sexta-feira, fevereiro 05, 2021

A RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DO GOVERNANTE

 


Por Fabrício Felamingo

 

Nos nossos últimos artigos temos falado da relação entre o Direito Internacional e o chamado “bom governo”, no sentido de que há uma correlação direta entre o grau de inserção internacional de uma nação e seu nível de democracia. Os extremos ajudam a entender. A ninguém ocorre defender que a Coreia do Norte seja um país democrático ou sem abuso de poder autoritário, com os indefectíveis abusos contra os direitos e garantias fundamentais de seu povo. E seu grau de inserção internacional é, pode-se dizer, nulo. Não apenas não tem relações diplomáticas com a generalidade das nações como, com aquelas com quem ainda tem algum grau de contato, sempre o faz na base de encontros secretos. Uma exceção foi a tentativa de aproximação com os EUA feita durante o governo Trump, inclusive com encontro pessoal dos líderes de ambos os países, em que resta a dúvida sobre quem estaria mais “usando” o outro, se o chefe de Estado norte-americano (buscando capitalizar através de um caminho inusual para a “paz” entre as Coreias) ou o ditador norte-coreano (tentando dar algum polimento ou verniz internacional à carcaça ditatorial). Fato é que essa pouca (ou nenhuma) inserção internacional norte-coreana de forma alguma faz bem à democracia (inexistente) naquele país.

Uma faceta dessa inserção internacional é a possibilidade de o Estado ser internacionalmente responsabilizado por descumprimento de compromissos assumidos na esfera internacional. O século XX foi de grande evolução nesse tema, com a tentativa de pavimentar formas de responsabilização que não passassem pelas guerras, ou seja, uma institucionalização não apenas das normas na esfera internacional (os tratados e acordos ratificados em especial) mas também de um sistema de monitoramento e controle do cumprimento de tais normas, com eventual possibilidade de aplicação de sanções aos eventuais descumpridores.

Porém, falamos aqui da responsabilização do Estado na esfera internacional, uma vez que não há formas de responsabilização de pessoas físicas, governantes inclusos, de maneira geral. O Direito Internacional se ocupa de responsabilizar se for o caso os seus chamados sujeitos de direito, e estes são, por excelência, os Estados (e também as Organizações Internacionais e outras coletividades, mas não entraremos nesse detalhe aqui). Os seres humanos são sim sujeitos de Direito Internacional (num entendimento que foi se construindo especialmente na segunda metade do século passado), mas especialmente considerados como sujeitos de “direitos” e não tanto de “deveres”, ou seja, o Direito Internacional regula muito mais os Estados para que estes confiram e garantam direitos aos seres humanos (os tratados de direitos humanos são o exemplo máximo disso, mas as normas da OIT, para ficar apenas em uma organização internacional, também o são).

Há, porém, algumas exceções, sejam as históricas (das quais o Tribunal de Nuremberg é o exemplo mais acabado) ou as institucionalizadas, das quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) é o exemplo único atualmente. O TPI cuida apenas e tão somente de julgar pessoas, e nunca Estados, responsabilizando-as pelo eventual cometimento de crimes tipificados em seu Estatuto. Nada mais do que isso (como se pouco fosse), com o poder de encarcerar os condenados. É nesse contexto que se tem falado muito sobre a possibilidade ou não de o atual Presidente brasileiro ser formalmente denunciado e julgado por crime de genocídio, cometido na forma de sua (não) condução do País na luta contra a COVID-19, o mal que assola o mundo desde o final de 2019. As opiniões divergem mas é inegável que o critério técnico está atendido: o Brasil ratificou a Convenção de Roma de 1998 (e portanto fazemos parte do TPI) e a Constituição Federal, em seu artigo 5º, parágrafo 4º, assegura o reconhecimento e submissão à jurisdição de tribunal penal internacional ao qual o Brasil tenha manifestado adesão. Ao TPI, portanto, caberia a análise e julgamento do mandatário brasileiro: se há ou não crime, compete ao TPI julgar, baseado na tipificação do crime de genocídio previamente existente (e aceita pelo Estado brasileiro) no artigo 6º daquele estatuto, ou mesmo de crimes contra a humanidade (artigo 7º). Seria vexatório ao Brasil um Presidente ser ali julgado, mas ao mesmo tempo seria exemplar para os governantes e futuros governantes que algo assim fosse ao menos examinado pelo TPI, uma verdadeira lição de que genocídios e crimes contra a humanidade não se fazem apenas com baionetas e soldados mas também com o mero uso da voz e autoridade. Mal à democracia pelo mundo com certeza não faria.


quinta-feira, janeiro 28, 2021

Séculos obscuros de Servidão: uma reflexão

 


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo

E um dos coordenadores da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.


Séculos obscuros, eis o passado africano, uma cortina de fumaça é o presente e o futuro continua envolto em neblina; se os EUA nasceram para dominar a América e o mundo; se a Itália após a unificação passou a ter cor e personalidade, o que antes concentrava-se em Roma; se o continente europeu a partir do século dezenove passou a dominar a história com a composição de vários países que se reconheceram grandes – Espanha, Portugal, Inglaterra, França, Grécia (que tiveram passados de glória), Alemanha, que foi grande em certa medida, não pela guerra, mas pela organização, e outros que dignificaram o ser humano e passaram para o século XX como arautos da civilização e da eficiência, em países como Holanda, Suécia, Suíça; se a América central e do sul conheceram histórias e mais histórias, nos seus domínios colonizados e revelaram  países de língua espanhola, com suas riquezas culturais e diversidade étnica, se o Brasil, que bem ou mal, na expansão de suas terras teve e tem presença no mundo em vários aspectos, embora, ainda, fora do concerto político internacional como membro que deva ser respeitado e ouvido;  se a América do Norte tem um trio de países –ainda que se evidencie o domínio estadunidense– EUA, Canadá e México, que se posicionam nessa parte do mundo, de forma reconhecida; se a Ásia fala alto pelo Japão e pela China; se todo o globo terrestre, de algum modo, revelou-se pelas línguas de seus povos e de suas culturas, o mesmo não acontece com o continente africano, que teve sim sua história, principalmente nos povos que vivem no deserto e em torno dele, mas que nos povos da África subssariana, denominada negra, continua ainda sob espessas cortinas.  Afinal, o que é esta África, de povos parecidos pela cor da pele, de diferentes tribos e etnias, que ora se escondem, ora surgem, ora falam, quase turgidamente, em rumores, como águas de riacho, que se ouvissem apenas na alta madrugada, distantes, e envolvidas por montanhas e floresta. A África que só aparece nos noticiários por suas ossaturas enterradas nas camadas do passado, e que deram origem, dizem os antropólogos, à humanidade, mas que agora tem o ventre seco e murcho de onde saiu o bicho homem que povoou o mundo e não mais retornou às suas origens.

Essa mãe abandonada pelos filhos que produziu, se exaspera e se digladia, grita ainda pelo deserto, e aqueles que trouxe ao mundo, espalham-se pelos continentes, e buscam uma voz, uma representação e ainda são escravizados ou semicivilizados pelos padrões das cidades, ditas modernas. Século obscuros, eis o passado da África Negra, cortina de fumaça o presente, e envolto em neblina o futuro.

Por que se tornou escrava e esquecida? Por que desprezada? Por que seus filhos de pretos se tornaram indesejados? Afinal, não seríamos todos irmãos de um passado comum? Ou será que alguns vieram das estrelas, de mundos impensados, em navios de outras esferas e que aqui implantaram suas sementes, desprezando o animal que já existia e já vivia na Terra? Porque não há explicação lógica para os eventos presentes, salvo, talvez, uma fantástica interpretação das origens de astronautas vindo de outras galáxias e nestas paragens encontraram o povo que realmente o habitava, o africano. E o africano é uma denominação que mais obscurece o entendimento, porque sob tal denominação há uma variedade de povos e de nações.

Nos fixemos na África Negra, que nasceu sobre o signo do comércio e da exploração, de todas as mercadorias possíveis e imagináveis (especiarias, pedras, marfins, peles, óleos, animais) até a oferta de escravos. Dizem que um faraó da quinta dinastia tinha entre os seus comandantes, um, chamado “Baurzeded, que lhe trouxe das terras do sul, um anão (negrilho), o primeiro conhecido na história do Egito faraônico...(...) estamos nesse caso visivelmente em presença não de um comércio regular nem de um tráfico escravagista, mas de uma operação excepcional de rapto, cercada de todas as garantias para evitar a perda ou a fuga da preciosa mercadoria, objeto de curiosidade.

Na verdade, o tráfico de escravos veio por caminhos muito antigos escavando uma história que é difícil entender, com os mulçumanos, árabes, europeus, todos eles envolvidos com o comércio de escravos. Portugal envolveu-se como traficante, fez as terras da América do Sul banharem-se de sangue, quando as ações eram extremas e disseminou a obediência cega e a subserviência ajoelhada a medo. O que resultou? Uma sociedade extremamente injusta, desagregada, subdividida em camadas, em que no ápice da pirâmide alguns poucos dominam, os mesmos, de cepas antigas e/ou assemelhadas. Vieram dos reis e imperadores, dos barões e condes e baronesas e condessas, que enquanto os homens negros serviam ao patrão, as mulheres negras serviam de baba e ama de leite das crianças brancas, serviçais e damas de honra, e satisfaziam os apetites de seus amos, produzindo filhos proscritos, que geraram outros que não conheceram suas raízes, e que afeiçoaram a todos os serviços e a todos os mandos.

Não se olvide que quando o comércio foi instalado, os próprios negros, chefes e poderosos em suas terras comerciavam com portugueses, espanhóis e outros a entrega de sua gente em troca de produtos. Portanto, o signo da escravidão negra, revelou-se mais como um desenvolvimento comercial dos interessados, independentemente da cor da pele. Na verdade, a escravidão, recentemente, na história (séc XVI), tornou-se quase sinônimo de escravidão negra. Antes, já existiram escravos, não negros, na Grécia, em Roma, nos Balcãs, no sul da Rússia, no Oriente médio; alguns escravos tinham a pele branca e os olhos azuis. Tornou-se mais decisivamente negra de tempos para cá, o que faz inquirir sobre a causa.

É Laurentino Gomes quem esclarece, incluindo a etimologia da palavra: “Escravo, em português; esclave, em francês; schiavo, em italiano; slkave, em alemão; ou slave, em inglês, são todas palavras derivadas do Latim slavus, que, por sua vez, servia para designar os slavos, nome genérico dos habitantes da região dos Balcãs, Leste Europeu, sul da Rússia e margens do Mar Negro, grande fornecedora de mão de obra cativa para o Oriente Médio e o Mediterrâneo até o século XVIII. Ou seja, nesse caso, os escravos eram geralmente pessoas brancas, de cabelos loiros e olhos azuis. Entre 1468 e 1694, os tártaros da Crimeia capturaram cerca de 2 milhões de russos, ucranianos e poloneses. As importações de escravos brancos das regiões vizinhas ao Mar Negro pelos otomanos de Istambul foram de 2,5 milhões entre 1450 e 1700. No ataque a Viena, em 1863, os otomanos capturaram cerca de 8 mil escravos cristãos, todos igualmente brancos.”[1]

Todavia, em nossos dias, concentramos na escravidão negra porque esta, de certa forma, não terminou. Os outros povos aqui mencionados conseguiram a liberdade, formaram suas nações e Estados, os negros continuam divididos na África e disseminados de forma inferiorizada em diversos países do mundo, incluindo o Brasil.

Trata-se da cor, mas também do poder político e, principalmente, do poder econômico, bem como a falta de estudos, a lacuna intelectual dos pensadores atuais sobre a África negra e seus descendentes. Não há como, em pouquíssimas gerações – falamos do Brasil – de 1500/1600 para cá, o preto se ver alforriado para integrar-se na sociedade, como uma de suas cabeças condutoras, porque quase sempre encontra obstáculos, que não permitem sua evolução. A quota nos diversos setores é um passo, mas um passo irrisório, uma vez que a base social, a começar pelo ensino público, a saúde e a segurança, lhe é vedada no mínimo existencial, para o verdadeiro progresso.

Ainda assim algum progresso, com o andar de tartaruga, vislumbra-se na sociedade contemporânea. Tivemos no Brasil, alguns que se tornaram luzes para os de sua raça: André Pinto Rebouças (jornalista e engenheiro, líder abolicionista, que esteve à frente da construção de portos, ferrovias e obras ferroviárias); Sueli Carneiro (professora universitária, doutora em Educação, ativista do movimento social negro, fundadora do Instituto da mulher negra); Carolina Maria de Jesus (escritora, moradora em favela, que escreveu o consagrado “Quarto de Despejo”); Machado de Assis (cronista, contista, poeta, romancista, um dos mais consagrados escritores no Brasil e no mundo); Lélia Gonzales (Doutora em Antropologia Social e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado); Luiz Gama (abolicionista do século XIX, fundador de jornal e do Partido Republicano Paulista); Antônio Bento de Souza Castro (advogado, promotor público, juiz de direito, líder abolicionista, organizou o movimento dos Caifases, enviando missionários para incentivar a fuga de escravizados em fazendas de São Paulo); Nei Lopes (advogado, compositor, escritor, pesquisador; escreveu A enciclopédia brasileira da diáspora africana e o Dicionário escolar afro-brasileiro, entre outros escritos); Abdias Nascimento (militante no combate à discriminação racial, participou da Frente Negra Brasileira, como movimento político negro, fundou o Teatro Experimental do Negro, foi deputado federal e senador); Milton Santos (professor, advogado, pensador, escritor, geógrafo – talvez sua expressão maior -foi preso e exilado por participar de movimentos de esquerda na época da ditadura militar; um dos maiores nomes da renovação geográfica brasileira), dentre outros.

É necessário sair desse século de obscurantismo racial e escravocrata, na economia, na segurança, no ensino, na intelectualidade, na direção das empresas e dos governos, na literatura, na filosofia, e nos mais diversos campos sociais. Temos a riqueza da mistura de raças, que ainda não se fez de efetiva mistura. Necessitamos agir, e agir não com violência física – que não leva a nada, e só alimenta o ódio (vide EUA) – mas com a violência do espírito para modificarmos de vez a construção básica de nossa verdadeira nacionalidade: alimento, emprego, estudo, para todos e, por certo, para os mais pobres – em sua grande maioria negros– ou entraremos século afora, daqui para o século XXII, ainda, intrinsecamente, escravocratas.



[1] Gomes, Laurentino. ESCRAVIDÃO. Vol. I, Globo Livros, 1ª. ed. 2019, p, 66.




quarta-feira, janeiro 20, 2021

A Vacinação política

 


Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Coordenador e Professor no curso de pós-graduação latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional Público e Privado). Professor de Direito Empresarial na ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).

 

Enfim temos duas vacinas aprovadas pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) do Brasil depois de muito se discutir sobre porcentagem de eficácia, o que seria sem dúvida razoável e importante dentro do contexto técnico, mas infelizmente ao mesmo tempo em que discutimos também sobre a sua capacidade de transformar o mundo Marvel em realidade por meio de mutações no DNA dos seres humanos vacinados. Pois é, clara é a necessidade de que o ser humano precisa de educação, não somente a formal, para saber a diferença entre a realidade e o ridículo.

Por óbvio, uma campanha de vacinação deve existe com caráter informativo pelo Governo, em todas as suas esferas, e com senso de urgência, para que as pessoas possam se conscientizar de sua importância, tendo em vista a realidade posta e, por seu livre arbítrio e, pensando na comunidade como um todo, tomar a decisão de se vacinar em prol da coletividade. Ao contrário disso, o que testemunhamos foi o absurdo de fomentar que a vacinação seria o fim dos tempos e da raça humana, desconsiderando totalmente o fato de que a pandemia em si já havia chegado antes e poderia desempenhar este papel.

Saindo do campo da educação mencionada acima e ficando somente no campo da informação, a OMS (Organização Mundial da Saúde), organismo multilateral que faz parte da estrutura da ONU (Organização das Nações Unidas), há um bom tempo já vem se manifestando sobre a pandemia, informando sobre as formas de evitar a doença enquanto a vacina ou um tratamento não chegam, de maneira a proteger os seres humanos do contágio, cumprindo assim o seu papel de zelo e padronização das recomendações internacionais no âmbito sanitário internacional, vez que o risco do contágio é global.

Mesmo assim, ao desempenhar seu papel institucional permitido pelas várias soberanias que a formam no cenário da comunidade internacional, a tal harmonização é difícil em função do palanque político internacional, cuja lógica é, no mínimo confusa, quando avaliamos que o direito à vida não é somente um princípio do ONU, mas também uma garantia constitucional de várias soberanias mundiais democráticas, inclusive o Brasil.

Portanto, dentro deste contexto de pandemia e de defesa à vida, não imaginamos espaço para discussões rasas sobre a natureza de tal recomendação da OMS ser meramente uma recomendação técnica em que cada governante soberano pode simplesmente considerar ou não, sob a desculpa jurídica e hipócrita de ser mera soft law e não hard law internacional, por se basear em opinião técnica, médica, sanitária e científica que pode simplesmente ser inobservada por países soberanos, pelo simples fato de discordar por discordar, quando os fatos e impactos mundiais não permitem qualquer tipo de contestação e pelo fato de que as soberanias neste momento precisam coletivamente agir para encontrar uma saída ao encontro do direito à vida.

Enfatizo que a irresponsabilidade política não pode se esconder atrás de vieses constitucionais retóricos e hipócritas de direito à soberania, quando na verdade a população mundial que vem morrendo e o direito à vida é desconsiderado. Não cabe a qualquer Governo, em respeito ao direito à vida negar a pandemia, ao mesmo tempo que não cabe a qualquer Governo negar o direito à vacina, seja em relação ao planejamento intempestivo quanto ao início do plano de imunização, seja em relação ao fornecimento de insumos farmacêuticos ativos (IFA) capaz de salvar vidas.

Nesta linha de raciocínio, não seria razoável esperar que China e Índia utilizem este momento em que vivemos para tripudiar ou barganhar com o Governo ou a diplomacia Brasileira antes de fornecer tais insumos para a produção da vacina no Brasil, simplesmente para fazer um jogo internacional, jogo este que proporcionaria a morte de muitos brasileiros.

Quero acreditar que neste cenário internacional existe somente uma falta momentânea de insumos decorrente da demanda grande por algo que se tronou tão ou mais valioso que a água ou o oxigênio que respiramos e que precisa de um tempo razoável para que o fornecimento se normalize, proporcionando assim uma imunização global que salve vidas.

Num momento como este, a politização da vacinação não favorece a ninguém à resolução do problema da pandemia. Assim, deveríamos usar este momento de dificuldades humanitárias para uma maior aproximação diplomática internacional fortalecendo  princípio da cooperação internacional evitando por completo o isolacionismo.

 

 

 


sexta-feira, janeiro 15, 2021

DIREITO INTERNACIONAL E O BOM GOVERNO

 

Por Fabrício Felamingo

 

Data de 1942 a primeira edição do “Tratado de Direito Administrativo” de Themistocles Brandão Cavalcanti. A 5ª edição (outras se seguiram), que cito aqui, data de 1964. Chamo a atenção disso pois já há tantos anos fazia esse autor a distinção entre o Direito Internacional Administrativo e o Direito Administrativo Internacional. Nomenclaturas à parte, o mesmo ocorre em outras áreas (Direito Econômico Internacional ou Internacional Econômico, Direito Penal Internacional ou Internacional Penal, para citar dois exemplos).

A simples discussão dessa distinção já chama a atenção, já que é pouco difundida em nossa literatura a intersecção entre o Direito Internacional e o Direito Administrativo. Mas o próprio Brandão Cavalcanti já alertava que questões como direito dos estrangeiros, direito de imigração, anexação de territórios, regimes administrativos, empréstimos externos entre outras questões anotadas por ele, são resolvidas ou pelo direito interno ou por tratados e convenções, completando que “(a)s fronteiras entre as duas disciplinas são cada vez mais flutuantes, principalmente depois que se indicam nos sistemas constitucionais, princípios de ordem econômica que transcendem da estrutura política do Estado e tomam caráter mais regulamentar, no âmbito da economia e da administração”.

Em nosso último artigo, trouxemos a ideia de que há uma correlação direta entre a inserção internacional de uma nação e seu grau de democracia. Penso que podemos, atualmente, fazer a mesma correlação entre a inserção internacional de uma nação e seu grau de boa administração, no sentido de entendermos se há, nos dias atuais, como administrar um Estado e mantê-lo alheio, à parte, ao largo do que ocorre mundialmente. Haveria como garantir o bem maior aos súditos do Estado (o povo) sem se atentar ao fato de que hoje a economia e a administração mesmo do Estado são fluidas, transcendem fronteiras como já indicava décadas atrás Brandão Cavalcanti?

Na sua “Política”, Aristóteles apresentava a questão sobre o bom governo e o mau governo: “é mais conveniente sermos governados pelo melhor homem ou pelas melhores leis?”. A ideia de aguardar ou desejar a pessoa mais bem preparada para governar embute uma noção bem brasileira, a do salvador da pátria. Personificados (Getúlios, Jânios etc) ou não (militares, por exemplo), nos parece claro que uma pessoa que não seja “a” melhor, mas governe a partir “das” melhores leis tenha mais condições de prestar um bom serviço à nação do que “a melhor” pessoa mas que governe ao seu bel prazer. O respeito ao Estado e suas políticas (consubstanciadas especialmente nos princípios constitucionais e nos tratados e convenções internacionais, mas também nas leis emanadas do Legislativo e decisões do Judiciário) deve prevalecer em relação aos interesses do governante de plantão, independente de sua qualidade como administrador público. A este caberá adequar suas plataformas e seus entendimentos de como governar àquelas políticas. A inserção internacional auxilia nisso justamente ao prevenir eventuais casuísmos da política interna, eis que tratados internacionais nascem de discussões menos afetadas por pressão individual de interesses escusos deste ou daquele grupo de pessoas em cada Estado.

São essas algumas pequenas reflexões que fazemos aqui no intuito de auxiliar o debate, tão dominado e polarizado nestes dias atuais.


quinta-feira, janeiro 07, 2021

TRISTE 2020. FELIZ 2021?


 

Por Fabrício Felamingo

 

E lá se foi 2020. Neste nosso blog a agenda política e cotidiana tem se imposto muitas vezes sobre a análise internacional. O coronavírus tomou conta do noticiário durante o ano passado e se mostra resistente a ponto de se manter por ainda muito tempo na mídia (e entre nós). EUA e Brasil, tendo em vista as atitudes de seus respectivos (des)presidentes, igualmente eclipsam as atenções e geram mídia (contra e a favor). No geral, tanto a saúde pública quanto a democracia sofrem em ambos os países por conta dessas similitudes.

Das várias semelhanças, uma em especial podemos destacar aqui: há uma correlação direta entre a inserção internacional de uma nação e seu grau de democracia (e, em 2020, aparentemente também seu grau de sucesso em evitar mortes pelo novo vírus). Ambos os presidentes se isolaram e isolaram seus países na esfera internacional. O próprio mote de campanha de Trump (fazer a América “grande” novamente) já embutia uma mensagem claramente xenófoba, na medida em que se tratava de tornar os EUA “grande” deixando de lado ou diminuindo o relacionamento comercial com outros países. A deliberada saída dos EUA de tratados ou acordos internacionais, ou mesmo a simples ameaça de, já são suficientes para fragilizar o sucesso desses arranjos entre as nações, o mesmo valendo para organizações internacionais como ONU ou OMS, atacadas constantemente pela atual Casa Branca.

Por aqui, as tentativas de reproduzir (“i-mitar”?) tais atitudes nos levaram até mesmo a situações embaraçosas, tais como não obter votação minimamente aceitável para preenchimento do posto de Juiz do Tribunal Penal Internacional. Perder a votação seria do jogo, mas obter votação pífia somente mostra o quão isolado está o Brasil internacionalmente.

O ápice da má governança veio não na forma de clímax, mas de acúmulo diário: mais de 360 mil mortes lá e quase 200 mil aqui, na data em que escrevemos estas linhas. Mas ontem, 6 de janeiro de 2021, surgiu um ápice (adicional?) contra a democracia: o presidente dos EUA ousou convocar e instigar militantes para se insurgir contra o Congresso norte-americano, que naquele dia iria (como efetivamente fez, horas mais tarde após a confusão) ratificar a vitória de Joe Biden para a presidência dos EUA a partir de 20 de janeiro próximo. Além de todas as cenas lamentáveis, ao menos quatro pessoas perderam a vida nessa inconsequência fomentada por Trump. O receio é a reprodução (“i-mitação”?) de tais atos “presidenciais” por aqui, num futuro próximo.

Criar barreiras diplomáticas com outras nações, transformando em inimigos aqueles que apenas têm interesses antagônicos (sejam comerciais, sejam quais forem), somente isolam a nação. Não à toa se entende as relações entre Estados como um concerto entre iguais, ainda que territórios, populações e PIB possam ser totalmente discrepantes. Aos países cabe, na busca por seus interesses, não desprezar ou agir contra os interesses alheios. Não se trata simplesmente de querer ter um “prestígio” ou “respeito” internacional, como se tais atributos fossem supérfluos e desnecessários ao contínuo crescimento do país. Trata-se de, ao agir de forma agressivamente radical, alijar a nação das grandes decisões mundiais e, como consequência, retirar da população o acesso ao fruto de tais relações. É triste pensar na quantidade adicional de mortos, na quantidade adicional de pobres, no número de pessoas diretamente atingidas por bravatas emitidas e que poderiam, pura e simplesmente, terem sido não emitidas. As relações internacionais agradeceriam. As famílias em luto ou empobrecidas, muito mais.

 

Foto: vatican news


quarta-feira, dezembro 30, 2020

Enfim, Brexit?

 

 

Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Coordenador e Professor no curso de pós-graduação latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional Píblico e Privado). Professor de Direito Empresarial na ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).

 

Nos últimos anos a saída do Reino Unidos (RU) da União Europeia (UE) vem trazendo vários desconfortos no cenário das relações internacionais entre os países do bloco, não somente pela frustração de ver um ente importante, como o RU sair, mas também por representar um possível fracasso como um todo, do sistema incialmente montado para ser um mercado comum idealizado a partir da sociedade de carvão de do aço em meados do século passado, transcendo o simples mercado comum para se transformar em uma união política, econômica, monetária e política.

 

O ingresso do RU nunca foi unânime dentro deste conjunto de países que já contavam com a Commomwealth, que poderíamos dizer ser um outro bloco de países, não necessariamente composto países contíguos, mas que ao longo da história fizeram parte e, alguns ainda fazem, parte do Império Britânico, como por exemplo, Antígua e Barbuda, Austrália, Bahamas, Barbados, Belize, Canadá, Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné, Reino Unido, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Salomão e Tuvalu, cujo mapa abaixo representa geograficamente a sua zona de influência.

 


Assim, o ingresso do Reino Unido em outro bloco, apesar de fazer sentido para alguns no pós Segunda Guerra, como uma forma de fortalecer sua posição comercial no bloco, em função de sua importância e liderança, frente a potências importantes como Estados Unidos e União Soviética, por muitos outros caracterizava uma deformidade do papel da Inglaterra e sua importância como uma monarquia constitucional. Por tal motivo, o Reino Unido apesar de ingressar no bloco, demorou a de fato incorporar as harmonizações proporcionadas pelo bloco europeu, como por exemplo, a moeda única.

 

Como em todos os países da UE, a participação depende de um tratado internacional que estabeleça as suas regras de ingresso, bem como providências internas, necessárias a serem tomadas, de modo que os países possam adequar a sua economia, política, instituições, dentre outros aspectos, de modo a ceder o acesso dentro de suas fronteiras, permitindo o ingresso de mercadorias, serviços e pessoas, além coordenar e equalizar suas tarifas internas e internacionais.

 

Logo percebe-se a dificuldade de que tais harmonizações sejam atingidas e o longo trabalho necessário para tanto, que durou algumas dezenas de anos. Penso que atualmente, poucas pessoas vivenciaram ativamente 100% de cada uma das evoluções da UE, como experiência de vida, para desenhar o caminho de retorno menos tormentoso.

 

O fato que é que algo que levou muitos anos para chegar onde está hoje está prestes a acabar quando da virada do ano?

 

É bem verdade já ter havido a decisão quanto à saída, mas esta decisão foi rápida e alguns dizem ter sido irresponsável, pelo fato de que o ponto crucial gira em torno de como sair, pois vários novos acordos precisam ser tratados para garantir a economia do RU e por que não dizer da UE, mas também a situação das pessoas que ali moram (RU), vinda de outros países integrantes do bloco.

 

Pensamos que na verdade tratasse de um processo evolutivo que já vem ocorrendo há alguns anos, cuja implementação vem se verificando mais palpável agora e que não se adequará ao calendário gregoriano, mas que provavelmente será mais rápido.

 

Por conta disso, o acordo comercial fechado entre Reino Unido e União Europeia trouxe alívio para empresas ao evitar aplicação de tarifas punitivas e uma separação desorganizadas nesta semana, apesar de deixar alguns pontos de atritos, quais sejam:

 

1)      Igualdade de condições – Apesar do Reino Unido não precisar mais se alinhar com as leis da UE, o bloco pode impor tarifas proporcionais, sujeitas à arbitragem, se puder mostrar que as ações britânicas distorceram a concorrência leal. Importante destacar que a campanha de saída do bloco prometia a autonomia do Reino Unido em legislar soberanamente e sem qualquer norteador internacional.

 

2)      Finanças – A regra quanto à venda de serviços financeiros ainda não foi tratada com clareza, já que o acordo apresenta cláusulas-padrão sobre serviços financeiros, o que significa que não inclui compromissos de acesso a mercados, devendo ser iniciado uma negociação específica em 2021 sobre o acesso e equivalência para serviços financeiros.

 

3)      Dados – Durante 6 meses a contar de janeiro de 2021, as regras relacionadas à transferência de dados europeias continuam a valer, mas nova regra deverá ser negociada, sendo que a regra europeia vigerá até que um acordo entre RU e UE se estabeleçam.

 

4)      Pesca - O acordo prevê um período de transição de cinco anos e meio para a pesca, durante o qual haverá redução de 25% das capturas por barcos da UE nas águas do RU, sendo que após este período a pesca deverá ocorrer mediante negociação.

 

5)      Gibraltar -  Ainda não chegaram a um acordo em relação à Gibraltar. Importante destacar que Gibraltar é território britânico conectado à Espanha continental. Sem um acordo, cruzar a fronteira poderia ser mais difícil e causar longas filas para passageiros e problemas econômicos significativos. Historicamente, tentativas da Espanha de enfraquecer ou até mesmo acabar com o controle britânico do território sempre causaram a ira de conservadores britânicos, que tentarão impedir que o Reino Unido faça quaisquer concessões.

 

Bibliografia:

Mello, Celso S. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Ed. Renovar. Volumes I e II. 2004. 15ª Edição;

Resek, Francisco. Direito Internacional Público (Curso Elementar). 2011. 13ª Edição;

Pozzoli, Lafayette. Direito Comunitário Europeu (Uma perspectiva para a América Latina). Ed. Método. 2003;

http://www.thecommonwealth.org/

 

 


quarta-feira, dezembro 23, 2020

“Veritas filia temporis” ou Uma reflexão irônica


Carlos Roberto Husek

Professor de Direito Internacional da PUC/SP e co-cordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado.

 

A serenidade está no mesmo patamar, nos dias de hoje, das ideias fantásticas, como a da mula sem cabeça, a dos duendes e a das bruxas. É algo que, quando acontece, foge ao cotidiano e se insere dentre os fatos que nos deixam boquiabertos, olhos arregalados, paralisados dos pés à cabeça.

Talvez, a atitude serena venha de algum “moralista”, - entre aspas mesmo - porquanto o moralismo é algo impensado nas sociedades modernas; uma das palavras que está perdendo o seu significado, para registrar-se como uma mancha, uma daquelas marcas que se imprimem no gado para distingui-lo dentre os demais; mas, se para o gado a distinção pode ser boa em virtude de uma determinada raça ou de um determinado proprietário, no ser humano é uma pecha, um defeito gravíssimo. É quase igual ao entendimento sobre as palavras “equilíbrio”, misericórdia”, “bom senso”, “igualdade de tratamento”, “sentimento democrático” e outras expressões, que estão desgastadas de seus significados originais.

Quem quiser viver e sobreviver, política e socialmente – não digo economicamente, porque nesta área a conexão moderna com o significado dessas palavras, não com o seu significante, é total – deve fugir das acepções anteriormente consagradas.

Ora, ver-se-ia como um monge, um frágil e desprezível sonhador, um ingênuo, cuja ingenuidade – espera-se – com o tempo diminua e o faça cada vez mais partícipe do mundo real.

Sonhar, afinal, é coisa para criancinhas – adolescentes, não mais – ou para incuráveis e raros românticos, marginalizados, que se contentam em recolher dos lixos as sobras da civilização, para continuarem, minimamente dignos do momento, ainda que “a latere” das relações sociais.

Enfim, “moralista” é algo muito ruim e que pode condenar o infrator ao desterro eterno, ao cadafalso escuro, à jaula do circo de horrores que exibe os animais em extinção. Bobbio adverte: “Se desejares silenciar o cidadão que protesta e ainda tem capacidade de se indignar, digas que ele não passa de um moralista. É um expediente fulminante. Tivemos inúmeras ocasiões para constatar, nos últimos anos, que quem quer que tenha criticado a corrupção geral, o mal uso do poder econômico ou político, foi obrigado a levantar as mãos e dizer: ´Faço isso não por moralismo`. Como se precisasse deixar bem claro que não deveria ter nenhum contato com aquela gente, geralmente levada em pouquíssima conta.”[1]

É uma questão planetária, uma conjunção de astros, a sobreposição de Saturno e Júpiter, que põe em pandemia a razoabilidade: preferível ser qualificado como corrupto, por exemplo, ou como machão, ou guerreiro, do que de sensato.

A sensatez é a virtude dos fracos e a serenidade seu instrumento de manifestação. O diabo nos livre deles, e Deus que se contente em contemplar o eventual erro na criação, porque, se não é de agora, sempre fomos assim. Todavia, sobra a indagação: para quem e qual a necessidade de justificar ações e falas, que poderiam ser tidas como indignas, se a prevalência é da sordidez? Estes, os sórdidos, sempre se justificam. Talvez, existam caminhos ainda a serem explorados, pelos crédulos, disciplinados, tranquilos e ponderados! Como fazê-lo? Ainda que, particularmente, não nos enquadremos em tais referências, e “faço isso, não por modéstia ou moralismo”, como provocar a reserva moral, aparentemente conformada e coibida, para um despertar sobre os acontecimentos?

Dificílima a situação!

É um magma que está na base de um vulcão, fervilhando nos confins da terra, mas sem força para explodir, o que algum dia acontecerá, com resultados desastrosos, escorrendo pelas encostas e triturando tudo o que se encontra pela frente, porque a força da indignação não pode ser menos do que a dos atos atrozes de infâmia e maldade, e não pode ser menor que a tristeza e a incompreensão de anos e anos de ostracismo dos direitos e da possibilidade de inteirar-se uma nação, una com o que se supõe ser o seu grande destino.

 

“Na cordilheira altíssima dos Andes

Os chimborazos solitários, grandes

Ardem naquelas regiões.

Ruge embalde e fumega a solfatera...

É dos lábios sangrentos da cratera

Que a avalanche vacila aos furacões.

 

A escória rubra com os geleiros brancos

Misturados resvalam pelos flancos

Dos ombros friorentos do vulcão...

.............................................................

Assim, Poeta, é tua vida imensa,

Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença...

E são lavas lá dentro o coração.[2]

“Veritas filia temporis”. A verdade é filha do tempo, bem sei, mas até quando vamos esperar que o país adormecido acorde tranquilo e sereno para uma era de paz e progresso? Não é a guerra que queremos, mas a suprema indignação, divulgada e anunciada em alto som. É o movimento pacifista, dos que almejam verdadeira e profunda MUDANÇA.

 


[1] Bobbio, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. Editora Unesp, 2ª. ed. p. 30.

[2] Alves, Castro. Obras Completas. A meu irão Guilherme de Castro Alves, Curralinho, julho de 1870, Editora Nova Aguilar S.A, 1997, p. 196.

 

quinta-feira, dezembro 17, 2020

PEIXE VIVO

 


No nosso artigo anterior, falávamos do papel da diplomacia presidencial e sua importância nas relações internacionais. A Presidência da República, concluímos, não precisa ser ocupada por pessoa de conhecimentos específicos nesta questão, ou mesmo na maioria das questões. Não se espera isso daquela figura.

Nesta semana o Senado Federal negou (em situação com raríssimos precedentes, um deles remontando a Jânio Quadros, o que só reforça a gravidade do caso agora) a indicação feita pelo Itamaraty de diplomata para o posto de delegado permanente do Brasil na ONU em Genebra. O cargo, importante por si próprio, tem recebido mais destaque nos últimos tempos dada as posições que a diplomacia brasileira vem defendendo a partir das ideias do atual Governo Federal. O que nos leva à questão central: a representação internacional do Brasil é posicionamento de Estado ou de Governo?

A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 4º, define com clareza que o Brasil se regerá, em suas relações internacionais, pelos princípios ali definidos. Dentre eles, podemos observar a prevalência dos direitos humanos, a defesa da paz, o repúdio ao racismo, anotando ainda a Constituição que o Brasil buscará a integração dos povos da América Latina.

Naturalmente a cada mandatário é assegurado o direito de estabelecer suas agendas, suas prioridades e se há algo do qual não se pode culpar a atual Presidência é de estelionato eleitoral. Dito isto, é sua obrigação, nas relações internacionais, seguir a posição de Estado, a partir dos princípios constitucionais. Desvirtuar isso é desvirtuar o poder conferido para o exercício da Presidência da República e parece claro que os princípios do artigo 4º destacados acima não apenas não são observados mas também claramente afrontados O próprio diplomata indicado, ainda que de carreira, vem atuando de forma a claramente atender ao posicionamento político do atual governo, contrário a tais princípios.

Ou seja, a Constituição define o posicionamento do Estado. A Presidência da República deve definir suas prioridades e guiar suas ações no plano internacional à luz de tais princípios. Nos parece claro que não é o que vem ocorrendo.

Antônio Houaiss (o do dicionário mesmo) trabalhou na documentação presidencial de Juscelino Kubitschek e “descrevia JK como homem aberto, auditivo, receptivo, fino sistematizador. Recebia informações novas e as incorporava de forma permanente, redisciplinando seu espírito. Ficava grato a quem lhe trouxesse ângulos inesperados. Não tinha preconceitos ideológicos: ouvia adversários e opiniões discordantes e não se importava com a orientação filosófica ou doutrinária do interlocutor. Aceitava a palavra dos estigmatizados da esquerda, assim como os conselhos moderados das raposas de antanho. Vivia na transição de dois Brasis e saltitava na corredeira da história, justificando o apelido pelo qual ficou conhecido”*

                Juscelino usou, de forma intensa inclusive, da prerrogativa de enviar aos postos nas embaixadas no exterior indicados políticos, não diplomatas de carreira (o que, de resto, foi hábito comum aos presidentes brasileiros até meados dos anos 2000). Mas não o fazia ao arrepio da Constituição. Não apenas porque a Constituição de então não trazia definições tão precisas, mas também pela ciência de que, nas relações internacionais, ainda que por sua indicação, os diplomatas deviam defender posicionamentos de Estado e não de Governo.

                O peixe vivo sabia nadar aquelas águas.

 

                                                                                            Por Fabrício Felamingo

 

* Trecho extraído de “JK -  o artista do impossível”, de Claudio Bojunga, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, página 358.


quarta-feira, dezembro 09, 2020

Mutualismo no Direito Internacional

 


Henrique Araújo Torreira de Mattos.

Advogado formado pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós graduado em Direto Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Direito Internacional Público e Privado pela Hague Academy of International Law em Haia/Holanda. MBA pela Fundação Dom Cabral. Coordenador e Professor no curso de pós-graduação latu sensu em Direito Internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE) e Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito Internacional Público e Privado). Professor de Direito Empresarial na ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).


Recentemente me chamou a atenção um estudo que fiz sobre a perspectiva do mutualismo nas empresas ao ler partes do livro intitulado Capitalism Beyond Mutuality?, escrito pelo professor Subramanian Rangan  do INSEAD que traz uma visão integradora entre a Filosofia e Ciências Sociais, no sentido de trazer à tona a discussão de que embora a humanidade tenha se desenvolvido desde a antiguidade por meio da descoberta de novas tecnologias ou mesmo ampliado seu acesso ou percepção do conhecimento em geral para construir a sociedade onde vivemos, a busca pelo equilíbrio para o desenvolvimento em todos áreas, bem como a diminuição da taxa entre pobres e ricos para alcançar um bem-estar comum ainda estão na agenda da comunidade internacional, pois o capitalismo também mostrou que sua sustentabilidade é administrável ou aceitável de acordo com circunstâncias específicas alinhadas com os poderes postes e existentes em determinado momento da história.

Esse entendimento reflete pensamentos trazidos por Adam Smith que é considerado o pai do capitalismo e escreveu “A Riqueza das Nações” apresentando sua teoria da vantagem absoluta que reflete a capacidade de produzir ainda mais.

A busca pelo desenvolvimento da sociedade se baseia na justiça, no bem-estar e na abrangência de nossa humanidade. De acordo com o professor Rangan, a humanidade evoluiu uma vez que “está melhor hoje em várias frentes, incluindo expectativa de vida, renda média e conhecimento permitido pela tecnologia, ao mesmo tempo que também possibilitou conflitos. No entanto, é difícil negar que a demanda por lucro produziu desempenho, mas nem sempre progresso. A demanda por justiça produziu regulamentação, mas nem sempre justiça. A demanda por segurança econômica produziu um estado de bem-estar, mas não segurança econômica. A demanda por conservação gerou conversas, deixando os cientistas preocupados com o "colapso". Além disso, a expectativa de vida parece ter superado as expectativas de vida, fazendo com que o conceito de sustentabilidade deva ser considerado sob perspectivas ainda mais elevadas.

Considerando os aspectos acima descrito, podemos assumir que houve melhorias ou apenas uma acomodação administrada dos fatos ou sentidos para tornar a economia, as relações, incluindo as internacionais, ou a própria vida, mais toleráveis. Em todo caso, é fato que a tecnologia está permitindo um amplo acesso e democratização da educação, ao estreitamento das relações privadas e públicas entre as diversas nacionalidades, dentre outros fatores que corroboram a globalização para permitir que a sociedade avance para o próximo patamar de evolução.

A ideia de mutualidade ou mutualismo trazida pelo professor Rangan aplica-se ao liberalismo empresarial num primeiro momento, mas ao observar sob a perspectivas das soberanias traz uma perspectiva sobre o conceito de Estado justo para incorporar uma democracia sustentável onde a política e a economia se baseiam no intercâmbio dos benefícios criados pela interdependência humana natural baseada na cooperação mútua para alcançar os objetivos da humanidade. A mudança de mentalidade moral na sociedade que conduz a mudança nas empresas, na sociedade civil internacional, na sociedade internacional e vice-versa, é a chave para tornar isso possível de forma pragmática. Portanto, esta mudança de mentalidade deve ser uma questão de atitude social que conduz a cooperação social moral onde a propriedade embora tenha sua importância deve ser usada para aumentar bons valores e comportamentos a fim de atender à justiça, bem-estar e um escopo expandido de humanidade nos negócios para o bem comum.

Nesse sentido, o estado e a sociedade em geral devem evitar a dependência do poder de regulação do mercado, mas originalmente devem educar o mercado de forma a obter os resultados desejáveis. Como consequência, os negócios devem destacar os ideais morais da economia liberal e o raciocínio pode informar e influenciar os interesses de uma forma sistêmica para possibilitar uma melhor autogovernança de um agente imparcial para governar com integridade.

Portanto, a educação do mercado de maneira democrática, por meio do convencimento geral e pragmatismo é o fato principal nesta equação, de modo a desafiar o status quo do que hoje praticamos como desenvolvimento, a fim de fazer as pessoas pensarem sobre valores e comportamentos e não apenas fornecer ideias conflitantes sem qualquer sentido prático.

 

 

Bibliografia:

RANGAN, Subramanian. “Capitalism Beyond Mutualism? Perpectives integrating Philosophy and Social Sciences”. Oxford University Press; 

Smith, Adam. “A Riqueza das Nações”. Editora Juruá.

  


sexta-feira, dezembro 04, 2020

O MAL DO BRASIL

 


Carlos Roberto Husek

                           Professor de Direito Internacional da PUC de São Paulo

 

O mal do Brasil será o mal do mundo, o mal da humanidade, em geral, o mal da América Latina, o mal dos países subdesenvolvidos? Podemos por a culpa em alguém, em algum setor, geográfico ou histórico, à nossa formação deficiente, ao nosso componente racial, miscigenado, brancos, pretos, índios, mamelucos, ou aos portugueses que nos descobriram e por séculos só fizeram explorar, primeiro o pau brasil, depois, o açúcar, além, o dízimo para a Coroa portuguesa, pelos cobradores de impostos, ou, ainda, pelos povos que aqui vieram a se estabelecer, sem a devida integração, constituindo nichos de suas respectivas nacionalidade e carregando o sangue de família, para dizer sempre que eram nacionais de outro país e que seus filhos também o eram (ius sanguinis), ou, sobre outro aspecto, a nossa propensão para a subserviência aos estrangeiros, como se sempre estivéssemos em dívida, como se não tivéssemos forma uma sociedade, digna desse nome? Há alguma verdade nestas inferências?

Bem, quem quiser e se sentir mais tranquilo e justificável – por pertencer a este país (gigante adormecido!), que não consegue sair de sua condição de terceiro mundo, que adote uma delas, ou outra que satisfaça. Penso, repenso, condenso, e não encontro saída. Por que, em pleno século XXI, não temos direção de pensamento? Nenhuma liderança na América, nenhuma área de influência entre os países emergentes, nada que nos aponte grande no território, grande na ação, grande – que seja – para o futuro?

Claro que são questões angustiantes de quem se sente sem rumo e triste. Triste porque não ouve uma palavra de ponderação, de equilíbrio, de sensatez, nem do presidente da República, que somente aparece e fala para disseminar discórdia, empunhar gritos de guerra contra a COVID, contra as eleições norte-americanas, contra os gays, contra (indiretamente, talvez), as mulheres, contra os classificados como inimigos naquela semana, contra a Organização mundial da Saúde, contra a Organização Mundial do Comércio, contra o processo do “lava Jato”, contra a Justiça quando abre análise processual em relação aos filhos, contra, contra, sempre contra, e não administra o mínimo, apenas exigindo de seus ministros – que em tese deveriam ser os especialistas em cada área – subordinação total. Estes, os ministros, escondem-se sobre as asas presidenciais, porque apesar (talvez?) de entenderem que o caminho sobre determinado assunto deveria ser outro, não ousam contrariar o presidente. O ministro da Saúde, por exemplo, após analisar os números da pandemia, e após ter encomendado – em um gesto de autonomia ministerial louvável – vacinas, teve que abortá-las, porque desautorizado, e fala em rede de televisão que a aglomeração não espalha o vírus ( embora não seja médico, para contrariar toda fala da Medicina) ou do ministro da Justiça, que simplesmente se cala diante dos problemas da pasta, não dando força para qualquer investigação – salvo aquelas que possam contrariar o presidente – e nada se manifesta em relação às ações de bandidos em todo o país, com sequestros, mortes, assaltos, mesmo que haja a competência primária de atuação dos Estados, haveria espaço para uma coordenação, ou do ministro do Meio Ambiente, que deixou passar a boiada, e com ela se foi, deixando ao vice-presidente a necessidade de dar explicações à sociedade, ou do ministro das Relações Exteriores, que não intermedia um necessário meio de campo para restabelecer diálogos com países que se veem atingidos por falas impróprias, distorcidas, absurdas, incongruentes de parlamentares ou de agentes do próprio Executivo, que não faz, enfim, a ponte da amizade, tradicional em nossa diplomacia, e não busca ( ao que se sabe ) influenciar o presidente da República nas falas e ações públicas, no que tange aos demais países soberanos.    

Temos um governo de centralização do poder, sem atuação do poder de administrar, e que só se anuncia para impor obediência irrestrita, mas, ao que se percebe, mantém – que isso continue – a liberdade de manifestação. Pelo menos isso, caso contrário, a democracia já estaria enterrada.

Enfim, por que temos todos esses males? Será que está em nosso DNA histórico, sociológico, e mesmo biológico, a impossibilidade de irmos na direção correta do bem público, independentemente da ideologia professada ou da religião, ou do time do coração, ou da filosofia de vida diária, daquele que toma posse ( que bom que temos eleições, é o mínimo) no poder?

Vamos dar mão à palmatória, não somos tão ruins assim: é do ser humano essa constância em ir e vir, por vezes, sem qualquer gerenciamento, sem qualquer plano maior, só pela emoção, pela amizade, pelo compadrio.

Freud, em “O Mal Estar na Civilização”, já estudava e analisava naquela época (1930), algo que serve para os dias atuais; afinal, a Psicanálise é universal e atemporal:

É difícil escapar à impressão de que em geral as pessoas usam medidas falsas, de que buscam o poder, sucesso e riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm, subestimando os autênticos valores da vida. E no entanto, corremos o risco, num julgamento assim genérico, de esquecer a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica. Existem homens que não deixam de ser venerados pelos contemporâneos, embora sua grandeza repouse em qualidades e realizações inteiramente alheias aos objetivos e ideais da multidão. Provavelmente se há de supor que apenas uma minoria reconhece esses grandes homens, enquanto a maioria os ignora. Mas a coisa pode não ser tão simples, devido à incongruência entre ideias e os atos das pessoas e à diversidade dos seus desejos.” (Mal Estar da Civilização, Sigmund Freud, Obras Completas, Companhia das Letras, p. 14).

Darcy Ribeiro, em uma visão crítica aos intelectuais brasileiros (eles existem), após descrever sobre a consciência nacional (a sociedade que aí está e o que dela se espera), diz:

Tudo isso significa que não teria cabimento exigir dos intelectuais brasileiros – sobretudo os de um passado remoto – a capacidade de formular projetos próprios de reordenação social, então inviáveis (seriam viáveis agora?). Mas significa também que permanece aberto o desafio de compreender as razões pelas quais aquela intelectualidade, em muitos casos apaixonadamente nativista, raramente explorou os limites de sua consciência possível. A verdade é que poderiam, mesmo então, ter atingido o limiar da consciência crítica que nada mais é do que a percepção da realidade como problema e a predisposição de transformá-la. Só em casos excepcionais se atingiu efetivamente essa consciência crítica (...) De um modo geral, a intelectualidade atuando em conveniência com os interesses da ordem desigualitária e da manutenção da dependência e tendo como matriz inspiradora a erudição europeia (e, talvez, a erudição norte-americana do governo de lá, não presidente eleito, em 2020), produziu nada mais que uma consciência ingênua, alienada e alienante. Suas criações não são discursos próprios sobre a realidade circundante elaborados à medida que esta vai sendo diretamente percebida e expressa em suas variações. Seu discurso típico é uma reelaboração com materiais exemplificativos locais de compreensões alheias alcançadas em outra parte e concernentes a outros contextos.” (não parece similar ao que está acontecendo?) (“Os Brasileiros: 1. Teoria do Brasil, Estudos de Antropologia da Civilização, Darcy Ribeiro, Vozes, 1985, p. 156) 

Não temos resposta para nenhuma das questões inicialmente propostas. Resta pensar, e pensar não encontra campo fértil na atualidade. Vamos crer em Deus, ou nos deuses, ou nos milagres, ou que estamos prestes a acordar de um pesadelo. Afinal, como uma conjunção de astros – consultem os astrólogos – estamos no Brasil e em vários países do mundo vivendo um encontro macabro entre Júpiter e Saturno.