quinta-feira, abril 14, 2022

Migalhas “odipianas”


 

Por Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado


 
1.    As coisas se passam na sociedade interna e na sociedade internacional de igual forma. Impressiona a mentira, publicamente posta, com foros de veracidade e de razões fundantes. Putin vê-se diante de um impasse, cândido, quer fazer a paz, mas Zelenski não deixa, porque o presidente ucraniano não compreende que parte da Ucrânia, ou toda ela, possa pertencer à Rússia. Por outro lado, a guerra deve continuar até os ucranianos entenderem que quem deve dominar é a Rússia. A lógica de Putin é a da “terra arrasada”. Depois de tudo destruído, é possível ir às negociações. Negociações sobre que pontos? Afinal, quem começou a atacar quem, e por quais motivos: regiões separatistas, OTAN, países ocidentais, medo, Guerra Fria? Tudo justificável sob o ponto de vista histórico, sociológico, mas não sob o do Direito. E as milhares de pessoas que se encontram sem casa, sem água, sem comida, sem luz, sem cidade, vivendo nos porões como ratos, ou cruzando os campos minados em busca de abrigo em outros países? E os civis mortos, espalhados pelas ruas? Tudo se explica, em um contexto histórico e sociológico: ucranianos são russos. E, se são russos, como é possível matá-los com as próprias armas russas? A lógica do poder e do domínio busca amparar-se erroneamente no Direito, nos princípios do Direito, como no da soberania dos povos, e do direito do Estado soberano. É o mesmo que dizer –como em passado recente disse um Presidente brasileiro– “faço a democracia, nem que seja à força”. Todas as pessoas têm o direito de falar, desde que concordem com o discurso oficial. É a sana dos dominadores, para os quais qualquer regra é interpretada para a expansão e manutenção do poder.
 
2.    A atuação norte-americana em passado recente, desprezando em algumas situações o princípio da soberania dos Estados e da não-intervenção nos assuntos internos de outro país, como apontam alguns, não é suficiente para justificar a ação russa na Ucrânia. Este raciocínio nos levaria a tempos repetitivos, somente com a mudança de personagens, sem qualquer evolução. É necessário terminar o círculo de desastres humanitários e de quebra da cooperação e da convivência entre os países, em nome do poder. O Direito Internacional, apesar de seus defeitos de estrutura e funcionamento (p. ex. Conselho de Segurança da ONU), funda-se em princípios que são naturalmente compreendidos pelos povos civilizados. Tudo, entretanto, depende dos interesses em jogo e das interpretações. Há uma política internacional que deve subordinar-se à ordem internacional, que se baseia em tratados internacionais, constituída dos grandes organismos de associação dos Estados, que busca o respeito ao que foi pactuado (pacta sunt servanda) e que se volta, na atualidade, para a promoção dos seres humanos. É a esperança.
 
3.    A Teoria dos Sistemas, do sociólogo alemão Niklas Luhmann, diz que a sociedade moderna é um supersistema social, dentro do qual a economia, o direito, a ciência, a educação e outras áreas constituem subsistemas, dotados de particular estrutura. E complementa o raciocínio teórico, observando que cada um dos subsistemas possui o seu próprio código, sendo o Direito um mecanismo de estabilização das expectativas de comportamento. Separa-se a Política (um subsistema) do Direito (outro subsistema) e ambos da religião, e todos da economia e assim por diante. Todavia, por exemplo, se a Política é um subsistema que tem suas próprias razões, como cada um dos demais, há que se inquirir da comunicação entre eles porque todos devem conviver, mais ou menos, de forma harmônica, na sociedade. Nos enganaríamos, talvez, ao pensar que o Direito teria competência e vocação para fazer a costura de tais áreas, formando um tecido jurídico básico de sustentação? Deve-se pensar. De qualquer modo, não podemos concordar com fundamentos políticos, sociais ou econômicos de sustentação de ações de guerra.
 
Tradicionalmente o recurso à força no Direito Internacional era visto como mero fato; depois passou a ser uma prerrogativa do Estado soberano; hoje tende a ser considerado como um ilícito internacional, principalmente quando causa sofrimento a mulheres, crianças e idosos, e à população civil em geral, porquanto haverá crime contra a humanidade. Podemos afirmar que o ser humano é, no mundo atual, mais importante que os Estados, e que estes devem subordinar seus interesses maiores às sociedades que lhe servem de base? Ou será que continuamos no mundo dos Estados –pessoas jurídicas de direito público, criadas por forças populares, grupos beligerantes, organizações partidárias e institucionais– criaturas que, em última análise, se afirmam em documentos e papéis? Qual é o mundo real que vivemos: o Direito dos Estados ou o Direito dos seres humanos? Um
outro Direito têm mundos incomunicáveis?

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