresas e as organizações suscetíveis de se deslocalizar, os atores territorializados (trabalhadores, sindicatos, redes de PME, coletividades descentralizadas) e os centros de decisão pública (Estados, organizações internacionais). Um pouco mais tarde, entretanto, admitiu-se que, entre os agentes de mudança, a sociedade civil desempenhava um papel de grande importância, mesmo que essa expressão seja ao mesmo tempo imprecisa e ambígua, abrangendo de um lado movimentos bastante distintos segundo a sua natureza, e, do outro, de acordo com o vetor sobre o qual eles intervêm – esses novos atores, com efeito, agem em níveis bastante diferenciados.[1] E, mais adiante, o autor destaca a sociedade civil como ator integral, observando que a sociedade civil não aparece apenas como um conjunto de movimentos de reivindicações, “mas também como a expressão de uma verdadeira vontade de participação por parte dos cidadãos.[2]

Não temo dizer que essa participação é por meio do voto em eleições com regras previamente estabelecidas, e nas quais é possível defenestrar os que têm tendência à tirania e eleger os altruístas, benevolentes, condescendentes, equilibrados, administradores de pessoas e não só de bens e mercadorias.

Outra possibilidade é a grita, o protesto, a ocupação geográfica das ruas para exigência das mudanças necessárias, sem desforço físico, pois as armas devem ser afastadas e substituídas pela palavra e a ação condizente, no apelo à inteligência e ao espírito. No mundo globalizado, não há opressor que consiga por muito tempo esconder-se sob a capa da democracia.

Existem outros caminhos? Talvez! Não cremos. Apostamos que a história ensina e a sociedade muda seu perfil, e como os autoritários e despóticos sofrem de falta de imaginação e quase sempre revelam uma miopia social acentuada, a transformação – ainda que parcimoniosa – termina por acontecer. Sabemos que em conta-gotas, mas é o preço que pagamos para um desenvolvimento consciente. O gosto amargo do fel persiste, porém ao fim e ao cabo, sobra o doce licor do crescimento.



[1] Arnaud, André-Jean. Governar sem fronteiras. Lumen Juris Editora, 2007, p. 222/231.

[2] Ibidem, p. 231 


 

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