quarta-feira, setembro 22, 2021

O discurso de abertura dos trabalhos da ONU

Foto: reuters lucas jackson - onu

Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo

Coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado

 

Preferir fuzil ao feijão bem como não permitir que o Ministério da Educação homenageie o “Patrono da Educação Brasileira”, Paulo Freire, bem como incentivar os procedimentos de milicianos e a aplicação de remédios sem comprovação médica e, não usar máscara, além do reiterado desprezo pelo Judiciário e pelo Parlamento é contrário ao bom senso, à Educação, à Inteligência, à Democracia.

Um país sem feijão e sem educação e que incentiva o uso de armas, é um país sem rumo.

Algumas frases de Paulo Freire, serve como antídoto:

“Glorificar a democracia e silenciar o povo é uma farsa; discursar sobre o humanismo e negar as pessoas é uma mentira.”

“Ninguém liberta ninguém. As pessoas se libertam em comunhão.”

“As terríveis consequências do pensamento negativo são percebidas muito tarde.”

“É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz.”

Completamos:

A única possibilidade do Brasil ser um Estado soberano e ter uma posição de respeito na América Latina e no mundo é de manter-se responsável diante das reivindicações de seu povo e das necessidades internacionais, de diálogo, objetividade e clareza.

A quem interessa a desqualificação do Poder Judiciário? E a quem interessa o fechamento das instituições e os gritos de guerra?

Em seu discurso na abertura dos trabalhos da ONU, o Presidente brasileiro, deixou mais ou menos claro o que pensa; é necessário ler nas entrelinhas, além e não se ateve, com correção, à exatidão dos fatos.

Mesclou conceitos de ordem pessoal e alguns (poucos) de ordem impessoal, fazendo propaganda do governo e não do Estado, embora a tradição é que, o Estado se mostre para o mundo; o que efetivamente, ele, Estado, representa e o que faz para seguir os ditames internacionais; princípios, tratados, acordos, convenções; principalmente as regras sobre direitos humanos (incluindo a saúde e a cooperação internacional, neste ponto), meio ambiente, democracia, bem como, a concretização do Estado Democrático de Direito, com estrita obediência à Constituição do país e respeito aos poderes constituídos. Tal discurso teria o condão de atrair a boa vontade dos demais Estados, das organizações internacionais, da ONU, das empresas e dos investidores em geral. Não foi, no entanto, o que se observou no dia de hoje (21.09.2021).

A fala do representante do Estado na ONU, necessita ser expressão fiel dos atos que pratica em nome do governo e em nome do Estado, sob pena de descrença, decorrente da infidelidade do que é expresso e do que é praticado. Caso tal aconteça, haverá inevitável divórcio entre a fala e a realidade, entre a declaração e os acontecimentos. Conclusão: descrédito, desconfiança, contradição.

Os discursos políticos, como qualquer espécie de comunicação, devem ter o mínimo básico de verdade, e não se pautarem pela ficcionalidade, pela fantasia.

Toda interlocução, exposição, mensagem, aviso, recado, transmissão, colóquio, sermão, oração, prédica, dissertação oral, pregação, deve casar-se com o que se ouve, se escreve, se gesticula. A comunicação é um todo, que não se reduz às palavras, posto que, ao mesmo tempo, expressa os olhos, as mãos, os gestos, as ações, e o silêncio em seus contextos e a loquacidade sem fundamento, abrangendo, enfim, o todo comportamental.

Falar por falar ou calar por calar, ou ainda, comunicar o que não existe ou o que existe não comunicar, é uma dissociação mental, uma incoerência do pensamento e da conduta. E, por mais que se desculpe o viés político, este também tem limites na realidade.

Dizem Paul Watzlawick, Janet Helmick Beavin e Don D. Jackson: “...todo comportamento, numa situação interacional, tem valor de mensagem, isto é, é comunicação, segue-se que, por muito que o indivíduo se esforce, é-lhe impossível não comunicar. Atividade ou inatividade, palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem...(...) A impossibilidade de não comunicar é um fenômeno de interesse mais do que simplesmente teórico. Por exemplo, faz parte do ´dilema` esquizofrênico. Se o comportamento esquizofrênico for observado pondo de lado considerações etiológicas, parecerá que o esquizofrênico tenta não comunicar. Mas como disparate, o silêncio, o ensimesmamento, a imobilidade (silêncio postural) ou qualquer outra forma de renúncia ou negação é, em si, uma comunicação, o esquizofrênico defronta-se com a tarefa impossível de negar que está comunicando e, ao mesmo tempo, negar que a sua negação é uma comunicação. A compreensão desse dilema básico é uma chave para numerosos aspectos da comunicação esquizofrênica que, de outro modo, permaneceriam obscuros. Como qualquer comunicação, como veremos, implica um compromisso e, por conseguinte, define a concepção do emissor de suas relações com o receptor, podemos formular a hipótese de que o esquizofrênico se comporta como se evitasse qualquer compromisso – não comunicando.[1]

Celso Amorim, ensina: “A abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas é um dos momentos mais importantes da diplomacia multilateral contemporânea. Chefes de Delegação dos 192 Estados Membros da ONU, hoje em dia muitas vezes Chefe de Estado e de Governo, apresentam à comunidade internacional suas posições sobre uma vasta gama de temas. Os assuntos tratados vão desde a paz e a segurança internacionais até o combate à fome e à pobreza. É nas Nações Unidas que ressoam, desde 1946, as visões nacionais sobre como a comunidade internacional deve agir para impedir a guerra, tragédia que está na origem da criação da ONU. Ali se articulam consensos legitimadores de temas com crescente impacto sobre a vida cotidiana das pessoas, como as questões referentes ao meio ambiente, aos direitos humanos, à proteção de grupos vulneráveis e à promoção do desenvolvimento econômico e social.[2]

O representante do Brasil primou, no discurso de abertura por fugir da grandiosidade da missão, que deve ultrapassar as fronteiras o Estado.

Alguns pontos podem ser destacados:

Estamos a 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção (há casos graves que estão sendo investigados)”;

O Brasil tem um Presidente” (fala impessoal, referindo-se a ele mesmo) “que acredita em Deus” (o único que elimina todas as demais crenças), “respeita a Constituição” (houve manifesto desejo de fechar o Congresso e o Judiciário);

Um Presidente que deve lealdade a seu povo” (massa de pessoas de uma determinada sociedade, e não só os de determinado partido, ideologia ou religião);

Temos tudo que o investidor procura...(...) tradição, respeito aos contratos e confiança no nosso governo” (este último aspecto necessita ser confirmado);

Qual o país do mundo que tem uma política de preservação ambiental como a nossa?” (e as queimadas, desmatamentos, venda ilegal de madeira?);

Ratificamos a Convenção Interamericana Contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância” (a tolerância, uma das virtudes cristã, das mais apreciadas, deve ser desenvolvida e praticada no dia a dia, por todos aqueles que exercem o poder, principalmente com os que pensam e vivem em situações diversas);

Concede visto humanitário para cristãos, mulheres e juízes afegãos” (não cremos que a religião possa ser um discriminador político-jurídico para fins humanitários);

Não entendemos porque muitos países com grande parte da mídia, se colocam contra o tratamento inicial” (Muitos países, não, quase todos, incluindo orientações da OMS. Além do mais, a reiterada atividade em um tratamento inicial sem eficácia comprovada; o descalabro na experiência com o povo amazonense, e hospitais que impingiram o Kit-Covid e subnotificaram as mortes, como de outras doenças, que não a advinda da Covid 19, por tratamento inicial).

Não dá para entender?

Consideramos que o discurso na abertura da ONU, pelo representante brasileiro, não necessitaria e não precisaria falar de nossas mazelas, mas explicitar apenas os bons aspectos (e muitos) que o Brasil oferece e que, efetivamente pode liderar.

Não se trata de esconder o que há de ruim ou inconveniente (qual país não os tem?), mas ressaltar as nossas efetivas e exequíveis possibilidades. O que não é adequado, e foge ao padrão e ao que é esperado em tais eventos, é o apostolado pessoal do próprio governo, objetivando a fala para um público interno específico, em época pré-eleitoral.

Em todas as aberturas de trabalho da ONU, o Brasil sempre se apresentou de forma íntegra, e sempre apoiando o concerto internacional, a paz, a solução pacífica dos conflitos, mostrando-se com uma possível liderança na América, acolhendo todos os pensamentos, filosofias e religiões. Hoje, estamos marcados pelo sectarismo, pela visão estreita, pelo uso abusivo de razões pessoais, por mensagens sem valor universal. Falta-nos amplitude, magnitude, nobreza, dignidade, generosidade, superioridade, humildade.

Tudo se traduz bem no gesto do Ministro da Saúde, parte da comitiva do Presidente, apontando o indicador, para os que protestavam ao lado do carro da comitiva; do gesto do Ministro das Relações Exteriores, imitando com as mãos uma arma; dos gestos dos acólitos do Presidente, quando internamente também apontam para os interlocutores como efetuando um disparo de arma; das falas imbuídas de inflexibilidades, partidarismos, intransigências, e de torpeza e sordidez no mesmo âmbito, contra homossexuais, negros e mulheres; afora o ódio, o preconceito, e a valentia (armas, armas, armas) com que são tratados os desafetos.

Esta é a nossa atual comunicação, para o Brasil e para o mundo, que nem as palavras inflamadas, nem os discursos e nem os eventuais silêncios disfarçam.

Que as Nações Unidas relevem e possamos, apesar de tudo, seguir em paz!!  

    



[1] Watzlawick, Paul, Beavin, Janet Helmick e Jackon, Don D. Pragmática da Comunicação Humana, Do Instituto de Pesquisa Mental de Palo Alto, Califórnia, Tradução de Álvaro cabral,Editora Cultrix, 1967, 2002, p. 44 a 47.

[2] Corrêa, Luiz Felipe de Seixas, organizador. O Brasil nas Nações Unidas. Apresentação da Segunda Edição, por Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores, Editora Brasília, 2007, p. 13.


 

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