quinta-feira, agosto 25, 2022

O Brasil e a África

 


Por Carlos Roberto Husek – professor de Direito Internacional da PUC/SP e um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado



A nossa história está intimamente ligada aos povos da África, como é de conhecimento de todos, ainda que alguns setores da sociedade brasileira – setores dominantes – não queiram reconhecer essa verdade.
O Brasil é um país atlântico, com mais de oito mil quilômetros de costa, e pela estrada líquida, fazendo sulcos de sangue e lágrimas, durante séculos os escravos foram trazidos, como meras mercadorias. Concentrados, de início, ao longo de toda essa orla, tal comércio foi alimentado pelos conquistadores portugueses. Entre as grandes margens do Atlântico (Brasil, África e Portugal) formaram o triângulo mercantil das peças negras, que proporcionaram a miscigenação de povos, resultando um binômio contraditório: riqueza cultural e sofrimento.

O embaixador Alberto da Costa e Silva, observando a circulação entre um e outro continente, escreveu “Um Rio Chamado Atlântico.”[1] Neste rio separaram-se as famílias, e quilômetros de água e sal queimaram os olhos dos que partiram e dos que ficaram na distância da saudade e da desventura.
Castro Alves, sentido a dor dos que vinham e dos que ficaram, versejou (1865)[2]:
 
Eu sou como a garça triste
Que mora a beira do rio.
 
As orvalhadas da noite
Me fazem tremer de frio.
 
Me fazem tremer de frio
Como os juncos da lagoa:
Feliz da araponga errante
Que é livre, que livre voa.
 
Que é livre, que livre voa
Para as bandas do seu ninho,
E nas braúnas à tarde
Canta longe do caminho.
 
Canta longe do caminho
Por onde o vaqueiro trilha,
se quer descansar as asas
Tem a palmeira, a baunilha.
 
Tem a palmeira, a baunilha,
Tem o brejo, a lavadeira,
Tem as campinas, as flores,
Tem a relva, a trepadeira.
 
Tem a relva, a trepadeira,
Todos têm os seus amores,
 
Eu não tenho mãe, nem filhos,
Nem irmão, nem lar, nem flores.
 
Alimentamos historicamente esse drama e, nos dias de hoje, ainda não conseguimos desfazer os caminhos, que deixaram marcas que não se apagaram, porque continuam os pretos a fazer parte da base da pirâmide social, e a política de quotas não conseguiu avançar na melhoria das condições de vida dessa população.

Internamente, portanto ainda não limpamos as marcas do tráfego de escravos, porque as gerações que vieram do escravizado carregam no lombo o peso dessa história, e as gerações que vieram do branco dominador, embora façam o discurso da igualdade, conservam para si os privilégios já conquistados e não abrem o mínimo espaço para o crescimento econômico e intelectual dos demais.

Na Política Externa o Brasil tem desenvolvido tímida aproximação da África, o que aconteceu, principalmente no governo de Lula. Tal aproximação é de importância fundamental, porque poderia desenvolver uma cooperação rica em todos os setores, sem concorrência com os Estados Unidos da América, e ou com países europeus, e consolidaria a própria formação da identidade nacional, um país sul-americano e atlântico, pacífico e integrado aos seus vizinhos, e, principalmente, que deve reconhecer a grande maioria de sua população preta, e a quer fazer – uma vocação! – parte inerente da composição social.

Outra não poderia ser pretensão, porquanto o domínio, pura e simples do branco, reservando nichos de pequenos espaços aos pretos, contrariaria os princípios estampados na Constituição Federal, as convenções de direitos humanos assinadas pelo Brasil, e as organizações internacionais a que pertencemos: ou bem nos reafirmamos como livres, democráticos, não-racistas, ou ficaremos ao lado daqueles que em seus sonhos e tentativas, buscam consciente ou inconscientemente a manutenção de colonização das raças, consideradas inferiores.

As ideias, neste sentido, estão apartadas das discussões nacionais. Não se trata de assoprar a brasa que jaz no fundo da grande fogueira histórica de queima da liberdade, ora visualmente apagada e esfumaçada, que ocupou o palco atlântico com os navios negreiros; antes, trata-se de tirar os gravetos que se acendem, em todos os lugares, por falta de horizontes e perspectivas.
Somente a coragem de oferecer as mesmas oportunidades escolares e de vida aos menos favorecidos – em geral pretos – para que a sociedade brasileira possa se equilibrar e se tornar, efetivamente, uma grande nação.

Manter os guetos, favelas e nichos é estimular, munir e nutrir as diferenças, e tornar cada vez mais distante os princípios postos na Lei Maior brasileira.

Temos algumas das formas de superar este abismo entre a Lei e a vida:  internamente, é a prática concreta dos princípios e regras constitucionais, o que não é tarefa impossível, basta vontade política, a começar pela educação de base, e externamente, é a busca de maior intercâmbio entre Brasil e África, econômico, político, cultural e institucional.

Sob este último aspecto escreveu Paulo Antônio Pereira Pinto, diplomata aposentado, que serviu no Gabão, Moçambique, Africa do Sul, entre outros países: “Neste momento histórico, temos, portanto, a chance de consolidar no Atlântico Sul, uma região de paz e estabilidade, democracia e desenvolvimento...(...) precisamos tornar o Atlântico Sul cada vez mais um vetor de desenvolvimento sustentável, com inclusão social...(...) A crescente consciência de identidade atlântica brasileira e das potencialidades do espaço Sul-Atlântico deve animar-nos a investir cada vez mais nesse tradicional eixo da política externa brasileira. Esperamos, assim, que se adensem cada vez mais os vínculos entre países do Atlântico Sul, e que possa ser o Oceano um vetor do desenvolvimento sustentável da região.

Por que não fazer desta nação atlântica, que banha, com suas terras, vasta parte oceânica, e que tem pontes e dívidas históricas além-mar, um polo de desenvolvimento no binômio Brasil-África?

O que nos endivida, também nos fará progredir.


[1] e Silva, Alberto da Costa. Um Rio Chamado Atlântico. 2003, Nova Fronteira. 
[2] Alves, Castro. (Poeta dos Escravos). Os Escravos, in Tragédia no Lar, 1865, Poesias Completas, Saraiva, 1960.



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