Carlos Roberto Husek
Professor de Direito internacional da PUC/SP e co-coordenador
da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado
Carlos Roberto Husek
Professor de Direito internacional da PUC/SP e co-coordenador
da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e Privado
Em
função do grau de globalização atingido pelo mundo, com uma interdependência
cada vez maior entre os Estados, verifica-se a necessidade de uma maior
harmonização das regras internacionais, em conjunto com um alinhamento com
regras internas dos países, objetivos comuns, transparência mútua e cooperação
em prol de algo maior e mais importante que seus interesses próprios, ou seja,
o interesse global baseado na questão ambiental, social e econômica.
Com base
nestes preceitos, o conceito de Governança Global continua a evoluir,
justamente em função das inter-relações existentes entre os países, organismos
internacionais, organizações não governamentais, empresas e o ser humano com o
intuito da criação de mecanismos de ajuda mútua, a integração de tratados
internacionais específicos, relacionados às questões ambientais, energéticas,
tecnológicas, comerciais, econômicas, sanitárias, humanitárias, dentre outras,
e ainda reforça fóruns de discussão amplos sobre estas questões como a ONU
(Organização das Nações Unidas), a OMC (Organização Mundial do Comércio), OIT
(Organização Internacional do Trabalho) e CCI (Câmara de Comércio
Internacional), Fórum Econômico Mundial, dentre outros. Na Idade Moderna, a
dependência entre os Estados se acentuou, fazendo com que a ideia de
universalidade entre estes ficasse cada vez mais forte.
Não foi
por acaso que, ao final do século XIX, os Estados se uniram para formar um foro
estatal de solução de controvérsias através da criação da Corte Permanente de
Justiça Internacional em Haia na Holanda, atualmente conhecida como Corte
Internacional de Justiça, e também, como foi o caso, em 1920, da criação da
Sociedade das Nações, organização internacional entre Estados que pretendia,
além de proporcionar a paz e a cooperação entre os Estados, harmonizar as
regras internacionais, além de ser um foro de discussão para diversos assuntos
mundiais.
Infelizmente,
o conceito essencial de ajuda mútua e cooperação ainda não estava maduro na
sociedade internacional daquela época, visto que com o desenrolar da Segunda
Grande Guerra Mundial, a Sociedade das Nações foi desfeita, ficando,
entretanto, a esperança de que as ideias básicas ali pretendidas pudessem
florescer novamente em um ambiente mais propício, que de fato ocorreu, após a
Segunda Guerra Mundial, mais precisamente em 1945 com a criação da ONU.
Após a
Segunda Guerra Mundial, o restabelecimento do diálogo entre os Estados através
da ONU, que apesar de ser um foro universal, divide espaço com outros
específicos e conforme o assunto discorrido, como o Banco Mundial, criado para
o financiamento da economia mundial destruída pela guerra, o FMI (Fundo
Monetário Internacional), cujo próprio nome menciona, consiste na formação de
um fundo a ser disponibilizado aos Estados participantes para proteção e
fomento da economia interna, dentre outros. Verifica-se, portanto, que os
Estados perceberam a importância do diálogo, da cooperação e da ajuda mútua
advindas do fortalecimento das organizações internacionais, uma vez que em
função do aumento da interdependência, algo que aparentemente parecia um
assunto interno, afetava outros Estados, causando prejuízos.
Além
disso, os Estados e a Sociedade Civil Global, que podemos entender como o
conjunto de entes internacionais formadas não pelos Estados, mas sim pela
sociedade civil organizadas, formada pelo ser humano, seja por meio de
organizações mercantis como multinacionais ou associações civis sem fins
lucrativos (as organizações não governamentais – ONGs), também perceberem a
necessidade de se movimentarem na confecção de uma estrutura jurídica nacional
e internacional no sentido de suportar mudanças ou ações necessárias onde os
Estados não conseguiam agir por ineficiência, falta de vontade política ou
falta de senso de prioridade ou urgência, criando assim, uma movimentação para
aprofundar discussões na sociedade, de maneira a influenciar desde políticas
públicas a ações privadas.
A
atuação das Organizações Não Governamentais (ONGs) fortalece o comprometimento
e a observância das normas internacionais por meio dos conceitos commitment
and compliance (compromtimento e conformidade), vez que além de exercerem
atividades complementares aos Estados, como vimos no capítulo anterior, também
exercem atividade fiscalizadora contra os Estados e protetora à sociedade.
Portanto,
seu papel retrata uma tendência mundial, que consiste na parceria entre as
autoridades públicas e as ONG’s, atuando, inclusive, como legitimadoras da ação
pública, de forma que existe um grande reconhecimento funcional ao receberem um
tratamento consultivo no âmbito da Organização das Nações Unidas. Importante ressaltar que a Resolução n.
1996/31 do Conselho Econômico e Social da ONU – ECOSOC, promoveu o estatuto
consultivo das ONG’s, visando a defesa dos interesses da coletividade e
informando que a sua atuação não é de interesse meramente público, mas também
privado. Diante desta afirmativa é notório o caráter imparcial de atuação das
ONGs, deixando claro que elas não pretendem a defesa de interesses próprios,
mas de uma coletividade.
Com base
neste reconhecimento dados pela ONU, algumas ONGs cadastradas nesta organização
internacional podem: (i) comparecer às reuniões; (ii) submeter relatórios e
trabalhos previamente às sessões e reuniões do organismo internacional; (iii)
fazer declarações oral nas reuniões do órgão; (iv) fazer reuniões com
delegações de países que fazem parte das Nações Unidas, ou até mesmo com
funcionários da ONU com o objetivo de tratar de assuntos relacionadas ao seu
propósito; (v) organizar eventos durante as atividades da ONU e, acima de tudo,
(vi) participar ativamente de debates relacionados ao temas de afinidade
específica que são tratados no âmbito da ONU.
Carlos Roberto Husek
Professor de Direito Internacional da
PUC/SP e co-coordenador da ODIP – Oficina de Direito Internacional Público e
Privado
Existem alguns líderes no mundo, como
o da Venezuela, o da Coreia, o da Rússia, o dos Estados Unidos (Trump), este
último não eleito, que são casos psicanalíticos, não esquecendo no passado
recente, Hitler, o mais emblemático de todos.
Não se tem necessário diagnóstico
médico especializado, porquanto as falas, os gestos, as atitudes são
semelhantes, sempre cercados de uma multidão de adoradores que gritam, batem
palmas para as expressões mais absurdas e para as imagens construídas nos
discursos, inusitadas, por vezes primárias, grandiosas, pretensiosas, soberbas
e outras que conquistam o ouvinte e aliciam simpatizantes.
São casos, penso, que merecem
profunda reflexão, realista e séria, da personalidade que se analisa e da
sociedade contemporânea: ânsia de poder, corrupção estrutural, domínio de tudo
e de todos, falso conceito próprio positivo, mania de grandeza ou simples
proteção dos apaziguados e manutenção de uma rede de interesses informada e
comandada por alucinados escurecidos pela razão.
A sociedade seria, em si, doente,
produzindo filhos doentes que alcançam o poder? Tal pergunta se faz natural à
medida que se observa que aos desmandos de tais líderes, a sociedade não reage
e os apoia até o abismo final, a exemplo da Alemanha nazista.
O indivíduo, quando em meio a um
grupo transforma-se e, por vezes, conduz-se em obediência, cego e surdo à sua
consciência, como gado, parte de um rebanho. Em sendo este o caso, caberia, por
certo, alguma desculpa para este estado de coisas. Uma consequência esperada do
espírito humano dominado e convencido por uma realidade grupal.
Entretanto, se a massa age
correspondendo aos ditames de um desajustado, o que dizer daqueles que exercem
uma parcela do poder na mesma sociedade, obtida por caminhos diversos; eleição,
divisão de competências funcionais, constitucional e administrativa, e que agem
sem pensar, autonomamente, preservando o líder, atapetando o seu caminho, não
importando as consequências? Todos estariam sendo dirigidos pela mesma força
motriz do domínio e do encantamento, sem qualquer sobra de equilíbrio e de bom
senso? Aqui, talvez, a explicação é mais simples e direta; não se trata de uma
questão mental, mas de resguardo dos próprios benefícios e privilégios.
A complexidade do tema necessita de
estudo mais alentado, situado numa área de confluência entre a Psicanálise, a Psicologia,
o Direito, a Sociologia e a Política. A única e simplória certeza que temos é
que, de forma geral, os nomes mencionados no início deste artigo, têm iguais
caracteres. Afora a liderança e o poder, que alguns podem naturalmente exercer,
o que se tem plenamente aceito, há os que fazem questão que todos fiquem de
joelhos, e é a estes que nos referimos ao invocar a Psicanálise. A doutrina aponta
peculiaridades do indivíduo psicótico, a saber:
. desorganizações súbitas e sérias do
ser psíquico;
. perturbação das faculdades
relacionais;
. perda de contato com a realidade;
. neurose narcísica;
. psicose delirante;
. psicose crônica;
. falta de senso crítico para a
desordem no próprio pensamento;
. pensamento dissociativo; um
recolhimento a si mesmo;
. certa paranoia, caracterizada por
um delírio sistemático;
. delírio de grandeza;
. predominância da própria
interpretação das coisas; e,
.
confusão alucinativa.[1]
Há, ainda, a chamada “psicose branca”,
que não tem manifestação clínica identificável, o que talvez possa explique uma
cegueira coletiva, uma certa – não sei se a expressão tem consistência – esquizofrenia
de massa.
Enfim, dias modernos, em que o
passado parece não ter sido coberto pela pátina do tempo. A história poderia
tornar-se repetitiva, com infinitas representações em palcos diversos. Ficar na
plateia como mero assistentes, sem raciocinar sobre a vida e os acontecimentos,
não é por certo a melhor solução.
[1] Mijolla, de Alain. (Direção Geral) Dicionário Internacional da
Psicanálise. Tradução Álvaro Cabral, Imago.
Henrique
Araújo Torreira de Mattos.
Coordenador
e Professor no curso de pós-graduação
latu
sensu em Direito Internacional da Pontifícia
Universidade
Católica de São Paulo (COGEAE) e
Colaborador
da ODIPP (Oficina de Direito Internacional
Público
e Privado). Professor de Direito Empresarial na
ESEG
(Escola Superior de Engenharia e Gestão).
Há um ano atrás
o mundo já via a pandemia do COVID19 com olhos atentos, apesar de haver lockdown apenas na China, local onde a
disseminação do vírus teve sua origem. Apesar disso, a Itália já vinha sofrendo
muito com a doença, inclusive com muitas mortes principalmente de idosos. Notícias
de outros países também apareciam dando conta de que a pandemia havia de fato
se instalado e que restrições sanitárias que o mundo não via há muitos anos
seriam instaladas, além da China.
Alguns dias se
passaram e o lockdown foi decretado
praticamente em toda a Europa com restrições de locomoção dentro do bloco para
impedir com mais fervor a disseminação da doença e do vírus. No Brasil poucos
casos haviam sido detectados e, apesar do receio de que as mesmas restrições
ocorressem por aqui, nossas experiências mais recentes como a gripe aviária e
H1N1, que também foram reflexos de crises sanitárias na China (sem considerar a
dengue e outras doenças que são questões mais domésticas brasileira), davam
conta naquele momento inicial, de que não sofreríamos os mesmos impactos em
função da distância e, por pensarmos que o Brasil não estava num grau de globalização para este
tipo de assunto, até a decretação da pandemia pela OMS. Enfim, o Brasil sofreu
com a pandemia em 2020 e continua a sofrer em 2021, assim como todos os outros.
Ao longo deste
ano vimos conflitos entre EUA e China em torno deste tema com acusações contra
a China de que teria sido o país responsável pela disseminação da pandemia por
não haver regras rígidas de controle sanitário. Algumas teorias sugeriam
inclusive que a China havia disseminado o vírus propositadamente, como uma
forma de iniciar uma guerra viral econômica, para beneficiar o seu comércio
internacional em função do impacto a gerar nas economias dos demais países e no
mundo. Tais pontos colocados surgiram como uma forma de objetivar a
responsabilidade internacional da China, perante o mundo, a ponto, quem sabe,
de obrigar a China a indenizar financeiramente o mundo, ou viabilizar de maneira
organizada global embargos econômicos contra a China, ou expulsá-las dos fóruns
internacionais, ou julgar criminalmente os governantes chineses, ou até mesmo,
todas estas sanções em conjunto, dentro da dinâmica que se conhece do sistema
internacional. Em princípio, esta seria a lista das sanções internacionais
contra a China, que se discutia durante a era Trump, pauta esta que foi
acolhida pelo Governo Bolsonaro no Brasil.
Em função do
tom adotado para a questão pelo Governo Brasileiro no campo internacional,
internamente, mantendo-se a coerência, o negacionismo, ou seja, a negação
quanto à existência da COVID19 como uma doença grave, tirou a ênfase do governo
ao coordenar o assunto, a ponto de não criar uma estratégia sanitária robusta
para evitar o contágio acelerado, como o isolamento, toques de recolher, uso de
máscara, e outras regras de circulação sob a perspectiva não farmacológica. Do
ponto de vista farmacológico, a estratégia errática também não foi diferente. O
governo apostou em medicamentos não aprovados pela ANVISA, ou por outros órgãos
mundiais, para o tratamento da doença e, acima de tudo, não se preocupou em
investir em uma estratégia vacinal forte, como muitos outros países
continentais do mundo estava fazendo, apesar de ter condições econômicas para
um momento de crise como este.
Países
relevantes como EUA e Inglaterra tinham esta mesma estratégia, mas se renderam
à realidade da doença e alteram o curso de sua política sanitária, de modo a
criar mecanismos mais robustos de defesa. Ao longo de 2020, negociaram vacinas
com os laboratórios produtores para conseguir chegar na frente para a
imunização de sua população. O Brasil não seguiu o mesmo caminho pela falta de
foco, fazendo com que negociasse apenas com um laboratório, uma aposta de
exclusividade, que hoje nos coloca no final da fila para uma imunização em
escala global.
A doença
evolui, novas cepas e, ainda mais poderosas surgem, fazendo que com o Brasil
hoje seja o país mais infectado do mundo e sem uma política sanitárias bem
definida a respeito, gerando uma preocupação para os demais países, pois coloca
o nosso país como um problema e um risco sanitário a nível global. Enquanto
outros países estão concentrados em medidas sanitárias para mitigar os efeitos
da doença, bem como diminuir a sua transmissibilidade, o Brasil sem promover um
senso de urgência, bem como um plano efetivo e robusto de combate sanitário.
Enfim, o Brasil
se tornou a China do início da pandemia que tanto o Governo Federal Brasileiro
criticou!!!! Beware of COVID!!!!!
Neste caso,
cabe agora avaliar como fica a responsabilidade internacional do Estado
Brasileiro em função da negligência, imprudência ou imperícia ao conduzir o
combate à pandemia internamente. Partimos assim, das premissas inicias abaixo:
1) O Brasil infringe a própria
Constituição Federal Brasileira (CF) ao não promover o acesso às saúde da
população nos termos do artigo 196 da CF “A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”;
2) No mesmo sentido descumpre a Declaração Universal do Direitos Humanos que em seu artigo 25 ensina que “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança o desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”;
3) Voltando à CF, em função da posição de destaque que o Brasil possui no cenário global, a carta magna, mais uma vez é contrariada, ao cair no esquecimento, os princípios dispostos em seu artigo 4º ao estabelecer que: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ... II - prevalência dos direitos humanos; ... V - igualdade entre os Estados; ... VI - defesa da paz; ... VII - solução pacífica dos conflitos; ... IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;”
Portanto, o Brasil se expõe negativamente quando o Governo nega a doença; afirma que resolverá assuntos com o EUA com o uso da pólvora; afronta a diplomacia internacional; não investe em vacina de maneira adequada, ou cria um ambiente de mitigação da trasmissibilidade da doença no âmbito de políticas públicas de saúde, incluindo planos de comunicação adequados; se fecha para a OMS e parceiros internacionais; não reorganiza a sua saúde pública de maneira eficiente para evitar falta de estrutura e insumos para a saúde e, ainda, ao não agir de maneira eficiente em prestar informações ou comunicar a população.
Diante deste
cenário, olhando sob a ótica da sociedade internacional, o Brasil se expõe
negativamente, proporcionando relação diplomáticas mais difíceis e
conflituosas, além de se expor perante jurisdições de cortes internacionais,
como a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, por exemplo.
Bom,
se fomos competentes a nos igualar à China do início da pandemia sob a
perspectiva sanitária, com certeza ainda não nos igualamos sob a perspectiva da
economia.
Por Fabrício
Felamingo
Na semana em que o Brasil atinge um quarto de milhão de mortos pela
pandemia de COVID-19 no curto espaço de 365 dias, nos chama atenção o fato de
que, já no ano que vem, o Brasil comemorará o segundo centenário de sua
independência sem que possamos estimar quantos terão morrido nos próximos 12
meses. Sim, a vacina se tornou realidade científica em tempo recorde e se faz
realidade no Brasil, em que pese a forte objeção do Governo Federal. No
entanto, o ritmo de vacinação é lento e, em pouco menos de 2 meses de
vacinação, apenas cerca de 7 milhões de doses, das 450 milhões que seriam
necessárias aos brasileiros (duas doses para cada um) foram administradas. Ou
seja, ainda muitas vidas serão levadas, e a banalidade dessas mortes se acentua
sabendo-se que seriam evitadas com uma maior rapidez da vacinação.
Ainda assim muitos a cada dia menos se preocupam com isso. A
banalidade impera, estão “cansados” das notícias “velhas” das mortes e dos
infectados. Notícia agora é um deputado federal ser preso por fazer apologia do
AI-5, por exemplo. O que nos leva a pensar que há hoje no Brasil talvez o
período de maior “desgoverno” da história recente, desde 1985 (incluídos
governos Sarney e Collor nessa conta). Podemos dividir em poucos períodos os
199 anos de nossa história independente, sendo não mais do que 5 pequenos
trechos no período republicano. E estamos apenas no segundo período mais longo
de estabilidade com transição de poder, uma vez que, após os 67 anos dos períodos
da Monarquia (1º e 2º reinados, intercalados pelo período da Regência), tivemos
apenas 41 anos até o Estado Getulista de 1930. Logo após, um hiato democrático
de apenas 19 anos (1945 a 1964) até nova incursão ditatorial, desta vez dos
militares. Somente em 1985 há a volta da democracia, ou seja, apenas 36 anos
desde então. Nesse período desde 1985, nos parece que o atual governo se
esforça em lustrar a biografia dos presidentes anteriores. Afinal, nada parece
ser pior do que hoje.
Portanto, não são indevidas as preocupações com os flertes do atual
governo e seus apoiadores com a ditadura. O AI-5 defendido pelo Deputado
Federal Daniel Silveira já foi defendido pelo atual presidente. E é bom lembrar
que a ditadura foi parte cruel, mas não isolada, de uma orquestração que
começou devagar e com apoio significativo de parte da sociedade (os editoriais
de grandes jornais neste século XXI, como Folha de S. Paulo e O Globo, a se
desculparem pelo apoio então dado em 1964 à “Revolução”, mostram o quanto não
foi, aquele momento histórico, um golpe sem apoio generalizado na sociedade
civil).
Há portanto que relembrarmos sempre o que foi aquele período para se
evitar qualquer mínima chance de apoio à ditadura. Em 1974, menos de 9 anos
após o apoio editorial da imprensa ao golpe, e antes de ser “empossado presidente”,
Geisel disse literalmente ao seu futuro ministro do Exército Dale Coutinho que “esse
troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
“Esse troço de matar” é a expressão que,
ao mesmo tempo em que prova a ciência inequívoca de Geisel (e portanto de todo
os mais altos graduados nas esferas de poder de então) às torturas e mortes
ocorridas nos porões da ditadura, demonstra o apoio que as mesmas esferas
conferiam a tais métodos. 1964 não começou com um AI-5. 1964 não começou com
“esse troço de matar”. O jornalista Elio Gaspari é o responsável por ter
trazido à luz, em 2003, essa frase proferida por Ernesto Geisel. Em seu livro
“A Ditadura Derrotada”, terceiro de cinco livros sobre o período (e, todos
eles, leituras indispensáveis àqueles que querem entender o período), Gaspari
reproduz as frases aqui citadas com a vantagem de tê-las ouvido gravadas, eis
que Geisel efetuava registros de telefonemas, conversas e reuniões. A prova das
frases existe, portanto.
Na conversa gravada, Dale Coutinho argumentava que o Brasil estava
“melhor”, era local procurado pelos investidores e que “o negócio melhorou
muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando começamos a matar. Começamos
a matar.”. A morte banalizada.
Esse troço de matar atual que é a COVID-19 recebe do atual governo a
mesma preocupação que as torturas e mortes do porão da ditadura receberam de
Geisel. Ciente do que ocorre, o governo pouco faz para evitar o pior. Chancela
as mortes e com elas convive bem (“todos vamos morrer mesmo um dia”, repete
sempre o atual Presidente). E mais, ainda nos deixa com a nítida impressão de que
acha que bom mesmo era no período da ditadura.
É de matar. Literalmente.
Carlos Roberto Husek
Professor da PUC de São Paulo
Coordenador da ODIP - Oficina de Direito internacional Público e Privado
Abdias Nascimento (1914/2011),
antropólogo, poeta, dramaturgo, artista plástico, intelectual e ativista
pan-americano, buscou desenvolver no Brasil a questão do negro, na sua inserção
na sociedade brasileira e desmistificou algo que continua arraigado entre nós,
que é a chamada “democracia racial”. Não o fez, por dimensão intelectual e de
cientista social, por vindita pessoal, grupal, social ou familiar, mas por
rigoroso estudo de alguém – se é que é possível dizer – que no momento da
produção científica não tem cor ou raça. Difícil a aceitação disso, para todos
nós, que de alguma forma, estamos presos às nossas idiossincrasias, à nossa
criação, ao nosso passado, à transmissão avassaladora da cultura que nos é
transmitida, nos posicionando, de antemão, diante da vida com um olhar específico,
quase sempre carregado de preconceito e de obstáculos à inteligência (visão das
coisas), que obscurece o mais preparado dos mortais. Observe-se as últimas
manifestações de políticos, ministros, ex-generais do exército, que não parecem
atinar com o mínimo de compreensão e percepção da realidade e tendo em vista a
posição que ocupam no cenário nacional, ou que ocuparam, arrastam nas suas
ideias uma multidão de fanáticos, que, efetivamente não pensam para alimentar a
mídia – falada, escrita, televisiva - e, principalmente, pelas redes sociais
suas próprias demandas, algumas que se escondem nos confins do inconsciente.
Abdias do Nascimento, negro, não
partiu dessa condição, mas analisou com objetividade a sociedade brasileira, e
destrinchou e expôs a verdade de forma crua, em vários de seus escritos, dentre
eles o elogiado “O genocídio do negro brasileiro – Processo de um Racismo
Mascarado”[1]
, que logo de início parte da desmistificação, de forma contundente, do ensino
oficial e da transmissão oral e escrita sobre a propalada “democracia racial”:
“O que logo sobressai na consideração
do tema clássico deste ensaio é o fato de que, à base de especulações
intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas ciências históricas,
erigiu-se no Brasil o conceito da ´democracia racial`; segundo esta, tal
expressão supostamente refletiria determinada relação concreta na dinâmica da
sociedade brasileira: que pretos e brancos convivem harmoniosamente,
desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência,
nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas. A
existência dessa pretendida igualdade racial constitui mesmo, nas palavras do
professor Thales de Azevedo, ´o maior motivo de orgulho nacional`(...) e ´a
mais sensível nota do ideário moral no Brasil, cultivada com insistência e com
intransigência`. Na mesma direção laudatória, o Jornal do Brasil do Rio de
Janeiro, afirma que “A maior contribuição que nós temos dado ao mundo é
precisamente esta nossa democracia racial`.[2]
De saída, verifica-se que Abdias
parte de uma afirmação por todos tida como certa e a destrói com lógica, quase
aritmética, ao longo dos capítulos que se seguem (quinze capítulos, 229
páginas), desmascarando esta inverdade, com apoio e assinatura de vários
intelectuais, brancos e negros, do Brasil e do exterior.
Por que insistimos nesta temática,
nos últimos escritos da ODIP? Porque é constrangedor vivermos completamente
cegos, em relação à realidade social, que a chamada “quota”, por si, já
emblemática, não conseguiu até o momento desnudar.
Não somos o país da “democracia
racial”, e quiçá, não sejamos o país da “democracia plena”, esta garantida nas
leis e na Constituição – é um começo -, mas de pouca prática, á medida que os
governantes dela abusam com interpretações estapafúrdias da Carta Magna,
somente com o intuito de manutenção do poder. Este não é um mal só nosso, O
mundo atual passa por uma síndrome de abstinência do diálogo e do exercício da
tolerância com o outro, que sem dúvida é a base da democracia e do “Estado
Democrático de Direito”, mas este é um assunto para um próximo estudo, embora
umbilicalmente ligado ao tema deste artigo. Continuando, o fato é que nossa
insistência tem preocupação interna e internacional. Interna, porque as
manifestações dominantes são desastrosas e nos impõem, aos brancos e mesmo aos
negros, uma visão muito distorcida do real, elevando a ficção em verdade.
Internacional, porque tentamos passar para o mundo, somente com base no sistema
jurídico, que alcançamos o prazer da convivência social.
Enquanto, não passarmos a limpo essa
história racial, não vamos progredir e não vamos ser livres. A escola primária
patrocinada pelo Estado, onde o número de pretos, pardos e mulatos é maior,
apesar da boa vontade de seus professores mostra-se manietada, porquanto os
alunos que dela saem não conseguem disputar o mercado de trabalho, e sequer
sobreviver.
O ensino médio já faz ampla
separação, entre brancos e negros, porque este ensino é quotizado, de certa
forma, para aqueles, e a as faculdades, terminam em erigir muros altíssimos
para o alcance dos descendentes de africanos, em quaisquer de suas modalidades.
Podemos nos esconder, enquanto
intelectuais, atrás de falsas ideias, porém do que nos servem, na contribuição
que devemos dar para um país melhor?
Diz Abdias Nascimento, em parte de
suas conclusões: “Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência
mutável, polivalente, que o torna único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se
necessário travar a luta característica de todo e qualquer combate antirracista
e antigenocida. Porque sua unicidade está só na superfície; seu objetivo último
é a obliteração dos negros como entidade física e cultural. Tudo em
conformidade com a observação de Florestan Fernandes: ´Uma situação como esta
envolve mais do que desigualdade social e pobreza insidiosa. Pressupõe que os
indivíduos afetados não estão incluídos como grupo racial na ordem social
existente como se não fossem seres humanos nem cidadãos normais (grifos
nossos)’”
Aviso aos que se debruçarem sobre
estas poucas linhas (preconceituosos de plantão), que não sou negro nem mulato,
meu pai era tcheco e minha mãe, descendente de italianos, todos brancos e
alguns de olhos azuis e cabelos loiros, mas sou, sem dúvida, um cidadão
brasileiro, professor, preocupado em fazer valer o que está Constituição da
República, em especial, nos seus artigos 1º., 3º. e 4º., em resumo: soberania,
cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa, pluralismo político, construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, prevalência
dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, repúdio ao terrorismo e ao
racismo, dentre outros.
Não são palavras. Está na
Constituição Federal!
[1] Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – Processo de
um racismo mascarado, com textos de Florestan Fernandes e Elisa Larkin
Nascimento, Editora Perspectiva. 4ª. edição.
[2] Ibidem, p. 47/48.
Henrique
Araújo Torreira de Mattos.
Coordenador e Professor no curso de
pós-graduação
latu sensu em Direito Internacional da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(COGEAE) e
Colaborador da ODIPP (Oficina de Direito
Internacional
Público e Privado). Professor de Direito
Empresarial na
ESEG (Escola Superior de Engenharia e Gestão).
A doutrina traz dois conceitos sobre a
sociedade internacional, sendo feita uma distinção entre alguns doutrinadores
entre sociedade internacional e sociedade civil global. Dessa forma, as
opiniões dividem-se entre Pierre-Marie Dupuy e Marie-Claude Smouts que afirmam
que tal entidade realmente existe e faz parte do cenário internacional, havendo
uma grande dificuldade de indentificá-la como sujeito em função da dificuldade
em conceituá-la. Smouts, por outro
lado, apesar de também concordar com a impossibilidade de sua definição,
utiliza tal fato como fundamento para provar que a sociedade não existe,
tratando-se apenas de uma ideologia, uma ficção gerada desde tempos antigos e
conclui no sentido de tentar dar um significado como uma forma de participação
política motivada pela vontade de democratizar os mecanismos internacionais de
tomada de decisão.
Nota-se que havendo esta dicotomia
gerada ao redor da figura do Estado, a sociedade internacional funciona como
uma quebra do vínculo que existe com este, mas sem desconsiderá-lo, tendo em
vista a sua junção jurídica de imposição normativa em concomitância com seu
poder de polícia exercido em determinado território. A sociedade internacional
seria, portanto, algo mais amplo que transcende as fronteiras do Estado sem
desconsiderá-lo por completo, uma vez que este também faz parte daquela.
Em suma, tal contrariedade advém da
evolução de conceitos, vez que o Estado sempre foi utilizado como uma forma de
personificação do indivíduo no ambiente internacional, já que ele não era
considerado sujeito de direitos ativos ou passivos, conceito este que vem sendo
atualizado, ainda de maneira modesta, apesar do indivíduo não poder firmar
tratados internacionais, por exemplo, mas pelo fato de que hoje o indivíduo, na
sua própria condição de pessoa humana e sem ser representado por qualquer
Estado ou organização pode pedir seus direitos ou sofrer consequências
jurídicas diretamente, como ocorre na Corte Interamericana de Direitos Humanos
e no Tribunal Penal Internacional. Não obstante, que tal fragilidade ainda
exista, o indivíduo já demonstra que é capaz de articular-se
internacionalmente.
Na visão de Paul Wapner, a sociedade
civil global é tudo que se encontra entre as esferas pública e individual, ou
seja, o que há abaixo do Estado e acima do indivíduo e a diferencia da sociedade
internacional pela independência de seus atores para com os Estados e por sua
composição, que é formada pelos agentes da sociedade civil interna que se auto proclamaram
sociedade civil global.
Dessa forma, a sociedade civil global constitui-se
de entes autônomos em busca de um espaço capaz de expressar seus ideais de
maneira a contrapor a força dos Estados. Marcel Merle infere sobre a
necessidade de se estabelecer um estatuto jurídico para a sociedade global,
visando à organização de sua atuação.
A dificuldade de definir a natureza
jurídica da sociedade civil global decorre justamente do fato desta possuir uma
natureza jurídica nacional, apesar de desenvolver uma atividade transnacional.
Os Estados, de modo geral, não querem delegar a sua soberania neste sentido.
Apesar de muito se destacar as ONGs que
sem sombra de dúvida desenvolvem um trabalho enorme internacionalmente, através
da identificação de problemas e questões que devem ser tratadas, visando a
assistência internacional e ajuda mútua, a sociedade internacional não é
formada apenas por elas, mas sim pelos demais atores internacionais, como
Estados, Organizações Internacionais, as coletividades, a Santa Sé, as empresas
transnacionais e o homem. Importante, ressaltar ainda que muitas empresas
transnacionais desenvolvem trabalhos assistencialistas através de ONGs.
Como visto, é fato que a sociedade
civil global advém de uma movimentação da sociedade civil interna através do
homem, por meio de instituições, seja ela uma empresa transnacional ou ONG.
O paradoxo existente entre a atuação da
sociedade civil global e o Estado, é constatado pelo fato de que a primeira
almeja atuar e desenvolver projeto de utilidade pública, que em primeira
instância seria de competência do Estado, que em função de sua incompetência e
ineficiência não consegue atingir os resultados desejados. Apesar dessa visão,
já que o Estado é constituído por afinidades entre seus súditos, justamente
para a representação dos interesses da sociedade interna, a sociedade civil
global vem sendo admitida por estes por ser impulsionada pelo cidadão e entes
privados em escala local ou global.
Existem alguns exemplos de sua atuação
que podemos citar, tais como o reconhecimento transnacional através da União
Europeia e da parceria desenvolvida nos trabalhos realizados pela ONU. Os dois
casos citados referem-se à atuação conjunta entre organizações internacionais,
que são atores internacionais formados pela união entre Estados, de acordo com
um tratado, com a sociedade civil, seja por ONGs ou empresas transnacionais
diretamente.
A ONU, por exemplo, possui uma lista de
ONGs cadastradas que a ajudam na identificação de problemas mundiais, na
elaboração de estudos para solucioná-los e na movimentação da sociedade
internacional para implementar projetos. Obviamente, a sua solução é muito
difícil, tendo em vista a sua complexidade, entretanto é importante destacar
que pelo menos existem iniciativas desta natureza visando a melhoria das
relações internacionais.
Bibliografia:
SMOUTS,
"Le concept de société civile internationale: identification et
genèse".Colóquio do Centro de Direito Internacional da Universidade de
Paris X, França, 2 e 3 de março de 2001.;
CHARTOUNI-DUBARRY, F.; AL RACHID, L. Droit et mondialisation.
Politique étrangère, 4/99, p. 941-946. Environmental activism and world civic
politics. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 1996.
ROSENAU, J. Governance in the Twenty-First Century.
Global Governance 1, 13, 1995.
SCHEURER, C. The waning of the sovereign State:
towards a new paradigm of international law? European
Journal of International Law, v. 4, n. 4, p. 447, 1993. No colóquio do Centro
de Direito Internacional da Universidade de Paris X, França, 2 e 3 de março de
2001. "L'émergence de la société civile internationale.
Vers la privatisation du droit international?”
Por Fabrício
Felamingo
Nos nossos últimos artigos temos falado da relação entre o Direito
Internacional e o chamado “bom governo”, no sentido de que há uma correlação
direta entre o grau de inserção internacional de uma nação e seu nível de
democracia. Os extremos ajudam a entender. A ninguém ocorre defender que a
Coreia do Norte seja um país democrático ou sem abuso de poder autoritário, com
os indefectíveis abusos contra os direitos e garantias fundamentais de seu
povo. E seu grau de inserção internacional é, pode-se dizer, nulo. Não apenas
não tem relações diplomáticas com a generalidade das nações como, com aquelas
com quem ainda tem algum grau de contato, sempre o faz na base de encontros
secretos. Uma exceção foi a tentativa de aproximação com os EUA feita durante o
governo Trump, inclusive com encontro pessoal dos líderes de ambos os países,
em que resta a dúvida sobre quem estaria mais “usando” o outro, se o chefe de
Estado norte-americano (buscando capitalizar através de um caminho inusual para
a “paz” entre as Coreias) ou o ditador norte-coreano (tentando dar algum
polimento ou verniz internacional à carcaça ditatorial). Fato é que essa pouca
(ou nenhuma) inserção internacional norte-coreana de forma alguma faz bem à
democracia (inexistente) naquele país.
Uma faceta dessa inserção internacional é a possibilidade de o
Estado ser internacionalmente responsabilizado por descumprimento de
compromissos assumidos na esfera internacional. O século XX foi de grande
evolução nesse tema, com a tentativa de pavimentar formas de responsabilização
que não passassem pelas guerras, ou seja, uma institucionalização não apenas
das normas na esfera internacional (os tratados e acordos ratificados em
especial) mas também de um sistema de monitoramento e controle do cumprimento
de tais normas, com eventual possibilidade de aplicação de sanções aos
eventuais descumpridores.
Porém, falamos aqui da responsabilização do Estado na esfera
internacional, uma vez que não há formas de responsabilização de pessoas
físicas, governantes inclusos, de maneira geral. O Direito Internacional se
ocupa de responsabilizar se for o caso os seus chamados sujeitos de direito, e
estes são, por excelência, os Estados (e também as Organizações Internacionais
e outras coletividades, mas não entraremos nesse detalhe aqui). Os seres
humanos são sim sujeitos de Direito Internacional (num entendimento que foi se
construindo especialmente na segunda metade do século passado), mas
especialmente considerados como sujeitos de “direitos” e não tanto de
“deveres”, ou seja, o Direito Internacional regula muito mais os Estados para
que estes confiram e garantam direitos aos seres humanos (os tratados de
direitos humanos são o exemplo máximo disso, mas as normas da OIT, para ficar
apenas em uma organização internacional, também o são).
Há, porém, algumas exceções, sejam as históricas (das quais o
Tribunal de Nuremberg é o exemplo mais acabado) ou as institucionalizadas, das
quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) é o exemplo único atualmente. O TPI
cuida apenas e tão somente de julgar pessoas, e nunca Estados, responsabilizando-as
pelo eventual cometimento de crimes tipificados em seu Estatuto. Nada mais do
que isso (como se pouco fosse), com o poder de encarcerar os condenados. É
nesse contexto que se tem falado muito sobre a possibilidade ou não de o atual
Presidente brasileiro ser formalmente denunciado e julgado por crime de
genocídio, cometido na forma de sua (não) condução do País na luta contra a
COVID-19, o mal que assola o mundo desde o final de 2019. As opiniões divergem
mas é inegável que o critério técnico está atendido: o Brasil ratificou a
Convenção de Roma de 1998 (e portanto fazemos parte do TPI) e a Constituição
Federal, em seu artigo 5º, parágrafo 4º, assegura o reconhecimento e submissão
à jurisdição de tribunal penal internacional ao qual o Brasil tenha manifestado
adesão. Ao TPI, portanto, caberia a análise e julgamento do mandatário
brasileiro: se há ou não crime, compete ao TPI julgar, baseado na tipificação
do crime de genocídio previamente existente (e aceita pelo Estado brasileiro)
no artigo 6º daquele estatuto, ou mesmo de crimes contra a humanidade (artigo
7º). Seria vexatório ao Brasil um Presidente ser ali julgado, mas ao mesmo
tempo seria exemplar para os governantes e futuros governantes que algo assim
fosse ao menos examinado pelo TPI, uma verdadeira lição de que genocídios e
crimes contra a humanidade não se fazem apenas com baionetas e soldados mas
também com o mero uso da voz e autoridade. Mal à democracia pelo mundo com
certeza não faria.