
terça-feira, abril 26, 2016
segunda-feira, maio 18, 2015
A nau dos desgraçados
Reeditamos em pleno século XXI (hoje com base em outras causas e finalidades) antigas práticas de jogar a bordo de embarcações os portadores de doenças incuráveis e que pudessem representar algum perigo para a comunidade e os loucos, sem possível tratamento.
Segundo noticias, mais de 25 mil pessoas foram lançadas ao mar, em barcos precários, para fugir às perseguições políticas, étnicas e religiosas! Comerciantes do crime - traficantes de pessoas - facilitaram a fuga de desesperados, de suas pátrias de origem, com promessas vazias ( em troca do pagamento de cerca de US$ 2.000 seriam conduzidos aos campos da Tailândia, para atravessar a fronteira rumo à Malásia) mas os abandonaram em meio de águas internacionais, uma vez que os países desejados não aceitaram tais migrantes e eles não têm como retornar aos seus países de origem.
Há necessidade do sistema jurídico internacional (composto de organizações internacionais, convenções sobre direitos humanos, princípios e costumes internacionais) reagir de forma exemplar para combater dois problemas específicos: um, os Estados, que governados por desajustados, atuam de forma não condizente, sacrificando o próprio povo em cumprimento a um desiderato de domínio absoluto das próprias razões (razões dos governantes), que se arvoram como porta-vozes da vontade do Estado e, dois, a ineficácia dos mecanismos de defesa dos direitos humanos, que embora escudados em vasta rede de tratados internacionais e contando com organismos voltados à consecução dos seus ideais, não consegue obter a afirmação de tais direitos.
A vida internacional ainda reafirma, na sua realidade mais crua, as atividades dos Estados, que atuam, se unem e se perpetuam com o objetivo de satisfação de seus interesses econômicos e políticos; mas, se assim é a realidade da vida social no contexto da comunidade internacional, aos poucos aparece, aqui e acolá, a preocupação com o ser humano. Não há incorreção do sistema quando prestigia a soberania dos Estados, porque afirma um princípio de sempre, caro ao Direito Internacional, embora tal soberania tenha sofrido nos últimos tempos uma queda acentuada na sua concepção clássica. Desse modo, o prestígio de tal soberania, no entanto, deve levar em conta alguns aspectos, como: a concepção amenizada do sentido das fronteiras estatais, a economia dos Estados como vasos comunicantes, necessidade de relacionamento entre os Estados, independentemente das respectivas ideologias e formas de governo e as portas abertas de organismos internacionais para reclamações de seres humanos contra os países em que nasceram, em virtude de desmandos e desrespeitos a regras internacionais de proteção. Esta é a soberania como atualmente deve ser vista e exercida. A soberania do Estado deve ser exercida de forma a compor um mundo que não sobreviverá (em tempos de mudança das mínimas condições ambientais de manutenção da vida na Terra) sem a cooperação dos Estados. Cooperação é a palavra. Cooperação para quê? Não, para manter o domínio econômico, militar, político, dos Estados mais fortes sobre os mais frágeis. Não, para reavivar guerras religiosas. Não, para alimentar sonhos de domínio de governantes inescrupulosos. Não para sobrelevar interesses econômicos (caixa dos Governos para manutenção do poder) em detrimento do bem estar da população local. Cooperação para buscar um caminho de natural convivência, em que se respeitem a soberania e os interesses dos Estados e os direitos do ser humano. Na verdade, não há, ou não deveria haver divórcio entre tais direitos e os interesses políticos dos Estados, porque o Estado nada mais é do que uma ficção criada pelo próprio ser humano para a sua sobrevivência.
Nunca é demais recordar, um Estado é composto de povo, território e poder, bem como da capacidade de relacionar-se no mundo internacional. Desses elementos, sem dúvida, o principal, como base sobre o qual os demais se edificam é o povo: território sem povo, não é nada; poder sem povo, é poder nenhum; relacionamento internacional sem povo, é um relacionamento sem lastro. O povo, se organizado, se consistente, se possuidor de alguns laços de união (psicológica, social, jurídica) conquista o território, organiza o poder e se faz relacionar, em nome desse poder, com os demais Estados do mundo. A importância do povo (expressão equívoca e que melhor necessita ser estudada) está em ser a soma qualificada dos indivíduos. Direitos individuais, garantias individuais, direitos e garantias sociais, direitos humanos, direitos fundamentais, refletem expressões que notabilizam o ser humano como detentor de direitos em face de qualquer Estado, qualquer governo, qualquer ideologia. O Direito Internacional moderno não é mais - e não pode ser - o Direito dos Estados, mas o direito do ser humano, na sua coletividade, nas suas representações, nas organizações que cria, por si ou por outras organizações maiores. Sem embargo, de falar o óbvio - tão óbvio, que parece sem importância - as criações do Direito não terão muito sentido se não voltadas, direta ou indiretamente para os seres humanos. O Direito estatal é assim. O Direito Internacional assim é. Em um mundo sem fronteiras - reconheçamos, de início, que a importância que as fronteiras têm é meramente demarcatória para algumas finalidades político-jurídicas - o Direito Internacional necessita pensar melhor a finalidade de suas principais instituições.
A nau dos desgraçados é a desgraça do mundo e o fracasso das instituições. A ONU, os organismos internacionais e os Estados soberanos necessitam dar respostas urgentes para essa situação, enquadrando os Estados descumpridores das regras internacionais ( a força do Direito, se necessária pelo exercício da força internacional desse mesmo Direito) e a proteção urgentíssima de seres humanos jogados ao mar, como subprodutos da humanidade.
Deixar morrer de fome, sede e doenças, pessoas que não conseguem pisar em terra firme, por desmandos do poder dos Estados nacionais e pela interpretação errônea da soberania estatal, como garantia de uma política interna de governo, é simplesmente virar as costas para o que já foi construído, em termos de avanço social e jurídico pelo mundo.
Enfim, os direitos humanos não podem ser a base apenas dos discursos e da elaboração de regras internacionais bem intencionadas: mas, o verdadeiro escopo do Direito moderno, estatal ou internacional. Lembremos, que a própria ONU foi criada, para que não mais "O povo das Nações Unidas" sofressem os horrores de uma futura da guerra. A expressão "povo" e não "Estado" no Preâmbulo da Carta, é significativa e impõe um novo rumo ao Direito Internacional.
Será que todas as Declarações e Convenções negociadas, assinadas e ratificadas pelos Estados, a exemplo de: "Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Declaração Universal dos Direitos Humanos; Convenção e Repressão do Crime de Genocídio; Convenção sobre Asilo Territorial; Convenção sobre Asilo Diplomático; Pacto internacional dos Direitos civis e Políticos; Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento; Convenção sobre o Direito da Criança; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional; Estatuto dos Refugiados; Convenção para Prevenir e Punir Atos de terrorismo. Configurado em Delitos contra as Pessoas e a Extorsão Conexa; Convenção sobre a Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas e outras, não meros papéis que devem ser jogados ao lixo oceânico e afundados com os corpos que vagam sem rumo em águas internacionais? Se o sistema internacional de Direito não tiver mecanismos para resolver este problema ...então!...precisaremos repensar o Direito Internacional.
CARLOS ROBERTO HUSEK .
domingo, maio 17, 2015
O direito à deriva
A notícia de
que a Indonésia rebocou para o alto-mar embarcações com refugiados,
retirando-os de seu mar territorial e abandonando-os, é daquelas que provam que
nunca vimos de tudo nesta vida. Milhares de pessoas têm tentado ingressar em
países europeus ou asiáticos, fugindo de perseguições brutais (por motivos
nacionais ou religiosos) e situações de pobreza extremada. Nos últimos dias a
imagem dos barcos de traficantes de pessoas tem sido a tônica, sempre mostrando
embarcações abarrotadas de pessoas à míngua. As privações pelas quais passam,
especialmente a falta de água e comida, são tenebrosas.
Os países
tentam evitar o ingresso dessa população empobrecida, à qual costuma-se
denominar como formada por “migrantes” ou “imigrantes”, levando a uma conotação
algo pejorativa (ainda que essas palavras, por si mesmas, não tenham tal atributo).
Não se costuma usar “imigrante” para, por exemplo, denominar um alto executivo
estrangeiro recém chegado para trabalhar numa sucursal de sua empresa. Tampouco
para um chef de cozinha que resolva mudar definitivamente para outro país, onde
abre um restaurante de sucesso (este último com certeza será chamado de
“radicado” no país que escolheu viver, isto é, resolveu fincar raízes noutro
país). O fato dessa população ser objeto de tráfico de pessoas apenas colabora
para essa impressão negativa.
Noves fora
essa questão semântica, que acaba por turvar um pouco nosso discernimento, há a
questão da proteção dos direitos humanos, outro tema que dá margem a
interpretações distorcidas na busca de invalidar a ideia de que os indivíduos
têm direitos humanos apenas por serem humanos. Não cabe aqui apresentar uma
resposta a esta questão. Tomado como princípio que sim, os indivíduos todos têm
direitos apenas por serem humanos, e que fronteiras nacionais são
importantíssimas mas não mais que os direitos básicos dos seres humanos, está
demonstrada que a entrada dessa população deve ser autorizada, por um simples critério
de humanidade. A criação da ONU e outras tantas organizações internacionais
serve também para isso: auxiliar a gerenciar (e financiar na medida do possível)
estas situações, ainda que a situação econômica mundial não seja a mais
próspera. Uma vez acolhida a população, à qual o direito corretamente denomina
como refugiados, não imigrantes, até porque deles não há exatamente uma escolha
para onde ir, mas um lugar de onde fugir, o Estado acolhedor pode solicitar às
demais nações, diretamente ou via organizações internacionais, um trabalho de
coordenação para a melhor proteção e eventual distribuição dessa população por
outras nações.
São vários os
tratados e protocolos internacionais a regular a situação dos refugiados,
buscando sempre uma forma de acolhimento e proteção básica. Naturalmente, não
se trata de permitir o ingresso desordenado de pessoas a quaisquer países, mas
de balancear o direito dos Estados a controlar suas fronteiras com a proteção
mínima que deve ser dada a quem está em situação de extrema pobreza ou
perseguição. Isso tudo, claro, sem levar-se em conta o motivo que gerou a
perseguição (muitas vezes guerras civis direta ou indiretamente financiadas
pelas nações mais ricas).
No entanto, ao
rebocar as embarcações para o alto-mar, a Indonésia “resolve” o problema de
receber essas pessoas, dando as costas não apenas a elas mas também às outras
nações. Naturalmente não se pode obrigar um país a acolher quem quer que seja,
mas abandonar seres humanos à própria sorte, literalmente à deriva, além de
inacreditável definitivamente não pode ser aceito como a solução mais adequada.
Publicado originalmente no Estadão Noite de 15 de maio de 2015.
quarta-feira, março 04, 2015
A deportação de Battisti
O Poder
Judiciário brasileiro reconhece que um estrangeiro cometeu crimes em outro país
e, na impossibilidade legal de extraditá-lo, determina que deva ser deportado.
Extradição é a entrega do estrangeiro ao país onde o crime foi cometido,
mediante solicitação deste mesmo país. Deportação, por outro lado, é a retirada
compulsória de estrangeiro de nosso território, pela irregularidade de seu
ingresso ou permanência. Por exemplo, entrada sem visto. Naturalmente, o
estrangeiro criminoso não solicitou visto ao fugir para o Brasil, mas veio
valendo-se de documentos e nome falso. Assim, em teoria, a deportação é
cabível.
Não, não
estamos falando do caso Cesare Battisti, mas do inglês Ronald Biggs. Biggs
participou de roubo ao trem pagador, foi condenado e preso mas posteriormente
conseguiu fugir para o Brasil, usando nome falso para ingresso. Na época, a
decisão do Judiciário foi pela não concessão da extradição (não havia tratado de
extradição entre Brasil e Inglaterra, o que na prática impediu a extradição;
esse tratado foi firmado após um fugitivo nosso ser descoberto gozando boa vida
em Londres: “PC” Farias, ex-tesoureiro da campanha de Collor à presidência, mas
essa é outra história).
A questão que
permanece é o que fazer com o estrangeiro que, mesmo tendo efetivamente
cometido crimes lá fora, não possa ser extraditado. Biggs e Battisti, por
motivos distintos (mas igualmente dentro da nossa legislação) não foram
extraditados. À época do caso Biggs, a Justiça observou isso e entendeu que ele
não deveria permanecer no Brasil, devendo ser deportado para outro país que
aceitasse recebê-lo e se comprometesse a não extraditá-lo para a Inglaterra.
Caso contrário, acabaria ocorrendo verdadeira extradição sem consentimento do
Brasil, algo que, além de diplomaticamente problemático, nossa legislação
também prevê e impede.
A recente decisão
da Justiça Federal de determinar a deportação de Cesare Battisti segue a mesma
linha. A extradição de Battisti não foi aceita pelo Brasil. Aqui, independente
de concordar ou não com a decisão de Lula, temos que observar que o então presidente
agiu de forma legítima, dentro dos limites da competência dada pela
Constituição ao ocupante do cargo. O STF verificou a possibilidade jurídica da
extradição e Lula, usando de sua atribuição constitucional, optou por não
extraditar.
Se o Brasil entende
por qualquer motivo que um estrangeiro não deve ser extraditado, parece lógico
que dê a ele uma mínima proteção, seja permitindo a permanência pacífica em seu
território, seja ajustando sua deportação a outro país que se comprometa a mantê-lo
em seu território, não o entregando ao Estado a quem originalmente o Brasil decidiu
por não extraditar. Difícil, no caso, é encontrar país que aceite o estrangeiro
nessas condições. No caso de Battisti, a decisão judicial cita México e França,
países por onde passou antes de chegar ao Brasil. Nada, no entanto, os obriga
neste momento a recebê-lo de volta.
Não basta a
decisão judicial, deve haver condições para sua implementação. A cereja no bolo
é que, se Battisti novamente conseguir permanecer no Brasil, as emoções na
Itália serão reavivadas e a possibilidade de Henrique Pizzolato, condenado no
caso mensalão, ser extraditado para o Brasil diminuem ainda mais. Lá, a decisão
agora caminha para o estágio político, o mesmo estágio que, no Brasil, acabou
por garantir a não extradição de Battisti.
(Em tempo: Biggs acabou ficando no Brasil praticamente a vida toda, voltando para a Inglaterra já mais idoso, quando quis.)
Publicado originalmente no Estadão Noite de 03.mar.2015
terça-feira, janeiro 20, 2015
À Espera do Direito
Apenas por amor ao debate, vamos contrariar um pouco o articulista e todos que estão consternados com a morte do brasileiro na Indonésia. Antes, nunca é demais estabelecer um parâmetro de pensamento a que nos filiamos: somos contra a pena de morte.
Todavia, o que aconteceu na Indonésia foi a afirmação de um sistema jurídico e de uma política soberana. Cabia ao governo brasileiro fazer o que fez, pedir clemência (uma, duas, três vezes) e quantas necessárias, mas só. Não é possível transformar em uma questão de Estado, e portanto, internacional, chamando o embaixador brasileiro com possível rompimento das relações diplomáticas, o fato da Indonésia resolver cumprir as suas próprias leis. Em termos internacionais, a Indonésia apenas fez cumprir o seu sistema jurídico (legalidade). Quantas e quantas vezes o Brasil, na sua história, não determinou a morte de opositores ao governo, sem respaldo legal? Entretanto, também aqui não é possível confundir. O brasileiro Archer não se opôs ao governo da Indonésia, nem representava qualquer facção política ou ideológica, não era um ativista político nem tinha preocupações humanitárias, Não. Entrou com 13 quilos de cocaína, em uma prancha, no território de um país soberano que combate as drogas. O máximo que poderíamos fazer é uma crítica ao sistema do país soberano, mas não entender que a execução de suas próprias leis internas, por eles aprovadas legalmente, com apoio da população e com promessas de cumprimento por parte do governo eleito, ofenda o Brasil. O chamamento do embaixador brasileiro para esclarecimentos é possível; o eventual rompimento diplomático por este fato, não.
Lembramos que nos EUA alguns estados norte-americanos contém pena de morte, bem como outros países, e não nos ocorre um protesto contra tal situação e o abalo de relações diplomáticas ( a menos que haja um brasileiro envolvido!?).
Devemos lutar, como princípio, contra a existência de morte legalizadas pelo Estado, na área internacional, na vida internacional, o que não implica em rompimentos diplomáticos com os países que a praticam, salvo se este (o rompimento) for efetivamente uma política de Estado, constitucionalizada, que nos impeça de ter relações com quaisquer países que acolham a pena de morte (não importa a importância ideológica, econômica, militar e política) do país e não importando se existem brasileiros envolvidos ou não. Como se vê, vai ficar difícil, no mundo atual, mantermos uma relação diplomática pragmática e que vise, de forma específica, os interesses maiores do Estado e de seu povo.
É uma pena que existam países que mantenham a pena de morte como forma de combater o crime (isto acho eu, que sou humanista, mas há muita gente boa que entende de forma contrária), mas há necessidade de separar o que é política de Estado, nos termos da Constituição, e crítica indevida com consequências funestas para o relacionamento internacional, de um para outro Estado, de forma fisiológica. É assim que temos agido na área internacional, nos últimos tempos. A Indonésia é um país soberano que está cumprindo o seu sistema interno, ponto. E mais, o brasileiro que carregou drogas para aquele país, não estava certo ( ou estava?). Lamentamos que tenha havido a execução, entretanto o governo brasileiro deve, como fez, fazer os apelos internacionais necessários para proteger um seu nacional, mas não pode entender que a Indonésia, ao cumprir as suas leis, ofenda o Brasil ou abale as suas relações internacionais com o nosso país, mesmo porque, bem ou mal ( talvez, de modo errado, em nossa opinião) ela, Indonésia, está combatendo a propagação de drogas, que levam no entender de seus legisladores, os jovens a marginalização, o país à bancarrota, à destruição das famílias e da própria sociedade.
Também não vale justificar um eventual rompimento das relações diplomáticas, dizendo que o sistema da Indonésia é contraditório, porque existe muita corrupção dentro do Estado, e as drogas circulam até como moeda de compra para determinados efeitos (entrevista em jornal de um amigo de Archer). Ora, este é um problema interno, deles, e não nos cabe afirmar a justiça ou a injustiça da condenação pela contradições internas de um determinado sistema jurídico, para os efeitos de uma determinação política maior, salvo se ocorrer em uma análise clara, objetiva e específica com uma manifestação do Estado, sem tornar isso o fulcro de uma escaramuça internacional.
Podemos impor nossa vontade à soberania da Indonésia? Somos claros e objetivos em relação aos cubanos e seu sistema jurídico, ao Irã, ao da Argentina, ao da Venezuela, enfim, aos que consideramos amigos, embora, em muitos deles, para não dizer na totalidade dos mencionados Estados, os valores maiores da liberdade e da dignidade humana, presentes na Constituição brasileira, (direitos fundamentais) são diariamente desrespeitados (não sei se presentes nas leis fundamentais de tais Estados)? É de se perguntar; se um infausto acontecimento, igual da Indonésia, acontecesse nestes países com um brasileiro, também chamaríamos o embaixador brasileiro e tenderíamos a romper nossas relações diplomáticas?
Enfim, é necessário raciocinar: se o Brasil vier a romper relações diplomáticas com a Indonésia, estará agindo corretamente? Todavia, tal questão só cabe aqui, nesta discussão acadêmica, porque o Brasil, por enquanto, não tomou tal atitude.
Muitos poderão afirmar que o Brasil é soberano para romper relações diplomáticas, e terão razão (embora, entenda que a motivação está equivocada). De igual modo, digo, a Indonésia é soberana para fazer cumprir suas leis (embora, não concorde com o sistema jurídico daquele país).
Regredimos...Vivemos num mundo de paixões tribais. As conquistas da civilização (ou o que consideramos civilização), sistema jurídico, soberania, fronteiras, combate ao crime - que deve ser internacional - dignidade da pessoa humana, liberdade de imprensa - caso Charlie (pela violência física, praticada dentro do Estado francês, contra manifestação cultural, esta, permitida pelo sistema jurídico francês: não discuto razões religiosas)- razões sociais como fundamento de atuação do Estado, estão sendo engolidas pelo fanatismo, pela irmandade ideológica e religiosa e outras, irracionais manifestações, de indivíduos, de grupos de indivíduos e, por vezes, do próprio Estado. Acredito que o Direito, aprimorado pelas aquisições históricas, pelos embates contra força, baseado nas razões maiores dos seres humanos, é o único caminho. Não há como esquecer uma frase antiga e sempre bem posta: o direito de um vai até onde começa o direito de outro.
Carlos Roberto Husek
sábado, janeiro 17, 2015
À espera de um milagre
Como se costuma
dizer, nada é certo nesta vida, exceto a morte e os impostos. À morte ao menos
temos o benefício da dúvida de quando ocorrerá, o que nos permite fingir que
somos eternos e com isso levar a vida. Isso não vale mais para o brasileiro
Marco Archer Moreira, que neste domingo à tarde morrerá executado a tiros na
Indonésia pelo crime de tráfico de drogas, aguardando por este momento preso há
uma década. O governo brasileiro solicitou algumas vezes ao longo desse tempo
que a Indonésia o mantivesse preso mas não o executasse, sem sucesso contudo. A
última tentativa infrutífera ocorreu hoje, com nova tentativa da presidente
Dilma Rousseff em ligação com o presidente indonésio Joko Widodo.
Uma conduta
qualquer pode ou não ser crime, a depender de circunstâncias as mais variadas.
A evolução (seja no sentido de desenvolvimento, seja no mero sentido de
passagem do tempo) da sociedade pode levar uma conduta considerada crime em
determinada época deixar de ser depois (no Brasil, o adultério é um exemplo, embora
o clássico que sempre é citado seja o álcool nos Estados Unidos de Al Capone)
ou o contrário, algo que antes era aceito deixar de ser (como a escravidão). Condições
territoriais também influenciam, já que cada país determina, em seu território,
quais condutas serão ou não tipificadas, vale dizer, consideradas criminosas
(exemplos disso são a prática de jogos de azar, aborto, prostituição).
Condições religiosas e culturais igualmente influenciam a legislação de cada
Estado e todas essas circunstâncias influenciam igualmente qual penalidade será
aplicada a quem comete tais condutas (multa, prestação de serviços, restrição
de direitos, restrição de liberdade, pena de morte).
O Estado
brasileiro age corretamente ao esforçar-se em tentar evitar a execução de seu
nacional pela Indonésia. É obrigação do Estado a proteção de seus nacionais,
embora naturalmente essa proteção em território estrangeiro fique muitas vezes
reduzida a tratativas diplomáticas e políticas. A tentativa é a de evitar a
aplicação de pena de execução que o Brasil não admite. Não se trata de alegar
inocência ou mesmo tentar que seja libertado, mas apenas que não seja morto,
como não seria se o crime fosse cometido no Brasil.
Como se sabe,
a esmagadora maioria dos países no mundo não condena atualmente criminosos à
morte, sendo que a maior parte não tem mais essa pena prevista em lei e, alguns
poucos que ainda a tem, evitam aplicá-la. Quando se trata de país que a prevê e
ainda a aplica, ainda assim há subterfúgios políticos, como a solicitação de
indulto ao Chefe de Estado, para evitar sua aplicação. A pena de morte na
realidade acaba por pairar em muitos casos mais como ameaça do que como
realidade, exceto, evidentemente, àqueles condenados que, após anos ou décadas
de espera, são mortos. Há uma relação direta entre o estágio democrático de um
país e a previsão ou não de pena de morte em sua legislação, sendo os EUA e o
Japão os pontos fora dessa curva, ao lado de países como Coreia do Norte, Irã,
Somália, Paquistão e alguns outros que condenam criminosos à morte. O índice de
crimes não diminui com a pena de morte ou os países citados seriam oásis sem
criminalidade alguma. Apenas o desejo difuso de vingança é atendido.
Se condutas
tidas como criminosas e suas penas são modificadas ao sabor do momento da
sociedade, nada traz novamente à vida alguém executado, mesmo que no futuro a
conduta que o fez ser condenado não seja mais considerada crime ou a pena não
seja mais aquela outrora estabelecida, ou ainda o presidente de plantão seja
mais clemente. Resta a indignação e a tristeza, com a morte anunciada e com
mortes como a da brasileira Haíssa Vargas Motta, jovem de 22 anos igualmente morta
a tiros de fuzil, porém pela polícia no Rio de Janeiro, ceifada da vida pelo Estado
sem anúncio, sem aviso, com certeza absoluta sem o esperar.
(publicado originalmente no Estadão Noite de 16/jan/15)Nota: O brasileiro Marco Archer Moreira foi executado hoje, 17 de janeiro, às 15h31, Hor. Brasília
sexta-feira, janeiro 09, 2015
A (in)tolerância de cada dia - aspectos sobre o atentado em Paris
O atentado
brutal ocorrido em Paris nos leva a uma natural consternação, assim como
algumas constatações, mas poderia servir igualmente a uma reflexão em relação a
(in)tolerância nossa de cada dia.
A primeira
constatação, desde os primeiros instantes entendida por todos, é a do ataque à
liberdade de expressão e de imprensa, uma vez que a violência foi feita contra
cartunistas e jornalistas em seu local de trabalho como suposta represália à
críticas contidas em charges publicadas pelo periódico Charlie Hebdo.
Um segundo
aspecto é que a tática utilizada desta vez não foi a da intimidação pelo terror
à esmo, cometido contra inocentes desconhecidos em aviões, torres de
escritórios ou estações de metrô, mas contra alvos determinados, disseminando
portanto não apenas o terror generalizado mas a mensagem de que alguma
"justiça" ou mesmo vingança divina estava sendo realizada.
Os que
atacam, talvez vinculados diretamente ao Estado Islâmico ou apenas lobos
solitários de uma causa que entendem sagrada, o fazem imbuídos da certeza da
defesa de valores que teriam sido violados nas representações artísticas do
jornal.
A mensagem
que conseguem transmitir, paradoxalmente, é justamente a oposta, a da mais
profunda intolerância. E não apenas contra a liberdade de expressão, direito
que fazem questão de não reconhecer, mas também contra a liberdade religiosa, a
qual inclui também a liberdade de não crer em nada ou crer na inexistência de
algo maior.
De toda
forma, o atentado brutal, o maior em meio século na França, tem proporções
muito menores que outros cometidos na década passada, na medida em que a silenciosa
colaboração e cooperação estratégica entre os países têm dificultado que grupos
extremistas possam levar a cabo ações mais espetaculares. Esta constatação
empírica mostra que, se não há como serem evitados na totalidade atentados
terroristas, há como os Estados organizarem-se de forma mais profícua em termos
de troca de informações e melhorar a segurança e vigilância geral.
A ação terrorista
agora claramente é dirigida ao "inimigo" mais à mão, alvo mais fácil
de atingir como uma redação, tornando-a relevante não pela grandiosidade mas pelo
seu suposto sucesso. Se de alguma forma jornais e cartunistas deixarem de
publicar trabalhos semelhantes aos do Charlie
Hebdo, o sucesso da ação criminosa estará alcançado.
Há, porém,
uma reflexão doméstica igualmente possível de ser feita. Não há intolerância
semelhante no Brasil (os bem mais que doze torcedores de futebol mortos ao
longo dos anos por aqui talvez discordem, lá do além, juntamente com aqueles criminosos
julgados e condenados à morte "em confronto" com a polícia, e paro
nestes exemplos) mas igualmente não se vê uma defesa intransigente das
liberdades por aqui e ultimamente boa parcela da população flerta inclusive com
ideias que representam a diminuição ou cerceamento de tais liberdades.
Isso talvez ocorra
pelo desconhecimento da importância desses e outros direitos e garantias
fundamentais à pessoa humana, mas claramente existe um sentimento de
intolerância que vem se aprofundando. Ainda que sem paralelo com a brutalidade da
ação em Paris, qualquer grau de intolerância é perniciosa e o exemplo extremo de
ontem apenas demonstra isso com inegável nitidez.
A resposta
talvez não seja apenas mais liberdade de expressão ou liberdade religiosa, mas
sim mais tolerância e, especialmente, mais entendimento do porquê dessas
liberdades. A defesa intransigente dos direitos humanos, dos quais fazem parte
tanto a liberdade de expressão e de imprensa quanto a liberdade religiosa,
deveria pautar as manifestações de solidariedade que se apresentam não apenas
em Paris mas em vários países, inclusive no Brasil.
(publicado originalmente no Estadão Noite - 08/01/2015)
quinta-feira, julho 17, 2014
Pressão pela paz na Faixa de Gaza deve ser bem orquestrada.
O
recrudescimento da violência e ameaças de invasões e guerra entre israelenses e
palestinos volta a preocupar o mundo, aparentemente ao mesmo tempo em que
Israel parece novamente mandar às favas a opinião internacional, dizendo que a
cada momento um ataque terrestre está mais próximo, como fez nas últimas horas
o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. A história e o direito internacional
nos mostram que a solução pacífica de litígios internacionais é alcançada de
diversas maneiras, mas no caso deste conflito tudo leva a crer que somente uma
ação coordenada possa vir a saná-lo.
É enganoso
imaginar que o país que talvez tenha tido o maior apoio internacional na
história contemporânea para seu surgimento agora esteja dando as costas a essa
mesma comunidade internacional. Israel sabe que não pode deixar de ouvir a
opinião da ONU e de outros países na questão, mas ao mesmo tempo tem que dar
uma reposta ao seu público interno, reforçando sua soberania que, afinal, é um
dos motivos e uma das características principais de qualquer Estado.
O poderio
militar de Israel, no entanto, especialmente em comparação aos palestinos –que
ainda lutam pela criação formal de seu Estado, a exemplo do que ocorreu com
Israel– é inegavelmente grande o suficiente para justificar uma preocupação
mundial com uma carnificina. A pressão internacional é, portanto, justificável
e lícita e, podemos imaginar, a única garantidora de que realmente essa
carnificina não venha a ocorrer (ou ser ainda pior do já está acontecendo).
A coordenação
dessa pressão internacional é a chave para a solução da questão. Medidas
diplomáticas isoladas se enfraquecem, na medida em que representam interesses
muitas vezes antagônicos. O próprio 11 de setembro é fruto, no limite, desse
“unilateralismo” internacional, se assim podemos denominar.
A ONU é o
grande palco que não deve ser desprezado. Enfraquecida na última década, inclusive
em razão dos acontecimentos pós-11 de setembro, a ONU foi o elemento de
ponderação (e centralização) que permitiu o nascimento de Israel e certamente
passará por ela, e não apenas por ações diplomáticas de poucos Estados, por
mais importantes na esfera internacional que sejam, a criação de um Estado
palestino. Por sua vez, sem esse novo Estado, não se imagina possível o início
de um período duradouro de paz na região, uma vez que não representaria solução
minimamente adequada a um dos lados no litígio.
Está mais do
que demonstrado que ignorar essa coordenação da pressão internacional significa
simplesmente mais do mesmo, isto é, daquilo que vem sendo feito nas últimas
décadas –e esse mesmo importa na perda de muitas vidas humanas e no crescimento
do sentimento de vingá-las por parte daqueles que sobrevivem. Não há outra
forma à mão para a solução real do problema e a alegação da existência de grupos
extremistas e de falta de interlocução apenas parecem ser desculpas. Afinal,
são vários os países que convivem com extremistas em seus territórios e ainda
assim conseguem, na medida do possível, dar conforto à sua população. Sem a
formalização de um Estado, no entanto, mistura-se no mesmo balaio uns e outros,
à conveniência de interesses unilaterais –e à custa de milhares de vidas
humanas.
(publicado originalmente no Estadão noite de 14 de julho de 2014)
sexta-feira, maio 16, 2014
O pedido de Dirceu à OEA
A notícia de
que José Dirceu encaminhou à OEA um pedido para que seja analisada a suposta
violação de seus direitos no julgamento do mensalão nos faz refletir sobre o
que isso realmente pode significar do ponto de vista prático.A Organização dos
Estados Americanos, sediada em Washington (EUA), possui um sistema de monitoramento
e controle da aplicação dos diversos acordos internacionais firmados para a
proteção dos direitos humanos. Isso significa que, uma vez que um país das
Américas viole um desses acordos, a OEA pode se manifestar e eventualmente até
determinar que esse Estado tome alguma medida para cessar ou reparar a
violação.
Naturalmente,
isso se dá com aqueles Estados que, além de serem partes da OEA, aceitem
expressamente os acordos internacionais firmados e ainda concordem com o
julgamento de casos de eventuais violações perante a Corte Interamericana de
Direitos Humanos. O Brasil enquadra-se em todas estas situações e pode ser,
como já foi algumas vezes, julgado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
No entanto, o
acesso a esse tribunal internacional é restrito e, basicamente, uma reclamação feita
por qualquer pessoa (José Dirceu inclusive) não pode ser diretamente enviada a
ela, mas sim a um órgão, a Comissão Interamericana, que analisa previamente os
casos e somente envia à Corte para julgamento aqueles que entende serem de real
violação dos direitos humanos. A reclamação de Dirceu foi enviada a essa
Comissão alegando atentado ao chamado “duplo grau de jurisdição”, isto é,
direito de recorrer de uma decisão judicial a um tribunal ou corte superior.
Este direito está expresso na Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto
de San José da Costa Rica, datado de 1969, acordo ao qual o Brasil
expressamente manifestou concordância juntamente com vários outros tratados
internacionais desde a redemocratização do País.
Em geral o
procedimento na Comissão dura de alguns meses a alguns anos, dependendo de como
as tratativas se dão. É que a Comissão primeiramente solicita informações ao
Estado sobre a suposta violação, depois tenta uma conciliação entre as partes,
efetua algumas recomendações ao Estado e, somente após isso, caso não fique
satisfeita com as providências tomadas pelo Estado, encaminha o caso,
finalmente, à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Já a etapa de julgamento
na Corte, que já foi durou em média 40 meses na década de 1990, tem levado em
torno de 20 meses nos últimos anos.. Durante esse tempo, pouco ou nada muda na
situação do cumprimento da pena de Dirceu no Brasil.
Caso seja
realmente analisado pela Corte da OEA, a decisão pode seguir por dois caminhos
possíveis. Em 2009 a Venezuela foi condenada justamente pela falta de direito
ao recurso judicial. Este caso é emblemático e pode sim ser usado como
precedente para entender que no caso do mensalão houve violação ao direito de
duplo grau de jurisdição. Por outro lado, o caso do mensalão foi julgado pela
instância competente, ainda que a mais alta, impossibilitando por isso mesmo o recurso.
A inexistência de tribunal superior ao STF seria, neste caso, justificativa
suficiente para a não violação do que está determinado na Convenção. Vale observar
que na Convenção Europeia de Direitos Humanos, acordo homólogo à nossa Convenção,
há expressamente a ressalva de que a garantia ao duplo grau de jurisdição não
se aplica quando o julgamento é feito diretamente pelo mais alto tribunal do país.
Parece ser uma solução razoável, mas há que se cuidar para evitar um retrocesso
nos direitos e garantias judiciais tão arduamente conquistados pelos cidadãos
em países americanos nos quais a democracia e a independência dos poderes nem
sempre é constante.
É importante
observar que, seja qual for a decisão da Corte, esta não será uma revisão do
que foi decidido pelo STF. A Corte no máximo pode determinar que Dirceu teria
direito a um recurso da decisão, solicitando que o Brasil garantisse isso, mas
não determinaria que a decisão do STF no julgamento foi incorreta ou deveria
ser outra. Eventual novo julgamento nesta hipótese seria inclusive feito pelo
próprio STF.
Talvez a
melhor coisa que se possa extrair disso tudo seja sobre a atual fórmula do foro
privilegiado de autoridades, motivo pelo qual afinal o caso foi parar
diretamente no STF. Seria salutar um exercício de readequação dos casos em que
deveria existir o “direito” de autoridades serem diretamente julgadas pelo mais
alto tribunal do país. Afinal, se Dirceu e demais condenados fossem
inocentados, igualmente ninguém poderia recorrer dessa decisão.
(publicado originalmente no Estadão Noite de 15 de maio de 2014.)
terça-feira, abril 29, 2014
Ainda sobre a extradição de Pizzolato.
A
possibilidade ou não da Itália anuir com o governo brasileiro e determinar a
extradição de Henrique Pizzolato ao Brasil é daqueles assuntos que não têm
resposta direta, já que depende, além de fatores jurídicos (o que por si só
garante alguma imprecisão na resposta, dada a possibilidade de interpretações
distintas), do fator político que os países em geral utilizam na decisão da
generalidade dos casos quem envolvam relações com outros Estados, como é o caso
do tema extradição.
Cada Estado
tem o dever de proteger seu nacional e, do ponto de vista jurídico, em geral o
faz a partir do disposto em sua constituição, em sua legislação
infraconstitucional e nas normas internacionais. Os italianos têm ainda, na
condição de europeus, a proteção das normas comunitárias da União Europeia.
Henrique Pizzolato, brasileiro mas também nacional italiano, goza dessa
proteção jurídica. Portanto, falar da possibilidade de sua extradição ao Brasil
significa analisar o que todas essas normas determinam.
A constituição
italiana não proíbe expressamente a extradição de seus nacionais, impedindo
apenas a extradição motivada por crimes políticos, neste caso frisando que a
exceção é válida tanto para estrangeiros quanto para nacionais. Aos nacionais,
determina ainda que a extradição somente é possível quando houver expressa
previsão em convenção internacional. Como se sabe, há tratado entre Brasil e
Itália sobre extradição e este prevê a faculdade de recusa da extradição do
nacional de um Estado ao outro. Por este ângulo, portanto, a extradição de
Pizzolato pela Itália ao Brasil não é uma impossibilidade jurídica, mas
dependeria da boa vontade do governo italiano.
Do ponto de
vista da proteção das normas da União Europeia, igualmente há a possibilidade
jurídica da extradição de Pizzolato. Em primeiro lugar, a Convenção Europeia
dos Direitos do Homem não impede aos países que extraditem seus nacionais. Por
outro lado, um dos principais argumentos dos condenados no caso do mensalão, a
inexistência do segundo grau de jurisdição (o direito de submeter o resultado
final do julgamento a um recurso de instância superior), argumento que está
sendo utilizado inclusive na Comissão Interamericana de Direitos Humanos por
alguns outros dos réus condenados, também não impede a extradição no caso de
Pizzolato. É que a Convenção Europeia expressamente admite que não há
necessidade do segundo grau na hipótese de julgamento direto pela mais alta
corte do país – o que, diga-se, faz todo o sentido.
Sendo assim, do
ponto de vista jurídico é sim possível, embora duvidosa e definitivamente não
obrigatória, a extradição de Pizzolato ao Brasil. Resta ao caso o fator político,
numa receita temperada ainda pelo princípio da reciprocidade que via de regra é
aplicado nas relações entre os países. A decisão final da extradição, na Itália
como no Brasil, compete não ao Poder Judiciário mas ao Executivo – cujas
decisões são eminentemente políticas. Há o precedente italiano da não
extradição do nacional italiano (e brasileiro) Salvatore Cacciola ao Brasil. E
há, agravando, o precedente da não extradição pelo Brasil do nacional italiano
(e não brasileiro) Cesare Battisti à Itália. A resposta, portanto, não é óbvia
e dependerá do humor do governo italiano. Cartas ao senhor embaixador italiano
em Brasília.
quarta-feira, fevereiro 26, 2014
Uganda e um olhar sobre a proteção internacional dos direitos humanos.
As recentes
notícias vindas de Uganda sobre a aprovação de legislação contra os homossexuais,
que poderão ser presos pelo simples fato de serem gays, mostra o quanto um país
pode atentar contra os direitos de seus próprios cidadãos, aqueles a quem na verdade
deve proteção. A identidade sexual da pessoa humana não se confunde com conduta
ou ato de vontade da própria pessoa, pelo que não poderia ser criminalizada
–seria como criminalizar alguém por sua cor de cabelos, por exemplo. Mas o fato
é que isso não inibe ações como essa que se assiste agora no país africano.
A desinibição
com que o poder legislativo de Uganda formulou a lei somente compete com a
desenvoltura com que o Presidente daquele país a aprovou, promulgando-a a
despeito de protestos internacionais. Ainda assim, este é um exemplo de como é
importante o desenvolvimento e fortalecimento de mecanismos internacionais de
proteção dos direitos humanos, uma vez que o Estado, como grande violador
clássico e histórico dos direitos humanos, não se contém por si só muitas
vezes. Na mesma medida em que é importante que o Estado seja o guardião único
das leis, retirando das pessoas o direito da vingança e evitando com isso a
barbárie cometida por pessoas contra pessoas, o que se vê muitas vezes é o
Estado agindo de forma a violar os direitos de seus nacionais. A pressão
internacional constitui arma importante contra essa violação e é, senão a
única, das poucas alternativas para a solução do problema.
Hoje no mundo
há alguns instrumentos importantes de controle internacional, sendo um dos mais
conhecidos nossos o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos da
OEA, ao qual o Brasil se submete e graças ao qual violações relevantes
ocorridas no nosso país estão sendo revistas. A legislação contra violência
doméstica (lei Maria da Penha) e a criação da Comissão da Verdade para
averiguação dos crimes cometidos durante a ditadura militar são exemplos de
frutos desse monitoramento internacional.
A Europa
também conta com seu sistema regional próprio de proteção, modelo aliás para o
regional interamericano e igualmente para o sistema africano que, apesar de
existir formalmente, ainda caminha a passos lentos. É admissível na Europa que
uma pessoa ingresse com uma petição diretamente a uma jurisdição acima dos
Estados, a Corte Europeia, contra uma suposta violação de seus direitos, fato
que ainda não é realidade no sistema americano e que, fosse uma possibilidade
aos africanos, seria eventualmente a solução para os homossexuais que agora
passarão a ser perseguidos na Uganda com ainda mais força, já que oficialmente
são considerados criminosos pela legislação nacional. Ao contrário do senso
comum, de que o controle de outros países é “intromissão indevida” nos assuntos
internos do Estado, quando se fala de direitos humanos é importante que
organizações internacionais, como ONU, OEA e outras, nos limites de sua
competência, sejam chamadas a agir e evitar barbáries como a que se apresenta
agora na Uganda. Não apenas na economia há o chamado “risco sistêmico”, um país
abalando o outro. As normas e tratados internacionais de proteção aos direitos
humanos devem, por isso, ter sua importância reforçada. Somente assim se evitaria
esse risco sistêmico na proteção dos direitos humanos.
(publicado originalmente no Estadão online - 25/fev/2014)
sexta-feira, fevereiro 07, 2014
A possibilidade de extradição de Pizzolato
(publicado no Estadão Noite de 06.fev.2014)
A prisão de Henrique Pizzolato voltou a levantar uma série de questões recorrentes tanto neste quanto em outros casos, como os de Cesare Battisti e Salvatore Cacciola, para citar apenas os que envolvem Brasil e Itália. Algumas noções básicas do direito internacional são relevantes para a análise do caso.
A prisão de Henrique Pizzolato voltou a levantar uma série de questões recorrentes tanto neste quanto em outros casos, como os de Cesare Battisti e Salvatore Cacciola, para citar apenas os que envolvem Brasil e Itália. Algumas noções básicas do direito internacional são relevantes para a análise do caso.
A primeira noção é a de que o Estado tem o dever, e o nacional consequentemente o direito,
de proteger aqueles a quem concede a nacionalidade. Decorre deste dever o fato
de que a maior parte das nações não extradita seus nacionais, tampouco os
retira à força de seu território, mesmo se nele ingressarem com documentos
falsos. A extradição é o instituto mediante o qual um Estado solicita a outro a
entrega de pessoa que esteja no território deste último. Por se tratar de
solicitação em âmbito de tratativas entre Estados, as “leis” que se aplicam são
as criadas pelos próprios Estados, denominadas tratados internacionais.
Adicionalmente, claro, as normas internas de cada país irão determinar se
aquele tratado será ou não cumprido (o ideal seria que o Estado apenas
assinasse tratados que teria condições de cumprir, mas nem sempre isto ocorre).
Uma outra
noção importante é a da territorialidade. Em breves palavras, significa que o
Estado em cujo território um crime seja cometido é o competente para julgar e condenar
ou não o acusado. O Brasil, local dos crimes no caso do mensalão, julgou o
caso. Por outro lado, aparentemente há o crime pelo uso de documentos falsos
cometido por Pizzolato, crime este que foi cometido em múltiplos locais, desde
o Brasil mas inclusive a Itália, motivo pelo qual as autoridades italianas podem
julgá-lo. A não extradição de Pizzolato pela Itália não será surpresa, não em
suposta retaliação ao caso Battisti, mas simplesmente em cumprimento a normas
italianas e internacionais que o próprio Brasil analogamente cumpre. Nossa
Constituição nega a extradição de brasileiros a outros países, por mais grave
que seja o crime cometido no estrangeiro, fazendo apenas algumas exceções aos
naturalizados. A Itália certamente fará o mesmo.
É interessante
notar que o tratado de extradição entre Brasil e Itália, famoso desde a época
do caso Battisti, expressamente desobriga o Estado a quem se requer a
extradição que o faça em relação aos seus nacionais. A interpretação de que o
nacional pode ser extraditado somente seria possível se a análise do tratado
ignorasse as demais leis vigentes no Brasil e na Itália.
À parte os
aspectos jurídicos, é preciso lembrar que há um componente político nas ações
de cada Estado. As democracias são regidas pelas leis mas estas reservam um
espaço para a discricionariedade. Talvez por isso a formulação do pedido de extradição
à Itália não seja totalmente descabido. O que o ponto de vista jurídico deixa
claro nem sempre é aceito do ponto de vista político e, afinal de contas, o
direito ao esperneio é garantido a todos.
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